quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Anonymous

O blogger, tal como o vivente, não possui face. E ignoram que a face de quem escreve, assim como a de quem vive, é a que se estende, é a que se exprime pelas palavras de que se serve, que a face de quem escreve é, antes de mais, sobretudo, a face dos outros. A face de todos. E que a face de cada um é construída com opções, divisões, favoritismos, crenças, disparidades e paranóias.
Em Itália ─ onde tenho passado umas temporadas: oh pátria minha ─ insistem tratar-me por Giorgio. Eu, alienado que sou, não me canso de os corrigir: Signor Giorgio. Signor Giorgio, per favore. É que, seja em que canto do mundo for, faz toda a diferença.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Canção de engate

O passado é uma coisa da qual somos prisioneiros. Podemos fazer com o passado exactamente aquilo que desejamos. O que não podemos fazer é ─ afundados num sonho de imagens quietas ─ alterar as suas consequências. 
Vamos fazer o passado juntos?

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Trama fina

Senta-se erguendo o busto, depõe as mãos, não as coloca: depõe-as. E as mãos também falam: nem antigas nem fatigadas. Mãos em pleno voo. A sublinhar as palavras com esse toque de gestos. Gestos displicentes, subtis e amenos que se tornam quase imperceptíveis. Pressinto que, para lá da disponibilidade visível, procura enviar-me para uma certa contensão. Contensão. Não contenção. 

Náusea

Este tipo de episódios são coisas gastas, vistas e inúteis; e pessoas arranhadas, tristes, derrotadas, amargas e perplexas são habitualmente resumidas e encerradas num comentário de pressurosa solidariedade, em caixa baixa com letra minúscula e arredondada de jornal diário. Não fujo à regra: mete-me nojo. 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Método indutivo

Quem ousa defender este ultraje à condição humana?. Quem, alguma vez, vai resgatar, pela palavra, pelos actos ou pelo silêncio, esta infâmia e esta vergonha? Isto é a eterna imoralidade da História. História essa que só pode ser escrita pelos viventes - mas viventes de quê?, de que despojos?, de que charneira? Pois se a indignação for coincidente com o testemunho, aponte-se a responsabilidade a um sistema que, para garantir os seus privilégios, estimula e cumplicia-se com um repugnante mecanismo repressivo organizado, que mais não faz que estigmatizar. Uma máquina de bestialização articulada em nome de da igualdade e, alegadamente, contra a discriminação. Haja bom senso. E já agora bom censo.

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Fevereirada

"Há muito tempo que não fazia isto", disse ela quando voltou a falar. E foi tudo o que disse e disse-o numa voz segura, embora baixa. Porém, voltei a pressentir - ainda mais claramente - a brecha dentro dela; e isso evocou em mim uma ternura irreconhecível. Quando nos levantamos para irmos embora, ofereci-lhe o meu braço e ela aceitou-o, sorrindo. Depois, começamos a caminhar, deixando a praia para trás. Lembro-me nitidamente da sensação da pele dela, fresca e macia, sobre a minha. Nunca tínhamos estado em contacto por um período de tempo tão prolongado; a sensação de que o corpo dela era tão forte e no entanto pertencia a alguém tão frágil permaneceu comigo por muito tempo.

Hoje tive uma sensação estranha; senti-me em casa. Talvez isso se deva ao facto de ter vivido quase sempre uma existência transitória - mudando de dormitório para dormitório - e nunca tenha ansiado pela natureza instalada num único poiso, talvez se deva àquele terraço - um ninho de águias privado com vista para o mar, ou talvez se deva ao facto de estar uma manhã gloriosa de Fevereiro com um vento agreste do Atlântico que faz enfunar as árvores e as nuvens correr pelos céus. Fosse por que razão fosse, senti-me em casa.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Cognoscitivos

No entanto, nunca tivemos tempo suficiente para formar hábitos unos - à excepção de dormirmos nos braços um do outro.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Sem foto de pouco vale...

... mas do mesmo modo que a grande escritora e poetisa polaca Wisława Szymborska -- em referencia à "Leiteira" de Johannes Vermeer -- dizia que enquanto aquela mulher do Rijksmuseum, em quietude pintada e concentração, dia após dia, não verter o leite do jarro para a vasilha, o Mundo não merece o fim do mundo, eu digo o mesmo do nascer do sol que presenciei esta madrugada: enquanto uma luz destas iluminar o universo, os dias não merecem o fim dos dias, os homens não merecem o fim dos homens.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A(Chega)

O que verdadeiramente preocupa neles é a capacidade de tentar persuadir as pessoas a serem honestas consigo mesmas, fazendo-lhes ver que quando isso acontece elas obtêm a vantagem da surpresa. Uma vantagem táctica incomparável em qualquer insurreição. Porque são as mentiras que contamos a nós mesmos que nos tornam repetitivos, previsíveis e inconsequentes. É perigoso.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Préstito

O silêncio, entre os revoltosos ruídos do ser e do não ser. 

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Do verbo acossar

Cara redonda, nariz fino, arrebitado, os cabelos parecem fios de carrete e são negros, longos, encaracolados. Os olhos espreitam furtivamente pelo rasgo das pálpebras grossas, linces que se abrem. É esguia, mas robusta e astuta: aprendeu a defender-se das armadilhas que o mundo lhe estende. Aprendeu, também, o difícil equilíbrio em terrenos resvalantes: a vida é uma espécie de emissário de crueldades imprevisíveis, e uma mulher como ela foi por ela ensinada a tornar-se uma inveterada guardadora e defensora do seu próprio corpo. O seu corpo. A sua alma. A única propriedade privada que possui, que lhe pertence em regime de exclusividade. Já foi maltratada, já foi arranhada, magoada. Agora, dificilmente. Reage como um animal de acosso.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Pintar Fevereiro

Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma segunda-feira. Estamos em Fevereiro. Avançou sozinha, com os braços um pouco afastados do corpo, à espera. Não pelo seu parceiro, que estava a olhar para ela, absorto. Não pelo acordeonista, que ainda não tinha começado a tocar. Não de que outro casal se juntasse à dança. Ela estava à espera de ser arrebatada pelas forças dentro dela. Ela estava à espera de que essas forças viessem à tona. Calmamente, com os tacões ligeiramente no ar, o rosto aberto, as palmas das mãos viradas para cima, como que a ver se estava a chover. Quando sentisse o primeiro pingo, ela ia mexer-se.
Os pingos vieram! Rodou duas vezes sobre si, fazendo mais de vinte passos, e o seu parceiro, com as mãos esborratadas de tinta, juntou-se a ela.
Ela era indelével como o tom do corante. No entanto não era ela que tinha aquela cor, era o seu desejo - uma massa emaranhada de cores em todo o seu esplendor. Como se tivesse sido pintada ontem. Corante, magenta, laranja, vermelho-romã, escarlate, limão, verde-pistácio. Alvitrei, num sfumato fora do meu alcance, esbater a graduação, suavizar a transição de luz. Mas não. Quedei-me pela aplicação uniforme e levíssima da resina de Damar. Todas as cores acabarão por desbotar, mas por agora estão esplendorosas.