terça-feira, 5 de julho de 2016

Pó na estante.

Devo ter lido demasiado cedo alguns dos "monstros" russos, como o meu pai - o mentor da empreitada - lhes chamava. Talvez naquela altura, tendo como base uma quase inexistente experiência em qualquer dos sectores da vida, não tenham exercido sobre mim o fascínio real que aquela riqueza de vocabulário utilizada a cada variação do desejo, da paixão, da frustração, da raiva, da mágoa ou da alegria é capaz de provocar. Cada carta, cada bilhete são exemplares obras de arte. Cada conversa um reflexo puro das consciências. Um jogo fascinante e subtil com a ordem e a desordem das palavras utilizadas. Os ritmos, os prefixos e os sufixos que vão transformando e sustentando sentimentos simples em grandiosidades imensuráveis. A mestria e a minúcia da linguagem que parece, em cada andamento, retirar-nos qualquer suspeita de que na realidade não fosse assim que duas pessoas reais falassem e escrevessem uma à outra. Pobre gente. Pobre de mim. Tanto pó na estante!



(embalado por um post da Uva Passa que, além de muito propositado, teve o condão de me deixar bastante descansado. Pois em matéria de leitura sempre achei que era um atrasado, um fora de tempo, um perdido dos tempos modernos, um abandonado ao fascínio real da velha literatura, da qual, tenho de confessar, não me consigo desprender e aos quais acabo sempre por voltar porque há sempre uma obra que me falhou no tempo exacto. Quem diz os russos, diz o franceses, os ingleses... pese embora uma ou outra incursão pelas Ferrantes desta vida.)

12 comentários:

  1. Pois olha, eu só agora é que comecei a pensar que não seria má ideia ler os clássicos...
    ...li alguns obrigado, porque na altura a experiência d vida que tinha estava muito aquém do que lia...
    ...e o meu fascínio na literatura sempre foi bastante focado, pese embora tenha tido muitas boas e gratas surpresas!

    Mas, um dia destes, hei-de pegar neles com propriedade e apanhar a seca da minha vida a lê-los...
    ...sobretudo os Russos, que são isso mesmo, uns monstros! É muito bom, mas é uma seca...

    :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Percebo tudo.
      Porém, discordo plenamente sobre ser uma seca a leitura dos russos.
      Para mim, hoje, mesmo a destempo, lidos uma segunda vez ou pela primeira vez, são momento voluptuosos. :)

      Eliminar
    2. São pontos de vista! O meu vem das descrições hiperdetalhadas e por vezes absolutamente desnecessárias que chegam ao cumulo de descrever com que linha eram feitos os bordados dos cortinados da sala x no palácio y, sitio onde apenas se está uma vez! Se é verdade que ficamos com a sensação de conhecer a sala toda ao pormenor, por outro lado a quebra do ritmo na história por causa dessas descrições faz-me perder um bocado a vontade de ler...
      ...ou então, como muitos, lê-se essa parte só na diagonal, mas isso é fazer batota! Portanto aguento cinco ou seis páginas com a descrição de uma sala onde dois amantes se encontram um vez, trocam duas frases e saem, sem nunca mais ali voltar...

      É ésta a minha seca, porque o resto? Fabuloso!

      :)

      Eliminar
    3. Gil, percebo outra vez. Mas, a verdade é que eu valorizo essas descrições, esse sentir pormenorizado das cenas e dos personagens: O som do vestido que arrasta na escadaria do palacete, o bater seco e assustador do portão, os passos do conde Karenin para trás e para a frente enquanto Ana Kerenina vai visitar, à sua revelia, o filho. As palavras vivas na correspondência de Makar para Barbara, o desespero da causa, a pobreza extrema, a poesia pobre e o amor possível. O monologo incessante da voz subterrânea...

      :)

      Eliminar
  2. Os clássicos russos fizeram a história da literatura por quase dois séculos.Se os tens ainda, leia-os.
    Riqueza intelectual impressiva!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Fizeram e fazem ainda a história da literatura mundial.

      Obrigado PDR

      Eliminar
  3. Ainda há dias peguei no Crime e Castigo e na Ana Karenine e pensei "Tenho de voltar a lê-los". Era adolescente quando os devorei. Mas depois, tenho entremãos "História do Novo Nome" e já comprado para ir a seguir "Histórias de Quem Vai e de Quem Fica" de leitura mais leve. Os velhinhos ficarão para depois.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Os velhinhos estão sempre a tempo. :)

      Obrigado por ter vindo, Beno.

      Eliminar
  4. Adoro os clássicos! Acabei Crime e Castigo há pouco tempo e agora delicio-me com Madame Bovary :)

    ResponderEliminar
  5. Olá. Que fineza de post, e que honra a citação.
    A Uva está como a Imprópria, deliciando-se com Madame Bovary, e com 2 do Proust já na carteira. Nunca é tarde demais para amar os velhos, e nem os novos. Haja coração. Escreve muito bem caro Impontual. Parabéns.

    ResponderEliminar