sábado, 29 de setembro de 2018

Opróbrio

Diz-me o Nobel da Literatura 2018 - eleito por mim -, num dos capítulos do tal livrinho que me faltava na prateleira, que muitas vezes estamos zangados connosco próprios ao ponto de aproveitarmos todas as ocasiões para nos sentirmos culpados. Mas que isso não é grave. E que sentirmo-nos culpados ou não tudo se resume a isto: a vida é uma luta de todos contra todos. É sabido. Mas numa sociedade mais ou menos civilizada, as pessoas não podem atirar-se umas contra as outras assim que se veem. Em vez disso, tentam lançar sobre o o outro o opróbrio da culpabilidade. Ganhará aquele que conseguir tornar o outro culpado. Perderá quem confessar o seu erro.

Também Agustina, em Antes do Degelo, defendia a tese dolorosa e empolgante que é o facto do homem, a quem o factor culpa é necessário para provar a sua humanidade, não poder viver senão com o sacrifício do seu destino.

Já eu e o Cão de pelo pardo que estamos aqui sentados em frente a este mar de putas, liso como a curva do céu da mesma cor, observando as ondas que deixam escorregar, lentamente, as suas línguas estreitas ao longo do areal, fervilhando e desaparecendo pela areia pálida e saibrosa, não entramos nessas lutas. Mas temos pena dos rapazes que esperam desesperadamente pela ondas ascendentes. Estamos em crer que as pranchas vão ficar espetadas na areia a tarde toda. Mas não estaremos cá para ver. Bora Fiodor, bora.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Alinhamento dos astros

Tenho estado a ler a "Festa da insignificância", um pequeno livro em falta na minha prateleira onde o autor me brinda, na pele de quatro indivíduos na Paris destes tempos novos, com uma fabulosa narrativa sobre um mundo desprovido de sentido onde a insignificância é a essência da existência humana. Magnifico, como sempre, na sátira e na escrita clara e directa. 
Este ano, decorrente do processo em curso que recai sobre Jean-Claude Arnault, não haverá oficialmente prémio Nobel da Literatura. Embora tenha sido criada uma qualquer academia, não oficial, para atribuir o prémio a titulo alternativo, não se esperam novidades. Em 2019, depois da conclusão do processo Arnault, a eleição volta às mãos da academia sueca. E novidades não haverá, certamente.
Por isso, eu que durante anos a fio apostei em Milan Kundera e nunca tive o prazer de o ver galardoado, aproveito este excepcional hiato para lhe atribuir desde já o Prémio Nobel da Literatura 2018. 
Até que enfim.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Solidão

Tanta solidão! Tanta solidão mal resolvida! A solidão mal resolvida é uma experiência corrosiva. A pessoa fica ali no rodopio do seu próprio furacão, cercado pelas visões de um mundo exterior, sempre centrifugo, do qual lhe chegam fragmentos voláteis, vozes distorcidas, rostos passageiros. Dito por outras palavras, a solidão mal resolvida assemelha-se a um parque de diversões onde todos os aparelhos estão em funcionamento: o carrossel, os carrinhos de choque, a roda gigante, os patos nos carris do tiro ao alvo, os vagões da montanha russa, mas não há viv'alma. O algodão doce, em redor na máquina, a inchar até inundar o parque.

sábado, 22 de setembro de 2018

Serralves em festa

 Robert Mapplethorpe

Quando uns lábios, uma boca, por instantes enlouquecidos, encontram no alto de uns seios aquela cálida temperatura e a doce recepção da carne abundante de sabor e aroma bem definidos e, inquietos, deslizam ultrapassando a superfície levemente abobadada do ventre sem ali descansar, caindo entre as coxas redondas, descobrindo num instante vertiginoso o suave declive em que o sexo encrespado e oculto se avoluma palpitante, transformando-se num órgão vital, não há nada nem ninguém que o possa interditar

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Projecto de alvenaria

Às vezes, no exercício de funções, confrontado com memórias descritivas, fico a pensar que, do mesmo modo, a edificação humana deveria ter sido iniciada, desde os primórdios, com um anteprojecto que desse outra atenção aos gabaritos, que tivesse outro cuidado com a armadura estrutural das pessoas, outra interligação das sapatas, outro baldrame, outra argamassa, um pé-direito mais folgado, outra prumada, um reboco mais fino, mais material refractário, zarcão.

Ou então, privar os humanos do dote da ambição. O que, provavelmente, faria de mim um desempregado.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Angina pectoris

É uma atitude de coragem, e estúpida, uma coisa bela, desperdiçar o coração por amor.

domingo, 16 de setembro de 2018

Fotodepilação

De olhos semicerrados, não conseguia ver o seu rosto corado e excitado. Contudo, já se deixara arrastar pelo seu próprio e arrebatado desejo. Esboçou um aceno de cabeça com um orgulhoso sorriso. A mão moveu-se ao longo das suas costas e correu o fecho. O vestido deslizou-lhe pelos ombros e ancas. Um puxão e um torcer de corpo e caiu-lhe aos pés. Como era seu hábito não usava soutien. Mantinha-se de costas e a espinha desenhava qual linha direita traçada por um pincel. Com um só movimento, as mãos colocaram-se na cintura e fizeram deslizar as cuecas pelas nádegas. Ergueu uma perna e quando lhe caíram aos pés, atirou as sandálias e a roupa para o lado -- tudo isto no espaço de um movimento. Virou-se bruscamente e enfrentou a audiência. À semelhança de um raio laser, o meu olhar fixou-se nos seios, deslizou até ao umbigo, às partes privadas, apreendendo todo o corpo. Os seios eram suaves, redondos e firmes, de mamilos orgulhosamente erectos. Os pêlos púbicos seguiam a curva da coxa, convergindo no recôndito sob o estômago, à semelhança dos veios de uma folha que se unem no caule. 
Deixei-me levar pelo som queixoso do saxofone de Coleman Hawkins em time on my hands. Aquela peça lenta parecia expressar a pungência da sua vida. 

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Nocturno em C menor, opus póstumo

Esta foi a noite serena e auspiciosa. Única. E quando mais uma aurora boreal estava a desaparecer e um cardume de peixes prateados voltou a nadar rumo às profundezas do oceano, abraçou-me de olhos semicerrados, com os lábios húmidos e vermelhos. Escapei-me dos seus braços e dobrei um dos joelhos diante dela. Ergui-lhe a saia, beijei-lhe as pernas, as coxas e, em seguida, premi a cabeça contra a suave saliência triangular. As minhas mãos agarraram as dela. Ondas de um azul-celeste formaram-se com uma cadência irregular. Sentimo-nos lançados no espaço por um baloiço celestial...

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Imanências

Das "Memorias de Raul Brandão", Volume 3
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... e depois este arranhar suave, mas profundo, da pena no velino, deixa-me tão inerme. Oh, como eu me sinto indefeso! Oh, imanências de Setembro!

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Acontece sempre nos primeiros dias de Setembro

... começa com um fervilhar de rins ao inicio da tarde, uma substância amorfa que se instala nas entranhas como um incómodo parasita, um veneno adocicado que tem a cor opaca do vazio e a espessura remota da névoa, um desejo inconsciente que embriaga a lucidez, uma chama, um acorde indefinido, uma sonolência mais pesada, a repulsa e simultaneamente a fascinação. Um teclado, uma tentação, uns gatafunhos e a pergunta sacramental. Um suspiro, uma fraqueza. Só espero que não me levem à risca.

domingo, 2 de setembro de 2018

Palomar

Noite tropical. Em cima da mesa baixa de teka envernizada uma garrafa e dois copos desirmanados. Ao fundo um veado, com os chifres prateados pelo luar, desce até ao rio para beber água. Na água ouve-se o chapinhar de um peixe com insónias. O Senhor Impontual deixa-se sentado e quieto a olhar o céu, estrelado como nunca, e não tem duvidas nenhumas - o mundo é redondo, mas só há dois tipo de pessoas: as que fogem e as que colam.