quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Amplexo

Aproximámo-nos e deixámo-nos cair na cama larga, lado a lado, em silêncio. Havia algo carregado de electricidade no mais fundo do seu peito e podia senti-lo dissipar-se lentamente. Coloquei os meus lábios na sua testa, depois na sua face e a seguir, empurrando-lhe a cabeça ligeiramente para trás, percorri-lhe o pescoço com a ponta da língua. O tempo transcorria em silêncio, depois ela soltou um profundo suspiro e sussurrou:

- quanto tempo demora fazer amor?

Os lábios que pronunciavam aquelas palavras respondiam suavemente aos meus. Enquanto as minhas mãos se moviam desajeitadamente debaixo da sua roupa. Numa cadência de movimentos suaves e lentos, acariciei-lhe o peito, senti a tristeza na sua pele branca, a sua excitação, o seu cheiro, o suor e os sons. A alma a perder as rédeas. O lume dentro de si. Um lume brando, mas em que não se podia tocar.
Tomei-a nos braços. Que mais havia de fazer?

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Unidade de queimados

Esta manhã acordei no inferno. Primeiro apenas sabia que tinha de escapar ao fogo na cama, depois ao fogo no chão e depois ao fogo no ar. Até correr para a porta não percebi: o fogo era eu, o fogo era eu próprio. E só fugindo de mim próprio conseguiria fugir das chamas. Havia ali forças com as quais não contava. Uma magia poderosa. Não pude impedi-la. Não quis evitá-la. Agora sou cinza.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Acendalhas

Em dias como o de hoje em que me permito regressar bem mais cedo do que é habitual e ainda debaixo da luz do dia, gosto de encontrar a casa vazia, fria, triste, escura. Recolher uns "cavacos" na arrecadação, acender a lareira lentamente e ficar ali a ouvir os primeiros estalidos da lenha a queimar. Tirar um copo e uma garrafa de Cognac de Charente do armário e deixa-los na borda fria da pedra que emoldura o recuperador de calor. Depois, quando o lume pega completamente, os pedaços de lenha começam a brilhar e uma chama tremulante, regular, começa a dançar por toda a sala, recolho a garrafa e sirvo uma dose generosa daquele néctar à temperatura certa. Entre uns tragos curtos, gosto de ficar por ali uns momentos de pé, como que a contemplar as chamas bruxuleando na vulnerabilidade da tarde pálida a ser tomada pela noite escura e gélida. Até que me sento na poltrona alumiado apenas pela incandescência da lenha e deixo-me invadir pelas ondas sonoras do sistema nervoso. Vibrações misteriosas que se misturam com o lembrete aflitivo, também ele mental, de que ainda não comprei um único presente de Natal! A diversidade dos seus ecos atordoam-me, por assim dizer, o espírito. A memória, essa, distingue o meio ambiente de um tempo de certo modo longínquo, tempo esse que se dilui até se tornar teimosamente indiscernível. É certo que o tempo se transfigura sempre de acordo com o magnetismo das pessoas que o viveram, porque as coisas não têm outro significado, para cada um de nós, senão aquele que lhe podemos atribuir - as coisas são como são ou foram como foram. O Natal é que já não é grande coisa. Mas, enquanto houver lume e alguns sorrisos para manter vivos, ainda vai acontecendo.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

sábado, 17 de dezembro de 2016

Do clássico jantar de Natal

Era bonita. Muito bonita, mesmo. Alta, longas pernas, ombros redondos e lisos e uma pele de grão mate que convidava a beijos e outras navegações. Mas a fronte e os olhos eram perigosamente grandes. Tinha lábios de adolescente. Apenas as narinas diziam mais. O encanto do contraste, de uma surpreendente violência, entre o seu penteado de colegial e a agitação inconsciente, carnal, das suas narinas. Ficava tão bonita com o vestido púrpura. Bonita e calada. Se não compreendia, não falava, não cultivava por isso qualquer desalento ou angustia. Quando falava utilizava indubitavelmente exclamações; e os seus relatos eram demasiado técnicos para que deles me tenha apoderado; ou demasiado flutuantes para que a minha pena desajeitada consiga reproduzi-los aqui e agora. Mas a fronte e os olhos eram perigosamente grandes, asseguro.

[Já o Joel da informática, a Amélia dos recursos humanos, a Pipa do marketing e o Morais da logística...são uns pândegos.]

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Conchinha

No fundo é disso que gostamos uns nos outros: o lugar vazio que cada um abre para que ali cresçam e se anichem as fantasias do outro?

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Enfunar

A verdade é que não existem planos que possam reger de maneira fiável o nosso relacionamento com os outros. Não há padrões fixos nem mesmo quando o sentimento primordial que nos governa seja o do afecto. Porque é que perante o mesmo estimulo, umas vezes reagimos com ira e outras com tolerância ou, inclusive, complacência? Porque é que às vezes uma coisa tão vulgar como contemplar alguém querido a segurar uma chávena de café pode precipitar-nos, segundo o dia, do agrado à repulsa extrema. Porque é que às vezes basta um olhar para que nos julguemos vacinados contra toda e qualquer desgraça futura e outras, pelo contrário, é precisamente o mesmo olhar o que faz com que nos afundemos na mais cega melancolia? Costumamos pensar em nós como seres imutáveis, baseados em códigos e gostos fixos, quando na realidade estamos em permanente luta connosco próprios. Dizemos frases como "amo-te" ou "não te suporto mais" e tendemos a crer que estas frases definem o nosso estado de alma, quando na realidade as alternamos como o vento - sempre em mudança de direcção.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Vermelhão

Há dias que nunca mais acabam. Vêm marcados a vermelho-vivo, talvez para que não esqueçamos que a arbitrariedade é parte medular da vida, sejam ou não merecidas as suas irracionais derivações. Dias fodidos, essa pedra basilar da nossa minha existência, ainda é o que nos vai fazendo homens. Vou nadar alarvemente.

Quem diz homens, diz mulheres.

Não posso deixar de admirar gente desta

Que desce de forma vertiginosa e assustadora ao patamar mais profundo da vida e por lá fica, de olhos bem abertos num exame escuro, tempo suficiente para perceber o que vê, o que toca: o horror, a angustia e a permanente sensação primordial do medo de ser humano, de estar vivo, de ter que viver e dar vida, de ter de morrer. Mas que, ainda assim, encontra um feixe de luz para lutar e intuir que um dia gostaria de cuidar de fazer do preto, do branco e do cinza amigos de todas as cores do arco-íris.

Hoje recebem o prémio Sakharov pela defesa notável que fazem dos direitos humanos.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Périplos


É sempre que regresso destes périplos, e já depois de as ter revelado, que descubro a insigne grandiosidade das minhas películas e enfrento então três sentimentos absolutamente complementares: a eclosão, o êxtase e a nostalgia -- praticamente simultâneos. 
Com a certeza, porém, de que hoje -- no tempo das selfies -- as coisas estão um bocadinho piores. O drama da individualidade é muito antigo, mas nunca foi tão tacanho!

sábado, 10 de dezembro de 2016

Quarto elemento

Amanhã vou a um sitio. 
Sempre que lá vou, vou como quem foge de casa. 
Tem muito chão, muito ar e muito fogo. Um dia qualquer ainda me queimo. 
Lá não tem mar.

(uma espécie de haiku)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Retardado

Não posso ler ou ouvir nada sobre este homem. O problema sou eu, bem o sei. Mas é que aquela espécie de tom decidido, ameaçador, prudente mas ainda combativo, a fazer recordar outras batalhas, tira-me do sério. Cinza. Será essa, talvez, a tonalidade mais frequente do seu humor: uma raiva subterrânea e quase fisiológica, como as camadas incandescentes por baixo da crosta terrestre. Sempre eminente, portanto. Em tempos ainda quis aprender a dizer adeus. Porém, nunca ninguém lhe ensinou o esquecimento.
Mas o problema sou eu, que no fundo também sou um retardado, bem o sei.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Há dois blogs, de natureza algo intimista...

... que eu não consigo ler como era devido - em silêncio.

A Olvido do Acontece a vida acontecer e a Alaska do Lodo Translúcido perdoar-me-ão com certeza.

Mas é que dali saem palavras que se retorcem e espevitam palavras, pensamentos que se retorcem e espevitam pensamentos, que por sua vez espevitam paisagens, não diria inóspitas, mas fragmentadas.
Ah, se soubessem o quanto eu gosto de fragmentos!

Masterchef

Anda tudo a comer só pratos finos. Requinte. Sabores. Texturas. Outras culturas. Diferença, dizem-me. Tudo certo, penso eu contrariado. O problema é quando nos convidam gentilmente para almoçar. Acabaram-se as pataniscas de bacalhau com arroz de feijão vermelho, acabou-se o polvo à lagareiro com batatas a murro, acabaram-se as postas de vitela barrosã. Agora é só coisas ao vapor, temperos com cardamomo do Malabar, molhos de mostarda Dijon, reduções manhosas de vinho Bordeaux, saladas de rebentos de soja, peito de frango desfiado com creme de ricota e outros manjares esquisitos regados com água de nascente à temperatura certa. Nunca se sabe o que vem para a mesa!

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Itália


Está salpicada de belas cidades, cada uma justamente famosa por alguma coisa, seja a perfeição das suas piazzas, o encanto do seu campanário, os frescos invulgares das suas igrejas, o saudável ar da proximidade da montanha, a sua localização junto ao mar, a vista das suas velhas muralhas, a incomparável bistecca servida no restaurante, outrora um mosteiro, um castelo ou uma quinta, as margens de um pitoresco lago, uma alameda de altos ciprestes, uma vinha. Tudo isto povoado por latinos, sabinos, úmbrios, samnitas, oscanos, etruscos, gregos, celtas, germânicos, sarracenos, normandos e... mulheres bonitas. Populista por natureza.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Frederico

A tarde cai fria e as nuvens esmagam-se contra o rio. As palavras, como a imaginação, não têm ossos, retorcem-se até criarem paisagens inóspitas, alamedas de densos arvoredos, bosques carregados de espinhos.
Pouco a pouco vão ficando poucas coisas em que pensar. Entretanto chega a noite e consigo vem o desvelo. E logo: a dúvida. Por último: a angustia. A culpa a perfurar o pensamento e o áspero som do silêncio. 

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Questiúncula

Li por aí que os deputados do Bloco de Esquerda há uns dias levantaram-se entusiasticamente a aplaudir um voto de pesar a um ditador morto, mas que ontem aquando da intervenção no Parlamento de um Chefe de Estado - vivo - de uma democracia vizinha se deixaram ficar, malcriadamente, sentados, desrespeitando a boa educação institucional. Não páro absurdamente de me questionar se não terei sido também um nadinha malcriado quando há dias o mesmo Chefe de Estado passou à minha porta e me chamaram para ir à varanda ver o Rei e me deixei sentado na poltrona a ler no Aleph de Borges o que me faltava do curto mas fascinante conto "Os dois Reis e os dois labirintos"? 
Depois saltei para o "Deutsches Requiem".

Santo padroeiro.

Mais vale confessar desde já que tenho um pacto com o diabo. Não é nada de extraordinário - uma pitada de niilismo social ali, um pouco de sabotagem comportamental acolá - e receio que faça parte da minha existência. Coisa de nada. Não inspira grandes cuidados.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Introspecção do mal.



__Deutsches Requiem, Jorge Luís Borges - O Aleph

Regata

Por outro lado as palavras "ir embora", que deveriam ter o efeito de um grande alívio, são quase sempre interpretadas pelas pessoas e pela sua mente baralhada como se fossem o tiro de misericórdia. Como se o mundo fosse um barco e as atirassem borda fora.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Teresa

Custava-lhe muito fazer aquilo. Sabia que estava a deixar tudo para trás. A mãe, Tecas - o gato maltês, a carreira que nunca lhe agradara, tudo o que fora a sua vida até aí. Mas aquilo não foi verdadeiramente a sua vida. Conseguia agora perceber que nunca passara de um reflexo das vidas de outras pessoas.
Apesar de tudo, já sentia saudades da mãe. Sempre irá sentir a falta dela, a força da sua persuasão. Fica a imaginar quanto tempo irá demorar a perceber que se fora embora. Do lado de fora da janela, Lisboa passa a correr. O ar está límpido e frio e os aspersores assobiam junto aos passeios. O autocarro segue com velocidade, uma sombra esguia que passa por entre as luzes da cidade e algures, no meio da escuridão parece capaz de dizer qual o momento exacto em que a mãe aceita a sua partida. Suspira e esconde o rosto nas mãos, sem dizer uma palavra. Nesse momento sente a tensão abrandar, subitamente. As outras pessoas que vão no autocarro não notam nada, mas durante este tempo todo, tem estado cada vez mais leve e mais vazia, até que agora, por fim, começara a sentir-se a emergir. Era apenas uma rapariga que vai passar pelo resto da vida como o vento.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

O radicalismo no amor

Aflige-me aquele género de pessoas que falam das suas paixões particulares com aquela singularidade em que tudo arde e tudo se consome. Aflige-me e faz-me sempre sentir simultaneamente invejoso e ligeiramente desconcertado. Sempre que pressinto o seu fogo lento por trás da cortina de uma conversa, não consigo deixar de perguntar a mim próprio se alguma vez na minha vida terei amado alguma coisa com o mesmo género de intimo conhecimento, com a mesma intensidade, com a mesma largura e fidelidade. Tenho a certeza de que nunca amei o que quer que fosse tão magnifica e magnanimamente como essa gente ama qualquer das suas pequenas coisas. O calor de cada uma das suas observações vem de uma labareda imensa! Que alegria não haverá nisso! Já para não falar daquela parte da fadiga e trabalho árduo que qualquer grande amor seja ele por pessoas, por cães, por gatos, por jardins, por deus, por futebol, pelo socialismo ou mesmo pelos próprios filhos, implica inevitavelmente. O amor não era uma coisa natural?

Rosas

Curiosamente já há entre nós aqueles optimistas cegos e que interpretam todos os acontecimentos a nosso favor, que vêem em todo o lado sinais de grandeza aparente e que o futuro, inevitavelmente, chegará por uma estrada forrada a rosas. Entretanto, nas ruas, o desespero é grande e aninha-se em todos os cantos. Não há chão para tantos pés.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Segunda-feira.


Levantou-se de manhã cedo. Tomou banho, fez a barba e contemplou intensamente o rosto no espelho, olhando para ele como se não lhe pertencesse. Podia ir sem receio.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Decantador


Não há nada como numa sexta-feira chegar cedo a casa, um decantador, um copo de balão e um terraço voltado para o mundo onde passar algum tempo sentado a ouvir o cair do dia, a agitação da chegada das aves nocturnas contra um céu cinzento, cada vez mais escuro. Uma certa solidão imposta e alguma paz é o que se precisa para reflectir. Impressões dispersas, pedaços de conversa, observações e opiniões meio formadas atravessam-me a mente, e uma sensação de tranquilo bem-estar instala-se, devolve-me a mim próprio e fico com maior consciência do prazer da própria companhia. Reclino-me na cadeira de palhinha que faz baloiço, beberico calmamente o vinho, e percebo que sou um terrível juiz de carácter que, com efeito, se vai enganando um pouco em quase tudo. Mas que, sozinho, debaixo deste cenário romanesco, esforçando-me por aceitar esta nova visão de mim mesmo que me permite entre outras liberdades nunca imaginadas, a de admitir que ainda há uma série de beijos e abraços por dar. E que isso, de entre todos os rigores de uma reflexão profunda, ainda é o que me sossega. Logo mais vou ao jazz.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

«Sou eu. Estou bem. Amo-te».


Já não sabia qual era o significado da primeira frase, a segunda era falsa e a terceira parecia já não ter importância nenhuma.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

«A rapariga no comboio»

Numa mão o café num copo plástico, na outra um croissant do qual mordisca apenas a ponta. Retira um brinco, atende o telefone. Um par de pernas cruzadas, sapatos de couro falso trançado e meias pretas mal esticadas, passajadas. Uma imagem a preto e branco que cheira a miséria e a esforço, a pequenos esquemas e a uns euros duros de ganhar, a coração que se aperta e a sonhos que se fazem esperar. Mirou-me com um olhar agudo. Tentei sorri-lhe. Não consegui o esboço. Éramos os únicos ocupantes da carruagem.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Esplendor

O dia de hoje parece uma ilha. Na manhã desta terça-feira, pergunto a mim mesmo se serei capaz de vencer a prova de viver rodeado de esperanças por todos os lados. Que maravilha o orvalho, que sol mansinho mas radioso, que brisa delicada, que estranho tremor o da liberdade e da expectativa! Parece que me basto a mim próprio. Os demónios, esses, parecem compensar o que os deuses vão tirando.  Logo mais a lua virá grande?

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Olá, bom dia.

Como estão? Cansadinhos, não é?  Foi muito Trump, muito Web Summit, muito Pedro Dias. Pois eu, apesar de tal como tantas outras pessoas que vivem este extraordinário momento da história da humanidade, não tenho, de forma alguma, a certeza do que está correcto e do que está errado. Por isso, se aqui e acolá vos parecer um pouco lento a compreender as dimensões politicas, tecnológicas, morais e sociais do que se está a passar, receio ter de vos pedir que tenham paciência comigo. Peço desculpa. É uma idade difícil.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Tríptico





Hoje morreu uma parte muito significativa da minha música. Talvez haja um deus acima. Um frio e triste aleluia.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Caverna

Por muito que nos oiçam e esmiucem as nossas confusões em fragmentos pequenos, tão pequenos que não possamos fazer outra coisa senão sorrir. Por muito que nos ofereçam música que nos comove, leituras de poemas que nos dizem que é de nós que está a falar, e é de nós. Por muito que nos ofereçam livros que vão para além da limitação das palavras. Por muito que nos mostrem caminhos que dão outros significados à vida. Por muito que nos possam oferecer, se não nos oferecerem a emoção da caça, aquelas cocegas na barriga e a certeza-incerteza de saber se a presa será ou não nossa. Nada feito.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Bosta.

Agora é definitivo. Desenvolveu-se hoje, mais do que nunca, a tese que reduz o mundo inteiro a uma espécie de massa bosta acrítica, destinada unicamente a regular a cotação do petróleo, fazer a vénia e desembolsar os prejuízos colaterais. A unanimidade da derrota previamente anunciada redundou numa bela trump(a). Ou bosta se preferirem.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

A imposição do cinza.

Recordo como se fosse hoje. Foi num dia cinza, cinza, cinza da cor do tédio. Atrás do mar, agitado, via-se um magote de nuvens presas no fim do horizonte a enclausurar o céu que ganhava a passos largos uma associação a reminiscência desagradável. A textura do silêncio em redor era de tal ordem que parecia destilado, depurado. Apareceu com a sua graça, com a sua ousadia e humor. Trazia algo de cândido e provocante ao mesmo tempo. A surpresa do diálogo ocasional a intensificar uma impaciência de mãos, os lábios agudizados pela chama ágil do olhar intenso, o cenário a oferecer conotações incitantes e a impaciência a não permitir grande margem para adiamentos, um braço invisível, tórrido, a indicar com delicadeza o túnel do pecado em direcção ao lugar de todos os sacrilégios, onde tudo correria na perfeição, sem quaisquer resquícios de outros apegos, mas apenas atordoados pelo sentimento de posse mútuo, pelo desprendimento, pela frenética simultaneidade, pelo infantil sentimento da realização momentânea. E assim foi. Num dia cinza, cinza, cinza da cor do frio.

Leitura


Meus olhos resgatam o que está preso na página: o branco do branco e o preto do preto.

__Herberto Helder - Bebedor Nocturno, poemas mudados para português 

sábado, 5 de novembro de 2016

Claridade



Clareou.
Vieram pombas e sol,
e, de mistura com sonho,
pousou tudo num telhado...
(eu, destas grades, a ver,
desconfiado.)

Miguel Torga

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Grau Zero

Há dias em que, em vez de se abrir um jornal, bom era entrar-se num estado de ausência absoluta. Pender para a aproximação a um sifão misterioso que nos aspirasse para um outro mundo, território de menos angústias, campo aberto a outras euforias desmedidas, barco sem amarras arrastado por uma corrente invisível, a derivar insensivelmente para o largo. Aprendendo-se assim a evitar todas as formas interrogativas e a articular frases e semblantes que não exigissem nem inspirassem nenhuma explicação, nenhuma justificação, nenhuma continuação.

Sistema nervoso simpático.


Já há muito que não via duas mulheres exercitarem-se na insinuação sarcástica. Há muito que não corava desta maneira, que não sentia tão vivamente o ridículo de que se cobrem duas mulheres fogosas quando tentam atingir a rival através de mordeduras idiotas, considerando a saliva um veneno e olhando de lado ao lançar as flechas da troça. Aceitar pegar nas armas do adversário para combater sempre foi um erro muito comum, contudo a pseudo-indiferença e o riso de ódio desenhados no rosto de alguém também está próximo de um espectáculo horrível. Vergonha alheia!

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Gasganete.

Da vida escolhia sempre o que era palpável, caminhos seguros, corrimões onde se agarrar. Ia sempre direito ao alvo. Trilhava sempre caminhos que passassem longe da ribanceira imaginária de onde alguns - os cabeças-de-vento - se lançavam com a ilusão de aprenderem a voar na vertigem da descida. Preferia sempre ancorar em terra firme. As nuvens não foram feitas para se andar sobre elas. Ria-se dos poetas repentinos, desconfiava dos boémios, dos noctívagos, dos apaixonados. Propunha-se sempre, e que ninguém duvidasse que o conseguisse, a descobrir os truques do mágico: como saiu o coelho da cartola ou a artimanha do ilusionista ao serrar ao meio a voluptuosa assistente. Nunca fraquejava. Só que um dia as picadas do ciume, da mesquinhez e da vingança estrangularam-lhe o gasganete, pagou caro o desprezo pela ficção, viu-se obrigado a fantasiar e não sabia. Só lhe ocorriam cenas de péssima qualidade dramática. Deixou de se bastar a si próprio. Está agarrado ao arbusto no meio do precipício.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Bruxas.

Puxou-me para si, depois empurrou-me bruscamente para cima da cama larga, deitou-me ao atravessado sobre o edredão, quis levantar-me, apertar-me nos seus braços, fazer-me sair de um mundo onde não tinha vivido para me arremessar para um mundo onde não vivia ainda; os seus lábios entreabriram os meus, conspurcaram os meus dentes, que tinha apertado, a língua demasiado carnuda assustou-me, o sexo, estranho, não se moveu - esperava ausente e recolhido. Os seus lábios passearam sobre os meus lábios: umas pétalas que me varriam de lés-a-lés. O meu coração batia demasiado alto e eu queria escutar aquela doçura, aquele adejar novo. Beija-me, pensava eu. Ela traçou um circulo à volta dos meus lábios, rodeou a agitação, colocou um beijo fresco em cada canto, largou duas notas excitantes, regressou, hibernou. Os meus olhos estavam redondos de espanto debaixo das minhas pálpebras, o ruído das ondas nas rochas era vasto demais enquanto ela continuava: descia nó após nó, por uma noite para além da noite até largar um travo de mel na minha boca que me fez saber, então, que tinha estado privado dela antes de a conhecer. Pão por Deus.

Poliprion Americanus

Dostoiévski deveria ter isto em mente quando definiu o homem como uma criatura que se habitua às coisas.

Ressonâncias.

Às vezes a vida não lhes dá aquilo que desejam, e esperam. Esperam pacientemente, inventam desculpas para continuar à espera, e inventam esperanças com que se alimentam. E o tempo passa e passa, e querem que o dia de hoje não dê lugar ao dia de amanhã, que não seja a continuação do dia de ontem. Às vezes, têm a perfeita noção de que os deuses vão permanecer inactivos. Às vezes, ficam ali a tentar ser já sem que o tempo exista. A aprender que a expectativa é o presente do futuro e que a salvação, às vezes, vem em comboios muito atrasados. Às vezes, acontece...

sábado, 29 de outubro de 2016

Já em 1881 Machado de Assis ensaiava sobre a polémica problemática do exercício da parentalidade e o consequente processo de subjectivação da criança.

«Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semi-demência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.»

Machado de Assis in Memórias póstumas de Brás Cubas

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Indiferença

Não sei como definir isto. Se é uma sensação ou um sentimento. Será possível que a ausência de sentimento seja um sentimento em si? Seja como for é um estado de ânimo que atordoa. A sua presença pressupõe a falta de tudo. Abre um vazio. Além de estranho pelo seu significado, é estranho pela sua natureza destrutiva. Indiferença! Que puta de sentimento sensação esta.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Russos.

Fiodor Dostoievsky -  «O eterno marido»
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Uma das coisas que se aprende com a leitura dos russos é que não há necessidade de nevoeiros e símbolos: qualquer realidade, quando é bem descrita, produz ela própria os símbolos e, com efeito, qualquer personagem ou objecto numa situação determinada, pode ser um símbolo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Fósforo

O amor é algo para ser merecido. O conhecimento íntimo é que estraga tudo. Entra-se primeiro naquela componente de amizade. Depois, da usurpação da identidade à luta pela exclusividade absoluta é um fósforo. Mas não é só no amor, no trabalho também.

(Fui comprar umas Caterpillar Kitson Safety. Que lindas são!)

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Sem abrigo.

Decidir, decidir, decidir. A vida não é mais que isso. E se não soubermos escolher, os factos escolhem-nos a nós. Sem uma palavra, sem uma queixa, só com o silêncio. É uma coisa horrível, perguntarmo-nos para que lado vamos dormir: é como estar expostos ao céu escuro e profundo, nus e indefesos por dentro, sem abrigo possível. Uma emoção negra. Uma unhada na alma.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Do debate desta noite.

No face, no fear and no loathing...
(Amanhã terei tempo para horrores. Hoje, não.)

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Um outro ícone da cultura americana e mundial.


De joelhos, num gesto brusco que não deixa margem para protestos, os jeans puxados para baixo a prender as pernas e aquela sensação de estar preso, apenas esbracejar, contorcer-se e proferir um chorrilho de palavras vindas directamente das entranhas, sem passarem primeiro pelo cérebro, sem qualquer filtro. "Queres mesmo que eu pare?» O polegar que desliza ao de leve pelas partes molhadas onde a língua já estivera. Um longo arquear de costas a catapultar para a frente um «não» absolutamente rotundo.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Em três dias...

...criei o esquecimento, mas também a recordação: um imenso território branco. Deve ser essa a cor da indiferença.

E então, já se decidiu se aquilo do Dylan é ou não literatura? A montanha já pariu o rato do imposto sobre os imóveis caros? Em que níveis estão o suspense e a vibração no caso do maluco de Aguiar da Beira? 

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Disgeusia.

Nos dias que correm, a gente da Rede gosta muito de travar batalhas -- e, melhor, de as ganhar -- sem sair do sofá, do computador ou do telemóvel inteligente. Barafusta, reclama, exulta, critica irónica e convictamente. Até regozija. Mas depois não consegue ler, ouvir, apreciar sem vertigem, sentir algum pasmo ou assomo. Estão, por assim dizer, moribundos, os seus olhos e ouvidos estão apagados. Mas a boca não. Questiono-me sempre absurdamente: que gosto lhes ficará na língua? Enxofre? Só se for.
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O grande Dylan lá ganhou o Nobel, não foi? Coitado, deve ter as orelhas arder.

Assobiando Hard Rains Gonna Fall

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Persianas.

As pessoas adormecem boquiabertas. Gosto de assistir impávido a esse momento de agonia em que toda a gente se retorce e evoca. Evoca o passado, vão-se fechando as janelinhas, umas atrás das outras, a escuridão entra-lhes pela pele, uma tinta espessa sela-lhes a vista, e ali fica a sua vida congelada à espera do dia seguinte. Depois deixo-me ali, silencioso, a mitigar sobre o seu despertar. Certamente uns dias levantam-se do abrigo atormentados por visões e espíritos, outros deslumbrados por uma música interior. A vida parece ser isto. Adormecer, despertar. Despertar, adormecer...

Ao cuidado dos Senhores da Academia.


Deixem-se lá de geopolítiquices e outras coisas que tal, está bem?

O Homem que contempla

©Chiahru Shiota

Vejo que as tempestades vêm aí
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,
batem nas minhas janelas assustadas
e ouço as distâncias dizerem coisas...

__R.M. Rilke, "O Livro das Imagens"

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Resolução 66/170, da Assembleia Geral das Nações Unidas

Reparei que olhava bem de frente, que não abanava as nádegas, que era uma rapariga de poucas curvas, aparentemente pouco sexy, mas com um sorriso, um sorriso que escancarava o mundo, e que a acendia toda e a deixava a transbordar sabe-se lá de quê!

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Isósceles

Estou aqui às voltas, como de resto a maior parte das pessoas, no espaço entre a vida a dois para sempre e a libertinagem, vou passando algum tempo a pesar opções. Por acaso até me apetecia falar em triângulos, mas normalmente as pessoas ficam todas eriçadas quando se lhes fala em triângulos - pensam automaticamente em traição, rivalidade, vencedores com sorrisinhos de satisfação e vencidos amargurados de testa enrugada - mas como não tenho a certeza de dispor de um vocabulário suficientemente rico em nuances para discutir triângulos neste momento, aguardo então por um ambiente mais distendido.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Vizinhança(s).

Já o do lado esquerdo, pensa retirar-se do amor como quem se despede do palco. Cansado de representar sempre o mesmo papel. Apenas o cenário muda. Sempre o mesmo papel: terno e inocente no prólogo, mortífero e mortificado quando o pano cai. Uma autêntica tragédia redigida por um autor desconhecido e cujos textos recita como um aluno de conservatório, aplicado e esforçado.

(Agora que o sol baixou, que sensual, que caprichoso, que magnifico é o efeito da sombra da sebe sobre o relvado: abraça, na sua forma sinuosa, os meus melhores sonhos, os meus desejos impossíveis. Só gostava que vissem. Estou tão constipado!)

Vizinhança.

Ela já não é nova, mas foi-o. Ele, nasceu velho. Nunca está contente. Nunca está aborrecido. É um homem alto, seco, louro. Ela é pálida e sem viço.

(Eu sou o vizinho engripado que, retido em casa, veio ao jardim apanhar um pouco de ar, mas que já volta para dentro.)

Chã de folha de laranjeira, rum, Borges, a voz desgraçada de Shane MacGowan, pingo no nariz e... uma insónia demorada.


terça-feira, 4 de outubro de 2016

Duplo mortal invertido com saída à retaguarda.

Nada em redor, a não ser o ar na plenitude do seu movimento e um reconforto absoluto. Os pensamentos flutuam lentos e retorcem-se grotescamente como uma mosca à procura de uma janela aberta. O mundo apresenta-se repleto de telhados e pontes que oferecem essa garantia. Podia simplesmente inclinar o corpo para a frente, suportar o minuto difícil da queda. Mas, e depois? inquiriu-se.
Um dia vê-se e não se sente, outro sente-se sem se ver, eis a eterna condição. Às vezes continua-se a ser já sem que se exista.

sábado, 1 de outubro de 2016

Chacota.

Eu se fosse americano estaria agora numa profunda reflexão do tipo: nós que fomos os primeiros a ir à lua, nós que inventamos a Internet, nós que mostramos ao mundo a bomba atómica, nós que descobrirmos a coca-cola, levamos à mesa os hambúrgueres, nós que preparamos o melhor atleta olímpico de sempre, nós que dominamos e marcamos a cadência do universo, não podemos continuar a ser gozados até Novembro. Mas como sou português, calo-me bem calado

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Fim de Setembro.

Apertámo-nos de novo um contra o outro, desejávamos engolir-nos. Estávamos despojados de tudo; da família, do mundo, do tempo, da claridade. Eu queria que ela, apertada contra o meu peito, aí penetrasse. Ela, por si, abafou os ombros na curva do meu braço, colocou a minha outra mão no rego entre os seus seios e disse: o amor é uma invenção esgotante. E assim foi.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Oxímetro.

Este mundo está muito previsível. Situações tão repetitivas. As pessoas vão, vêm, entram, saem, as portas batem, os amantes saltam dos armários.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Bolsa de valores.

Hoje, as pessoas encaixam com extrema facilidade -  com um certo ânimo até -  que a vida humana é algo sempre sem sentido e que acaba sempre mal, e que por isso temos de estar em paz com ela. Regular o chip para valores de alcance intermédio e prosseguir no melhor índice possível. Se os raios de luz são raros, ou apenas uma miragem, pois que se espere tranquilamente que eles surjam. Se a felicidade durável escapa, pois que nos resignemos e aproveitemos os momentos mais felizes. Se a paixão ardente se muda no caleidoscópio para outra coisa mais lenta, mais madura e menos temperamental, que se aceite de boa mente aquecermo-nos ao calor dessa chama mais suave. Mas se o amor, quando tentam prendê-lo nas suas mãos ou simplesmente nos seus corações, se esquiva ao seu enlace como a água por entre os dedos, porque na realidade não há ali ninguém, já não há viv'alma que consiga reconciliar-se com a ideia de amar o que encontra. O amor nunca basta. Deveria bastar. Afinal é só aquilo. É o que se tem. E cada um tem o que tem. Mas não, não há viv'alma. O amor é um papel fraco.

sábado, 24 de setembro de 2016

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Membrana

E depois a transformação do meu olhar não foi assim tão assustadora. Não creio, aliás, no significado dos olhares. Não creio que uma membrana, por mais fina e transparente que seja, possa reflectir o pensamento. Desagrada-me esta ideia (muito feminina) que cola o pensamento à mascara do rosto. É tão fácil manipular o paradoxo. Só uma mente de mulher pode imaginar que o pensamento influencia a carne. Mas é capaz...

Inconjurável.

Que adianta teres decidido esta noite que era tempo de não mais amar? Eliminar, uma a uma, todas as fotos. Apagar cada uma das conversas compartilhadas, palavra por palavra, letra por letra. Encaixotar, um a um, todos os beijos, todos os abraços, todos os sorrisos, lágrimas, caricias e olhares. Fechar tudo na arca funda da melancolia. Selar todas as palavras que não disseste e que ainda tens atravessadas na garganta e deixares-te adormecer... se não tarda vais acordar?

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Recado


(...)
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me...

__ Al Berto, Horto de incêndio - Assírio & Alvim, 1997

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Mortágua

Eles estão por toda a parte. Ocupam tudo. Na televisão, nos jornais, nos debates, nos congressos, nas sessões da assembleia. Nas decisões. De fato e gravata, pavoneiam-se, explicam e refazem o mundo que se obstinam em devastar, em pôr a saque para melhor o explorar. Por vezes, no meio deles, surge uma mulher ali plantada como uma hortênsia e... é isto. Este empenho comum, esta indignação partilhada.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Queres ser alguém nisto dos blogs..?

Aprende a dizer a palavra que enfeitiça, a arte de furtar corações vazios, a fazer olhos doces, a tornear um cumprimento. Aprende a apoderar-te de um aceno, a roubar um beijo antes de fugires encantado. Mostra o cão. Conta histórias. Recita poesia. Convoca o mundo e os seus mistérios, o sol e as estrelas, os deuses do mal e os anjos da guarda, enquanto os joelhos dos teus interlocutores tremem a cada lampejo da tua voz acariciadora. Depois, prossegue os relatos, molda o curso das histórias segundo o fervor que lês nos seus olhares. Vive em paz contigo mesmo. Dá um ar de veracidade às palavras. Apazigua a tua consciência. Deixa-te abraçar porque, além do talento de inventor de histórias, é preciso saber fazer cantar os corpos.

Classe média.

Se a injecção fizer efeito, irás ficar igual aos outros, com demasiado medo de quebrar as regras, contentando-te em desprezar quem for menos importante que tu, obedecendo às ordens de quem estiver acima de ti. E se não fizer efeito continuarás, aos olhos deles, uma aberração.

domingo, 18 de setembro de 2016

Correlações

Num país onde as altas instâncias judiciais dão entrevistas sobre processos mediáticos irresolúveis, num país onde as altas instâncias jornalísticas escrevem livros a revelar histórias pessoais que lhe foram confiadas off the record, porque é que o Big Brother não haveria de ser o programa mais visto da televisão?

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Por outro lado...

Não há nada mais mortífero do que a esperança, esse símbolo inequívoco de que já se perdeu tudo, aquela agonia alargada.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Sabem?

Aquelas pessoas com um repertório de tristezas que não se percebe ao certo de onde vêm, mas que não chegam a atingi-los completamente? Que viveram uma história de fazer chorar as pedras da calçada, mas que se recusam a enterra-la e que em vez de a guardar decentemente para si próprios, a utilizam a vida inteira para se armarem de coitadinhos, para que os tratem de maneira diferente e especial? Sabem? São os sobreviventes. É o que há mais no mundo.

Ou, então, é como diz Nick Cave: “há muito mais paraíso no inferno do que aquilo que nos tinham dito”.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Mental Sience Investigation

O bom disto de sermos ratos de laboratório é que às vezes também descobrimos coisas.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Hoje, depois da chuva.

Parece que me completo em cada escolha, em cada ideia pensada, a cada palavra dita ou escrita. Completo-me, imagine-se, nesse deus-demónio que me habita e murmura a toda a hora directrizes antagónicas. Completo-me no horizonte cinzento. Até me completo no não movimento. Contemplo sem ver. Completo-me caído na profundidade sinuosa de mim mesmo. Belisquem-me.

Tríptico



quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Florinda.

É amiga do espelho de pé alto. A sua vida é um prazer ininterrupto e requintado. Cultiva, com um prodigioso conhecimento técnico, as mudanças, as nuances, as variantes. A sua longa intimidade com as fantasias espontâneas, com os caprichos, com as contradições e os paradoxos, conferiu-lhe uma atraente série de aforismos proveniente do que faz questão de designar de filosofia de volte-face. Não sei como lhe diga que é um erro chamar filosofia à pátina que a idade foi deixando.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Postcrossing

Não é só o seu rosto em desalinho. É também aquele sorriso oblíquo que diz «vem» sem dizer nada. Das suas palavras ressoa um subconsciente ao rubro: poesia e prosa envolvem-se numa toada sem tréguas. Dos céus tomba um cinza copioso, uma bruma densa e escura abate-se sobre a terra num ambiente místico, quase crepuscular. Os gatos, esses, bem vivos, miam para os céus...

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Fantasmagoria.

Quando se fazia amor a dois, na realidade, podíamos muito bem ser três. Nós, o outro e o fantasma. Quatro, na verdade: vendo bem as coisas, porque é que cada um não poderia ter o seu próprio fantasma. Portanto, éramos dois para nos tornarmos em um, eis-nos quatro. Ou dez, ou cem, a porta ficou aberta, entrou quem quis. Não houve limites...


Mas o que eu queria dizer é que Mr. Freddy Mercury completaria hoje setenta anos de vida. Parabéns. Eu estou grato.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Feng shui.

Por estes dias de regresso à velocidade e violência o primeiro estranho aparece-me, logo pela manhã, no espelho da casa de banho.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Dissipação.

Cautelosamente deixei-me abraçar, e senti um certo desvanecimento. Sinto-me sempre algo constrangido com este novo hábito das festas e dos abraços. Até fui criado com eles, mas, por vezes, não consigo deixar de os associar demasiado claramente ao sexo...


depois, alternamos entre a praia e o parque, misturámo-nos com outras gentes, bebemos umas cervejas, vimos Peter Murphy e Peter Hook na mesma noite... enquanto ansiávamos pelos Waterboys, que haveriam de nos transformar numa tranquila multidão de velhos amigos a olhar as coisas por detrás das coisas.

sábado, 27 de agosto de 2016

Room to Roam


O que eu queria dizer era justamente isso: não estou preocupado comigo. Está tudo bem. Tenho tomado banho, escovado os dentes, bebido água. Meu coração continua a bater - insolente - como sempre.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Vilar de Mouros.


E se eu voltasse a fumar um charro?
Nos últimos 20 anos, tal só me aconteceu muito, mas mesmo muito raramente, pois sou demasiado gélido para procurar refúgio noutro lugar que não as minhas convicções. Todavia, se fumasse, é certo que um terrível abalo me percorreria o corpo e nada permaneceria da minha frieza. Ficaria momentaneamente irreconhecível, de olhos parados, esgazeados, os lábios frementes, os gestos e as palavras a denotar uma cínica sensualidade. Tentaria escapar-me, em vão, invocando a razão de sempre. Os outros lançar-se-iam rapidamente na orgia fria, que me repugna, mas que observaria sempre com vivo interesse, mais não fosse para lhes relatar depois entre risadas. Enquanto uns deixariam cair as pálpebras, outros tossiriam às primeiras baforadas. Por vezes fico até assustado ao constatar que, neles, a droga produz efeitos diferentes dos que habitualmente se verificariam em mim. Neles, os sintomas são os de acordar: os gestos da repugnância, convulsivos ou lentos, do combate contra a náusea, enquanto em mim cai a confiança plena, uma semiconsciência encantadora. Um espectáculo assustador: o homem que desperta suavemente e que seduz. 
E se eu voltasse a fumar um charro?

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Sem pelicula.

Hoje sairei por aí, verei tudo e não registarei nada. Se quiser simplificar, direi apenas que hoje me faltará a memória, esquecendo assim tudo o que possa constituir a estória diária de um ser humano. Verei tudo como se o visse pela primeira vez. Todas as impressões recebidas serão uma novidade e manterão intacto todo o interesse que me possam despertar. Hoje serei uma espécie de máquina fotográfica sem rolo. Não me cansarei das impressões agradáveis e as más nunca chegarão a acumular-se de forma a desgostar-me. Por outro lado, esta espécie de alheamento relativamente a tudo também não será de todo incómoda. Distanciar-me-à daquilo que iria ocupar-me de forma mais obsessiva, e a sensação dai resultante será, inclusive, bastante agradável.


"Fotografar é colocar na mesma linha a cabeça, o olho e o coração."

__Henri Cartier-Bresson

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Silente.

A folha de papel assusta-me. Não a folha de papel em branco, mas a folha escrita até meio. Escrever sempre me apaixonou, porque sei que tudo o que se escreve é em parte mentira. Na verdade os que escrevem sofrem todo o tipo de mutilações. Eu, por exemplo, tenho um pensamento que tem forma nos equilíbrios e nos desequilíbrios, nos sons, nos silêncio, nas pedras, nas cores. Por vezes escrever enfraquece-me terrivelmente o pensamento, afasta-me o espírito da palavra, bem entendido, da ideia. E por isso, às vezes, calo-me. Mas calado também não estou bem...

sábado, 13 de agosto de 2016

Outros Agostos.


O que é o homem sem liberdade
O! Mariana diz-me
Diz-me como posso amar-te
Se eu não sou livre, diz-me
Como oferecer-te o meu coração
Se ele não é para mim,

*Lorca recita o seu último poema, mesmo antes da sua execução, durante a guerra civil de Espanha em Agosto de 1936, por um pelotão de fuzilamento fascista.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Cerimonial.


Está impressionante lá dentro. Mesmo impressionante! Mulheres bonitas, todas bem vestidas e a sorrir umas para as outras. É outro mundo.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Asno

Embora seja esse o motivo porque vou escrevendo este relato: porque às vezes tem laivos de alguma beleza, é elástico, é vivo e encontro por todo o lado o leitmotiv do meu deslumbramento: o vício, as loucas tentações, a reflexão ou a violência, o amor ou a indiferença, de tudo me sirvo para viver. Com excepção da malevolência, pois ela nunca me habitou. O ódio não cria, destrói. Estou acima disso. Repito, estou acima da malevolência. São o desejo, a paixão, o desprezo, a repugnância, o que anima a minha vida. Contudo reconheço, também, a força e a fecundidade da indiferença, embora, por regra, esta palavra nada signifique para quem quer que seja. Nem para mim, que às vezes me comporto como um verdadeiro asno.

Inaugurando então a época das monções.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Arroteamento.

Dela quer sempre tudo. Ver todos os seus rostos, todos os seus medos, todas as suas audácias, aquele sentimento novo que inventa de cada vez que a volta do avesso como quem vira uma luva e que faz surgir em si territórios desconhecidos, para onde se deixa arrastar aterrorizado, voluntário e seguro de se aproximar de uma luz que o cega, mas que lhe fala de amor, de identidade, de terra por desbravar. 

Ainda há quem trabalhe em Agosto!

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Ide, ide.



Ide para os Algarves. Ide para Punta Cana. Ide, esgotai e esgotai-vos. Ide-vos encher de mosquitos. Ide, ide.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Silly Season.


Sendo esta, por natureza, a época do ano em que há mais emoções e momentos para evocar, concentrados que estão na zona escarpada das recordações, ali onde o fole da memoria se enche com mais frequência e menos vazios há a registar, não era preciso uma brasa destas. Só complica.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Lobos solitários.

É estranho como as catástrofes podem levar-nos a procurar conforto em coisas pequenas e comuns como podar a sebe do jardim, jogar à bola no relvado com o cão, ler um livro velho, andar a pé (que noite magnifica!), conversar ao telefone com um amigo sobre coisa nenhuma. No fundo são, provavelmente, as coisas pequenas e não as grandes como as rupturas sísmicas da nossa própria história pessoal ou as epifanias que nos mudam a vida, que nos mantém à tona. Sempre foi um acto delicado de equilíbrio o de lidar ao jantar com os cataclismos do dia. Temos, por um lado, os atentados, a morte, o medo, os desastres das guerras civis que grassam nos extremos do mundo, os assassinatos, já sem falar no catálogo de desgraças menores como os manifestos para reestruturação da divida publica e as bancarrotas pessoais ou colectivas, enquanto, por outro lado, há a irritação do café a pingar no sofá e do açúcar a entornar-se para cima do tapete da sala, transformando o terrorismo em novelas palpitantes e o açúcar entornado num drama absorvente, esperando assim que o mundo nos possa parecer menos fora dos eixos. Mas não está fácil. Isto está feio. Muito feio.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Deixem o Éder ir de férias descansado.

Discordo em absoluto desta imortalidade que se quer, à força, dar às coisas e às pessoas em todas as suas formas. O fim é requisito de qualquer existência. Da nossa existência, que é fugaz por definição e por necessidade. As coisas que realmente valem a pena terminam. A sua finitude é condição fundamental da sua importância e... da sua beleza.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Áurea

©René Maltête

Faz algum tempo que aqueles encontros fugazes não satisfazem nenhum dos dois. Em cima, o outro, pairando.

terça-feira, 12 de julho de 2016

Enquanto dormias.

A luz traçava linhas descontínuas no teu corpo. As minhas mãos, acariciando-te, desenhavam palavras que possivelmente nunca te direi.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Je suis Portugal.

Estive por lá em dois jogos e bem vi, bem o senti de perto. Aquilo é a mesma virgem, a mesma fé, a mesma música, o mesmo calão, as mesmas alegrias, as mesmas tristezas. Quase a terra. Bem se sabe que cada país tem uma razão de ser -- a França tem uma fortíssima razão de ser --, há-os amáveis e caseiros, frios e calculistas, divertidos e irresponsáveis. Em todos eles se vendem planos de protecção para enfrentar as catástrofes da vida ou da própria natureza, mas nunca protecções contra a nostalgia que se instala em homens, mulheres e crianças aos quais, mesmo depois disto, restará o consolo de reinventar a pátria, noite após noite, num misero prato de bacalhau comida. Ninguém mais do que eles merece esta alegria incomensurável.

sábado, 9 de julho de 2016

Movimento "Queremos ouvir os bloggers a declamar poesia".

Respondendo com atraso, como de resto é apanágio cá da casa, ao magnífico movimento criado por Dom Pipoco Mais Salgado.


A tua vida é a tua vida
Não a deixes ser dividida em submissão fria.
Está atento
Há outros caminhos,
Há uma luz algures.
Pode não ser muita luz mas
vence a escuridão.
Está atento.
Os deuses oferecer-te-ão hipóteses.
Conhece-as.
Agarra-as.
Não podes vencer a morte mas
podes vencer a morte em vida, às vezes.
E quanto mais aprendes a fazê-lo,
mais luz haverá.
A tua vida é a tua vida.
Memoriza-o enquanto a tens.
És magnífico.
Os deuses esperam por se deliciarem
em ti.

__ Charles Bukowski - The Laughing Heart