quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Pintar Março

Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma Quarta-Feira. Estamos no fim de Fevereiro. Falhou Janeiro. Entrou com uma elegância intrínseca que se destaca desde logo no detalhe como se senta e olha de frente com a cabeça bem levantada. Uma beleza sólida e atraente, caracterizada por linhas limpas e essenciais, realçadas pelo grão natural da pele. 
De repente, sente-se aquele tremor delicioso que os panoramas grandiosos nos despertam. Somos simultaneamente Deus e nada. Somos ao mesmo tempo o céu e o grão de areia. Depois vem aquele matraquear surdo, uma mudança de luz -, voltamos à terra. 
Não sei lhe pinte a pose de confiança no olhar, harmonizado com a sua postura ou se lhe esboce as mãos ausentes sobre o regaço. Mãos que albergam memórias inquietas e gritam: não sou! não vou! não quero!

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Fungágá da bicharada - A festa

Assim que terminaram as apresentações que foram feitas pela anfitriã, acompanhadas pelo nome do convidado com uma referência à sua profissão e uma piada sobre um qualquer aspecto mais ou menos intimo da relação que os unia, soou a campainha confirmando que ainda faltavam convidados. A partir desse momento o ambiente relaxou-se. Decidi continuar de pé, a anfitriã apareceu com dois gatos e uma mulher de aspecto inca, o acolhimento que lhes dispensou não foi tão estático como o dispensado aos demais. Apresentou-os delicadamente como Miss Marble, Marlon Brando e Susana. 
Entretanto, a mesa com comida tinha sido timidamente assaltada por uma avalancha de esfomeados e os que, como eu, ficaram por ali já não se consideravam obrigados a manter conversa.
Já estive em inúmeras festas deste tipo e o meu comportamento varia em função do conhecimento que tenho dos presentes. Se não conheço ninguém, como era o caso, entretenho-me a deambular, aberto à possibilidade de entabular conversa, mas com a ambição de não me prolongar. A musica soava sem que ninguém se ocupasse dela, mas entretanto o volume aumentou e tornou-se mais variada graças à intervenção de espontâneos DJs. Joaquim o ornitólogo acabou por tomar conta das operações. Baixaram-se as luzes e os mais atrevidos começaram a bombolear-se, e mais tarde a dançar.
Peguei num copo, circulei, e fui-me unindo a uns grupos pronto para empreender a fuga quando os temas das conversas escasseavam ou se exigisse de mim algo mais do que a minha presença atenta. Estive com Taeko e Yukiko, um casal magnifico, ele e ela com a mesma ciciante maneira de falar; estive com Mumu, a vaca cuja a altura é intimidante. Que delicadeza! Milú a aranha lá apareceu com a esquelética editora-chefe de uma revista de embarcações de recreio, Damas acompanhado por duas agentes da bolsa de valores falou-me da sua sociedade de investimentos. Corto Gatez apareceu já noite dentro com duas estagiárias de publicidade que disseram ser primas da anfitriã; com Joaquim o ornitólogo, pássaro afeminado, que acabei por abandonar, não porque a conversa rareasse, mas porque não parou de me atirar perdigotos de saliva para a cara; com Carlota - a osga, muito empenhada em dançar comigo e com uma amiga sua, Weblogger, vitima do mesmo empenho para com o Leitor Inventado.

Foi bonita a festa! Estive sempre de pé. Como os espinheiros do átrio grande à entrada da mansão Fleur du Mal. De pé bebe-se mais devagar.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Nada

Entrou e sentou-se ao balcão. Encomendou um Bourbon com 15 anos de idade. O que espera naquele bar sem nome? Cheiro, algo de desconhecido, uma vontade infinita de estranho. O seu desejo da manhã não a deixou. Pelo contrário. Todo o dia a lancinante injunção instilou-lhe urros na pele, os lábios corolas do sexo molharam-se repetidas vezes por um clarão, uma imagem rememorada, monstro enroscado no seu corpo que reclama e exige. Cada veia, cada artéria soletra: fruição, prazer, caricia, pele, vai-e-vem...o sexo que hesita, joga, aflora o clitóris antes de penetrar. Ela pensa penetrar e olha em redor: castiçais, garrafas, copos esguios, o que pode brincar à entrada de um corpo? O ideal, um homem invisível que roçasse e se aproximasse sem ela saber e depois arregaçasse os tecidos e as rendas, tomasse, rasgasse, um homem sem rosto, mudo... e que se sumisse. Acto continuo. Incógnito. Uma sombra.
Pagou a conta e foi-se embora. Avançou sóbria de presente, ancas a ondular sobre o único palco onde se joga o bailado de uma vida. Frágil entre frágeis. 
Na rua, um frio seco, o acaso dos transeuntes.  É tão bom não ter caminho*.

(*perdoar-me-à, certamente, a inspiração insipiente.)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Racismo em Portugal

Temo que nos vamos desviar outra vez, pecar por letárgicos. Apesar da maior parte do que possa dizer, o faria sem reflectir, não tenho como indicar qual o estado de alma que me governa nestas ocasiões. Ao actuar compulsivamente para descrever, desde a sua origem, uma cadeia consequente de factos importa consignar cada passo, cada elo, porque o sentido que os rege e os determina é imanente. Quando, como é o caso, o sentido se perde e tudo parece suceder como que por acaso, tem de se ser mais prolixo, determo-nos, recorrer a antecedentes, divagar, esmiuçar, consignar horas prévias, viajar até ao momento em que tudo arrancou. Mas não estamos para isso.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Prateleira dos velhos


Li em algum lado que Torga disse um dia que com a "Criação do Mundo" tentou sintetizar a experiência de toda uma vida. E como se sintetiza a luta entre o ser e o não ser, entre estar e não estar, entre o eu e os outros? Fazendo-o sentir na própria carne do leitor.
A verdade é que pagina atrás de página "Criação do Mundo" é uma luta asfixiante entre ascensões e quedas, entre o popular e o snob, vida e pensamento, reflexão e memória, narração e discurso, emoção e conceito, uns e os outros, solidão e companhia, vida e morte. Só um gigante podia almejar tanto, comprometer-se tanto e logra-lo de uma forma tão pouco convencional.
O Mundo real envelheceu mal, envelheceu mais cruel, mais doloroso que nunca.
Torga eternizou-se. Na prateleira.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Valentino

Como haveria eu de imaginar que aqueles olhos urgentes que um dia se acercaram de mim, recitando um poema de Eugénio, seriam como as bolas que se desconcertam na roleta? Não tomei distância, não ignorei aqueles globos terrestres de movimento intermitente, não calibrei o encaixe das suas partes, não resisti. Deixei-me ir pela beleza do erro, pela linha que se quebra no fim da curva.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Inquietação

Mas então agora eu, o Tone e a D. Mariquinhas é que temos de nos pronunciar e legislar sobre o que pode o outro fazer da sua vida ou da sua morte em caso de...?
Aviso já. Não contem comigo. Não quero esse direito.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Noite de Óscares

Quando o tempo e o espaço deixaram de ser uma confusão onde os nossos corpos se moviam entrelaçados, sem atender a outras considerações que não a do seu impulso perseguindo o prazer, atirou-se para um lado e procurou a sua mala no chão. Em vez de voltar às incidências da ausência, passou-me uma cigarrilha, pegou na dela e falamos do passado não partilhado, histórias mil vezes ouvidas que sem duvida repetiríamos. Quando apagamos as cigarrilhas, apagou também a luminária da mesa-de-cabeceira, voltou-me as costas para que a abraçasse e continuamos a falar até que as palavras foram perdendo paulatinamente coerência. No momento em que não me respondeu, percebi que tinha adormecido. Desfiz o abraço, dei-lhe um beijo nas pregas que se formavam no pescoço e fiquei de barriga para cima. Olhei pela janela, mas custou-me a encontrar a lua, apenas um reflexo cavernoso num céu cada vez menos aveludado. Choveu.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Do amor entre as mulheres

_ Tu não podes compreender, Impontual, tu és homem. Amar uma mulher é para mim uma coisa simples. Primitiva. Poderosa. Arrasadora. Por vezes, viciosa. Uma relação clara e transparente: ela é como eu e eu sou como ela. Um homem pelo contrário, tem sempre um fundo falso, não diria falso mas frágil, que me atrai e simultaneamente me repele. Até com o corpo fala outra linguagem. Nunca me consegui perder completamente com um homem. Mas deixa lá. No fundo, eu entendo, a culpa é minha e só minha. Às vezes é como se não tivesse um corpo. Ninguém que me abrace, ninguém que me afague os cabelos, ninguém que me acaricie, ninguém que durma comigo e nem sequer uns olhos que olhando para mim vestida saibam como é a minha pele, os meus seios, o meu baixo-ventre, a minha humidade e aquela força que me brota das entranhas em lava incandescente.

_ Quer que a leve a casa?

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Coarctação

Teima em não permitir que as vagas do interior aflorem à superfície. É mais civilizado afoga-las, embora quem aprende a reprimir-se encontre uma recompensa imediata, mas não acabará por reprimir só o supérfluo. A invulnerabilidade não existe, mas sim a sua ilusão, e não há maior ilusão de invulnerabilidade do que a que sente quem é capaz de se convencer que a catástrofe não o atinge. O inconveniente, é que tanto desprendimento torna-se inalcançável e geralmente a repressão, longe de talhar uma invulnerabilidade real, não representa mais do que uma defesa muito parecida à da terra queimada, a táctica de quem não tem outra forma de se defender do que ceder o seu território com a pretensão de que o inimigo se sacie e não alcance o centro onde se encontra. Quem assim actua, não é invulnerável. É tão vulnerável que se desprende do que lhe pertence, e no final o perigo não se detém e chega às portas da cidade, carecerá de exércitos e barreiras para lhe fazer frente. Reduz o campo da sua vulnerabilidade, mas não a elimina. Prescinde de quase tudo, inclusive do que não devia, e no final o que fica por defender é tão pouco que se reduz ao seu próprio medo. 

Suponho que não me levará tão a mal como isso se no fim de contas, espontaneamente, lhe perguntar: Quem és tu?

sábado, 1 de fevereiro de 2020