Vós que vos julgais capazes de encontrar palavras para contar o êxtase, a loucura que há em descobrir a única pessoa no mundo com quem podereis apagar o planeta, riscar o universo para aí vos instalardes solitários, carne e alma fundidos, no lugar do tempo. Absorvei uma premissa essencial que este vosso pobre leitor vos oferece graciosamente. A intimidade não se conta nem se confessa, partilha-se. Podemos ser dois, três, mas nunca estar sozinhos. Sem ninguém com quem a confrontar não há senão um saber higiénico do nosso próprio corpo, um conhecimento dos nossos desejos, manchas e vestígios nas roupas. A intimidade de si próprio e a do outro passa pelo rebuscamento de línguas e pelas secreções do corpo, pelas bocas e a saliva, pela glande e a vulva, os lábios, os orifícios. Confronto dos desejos em tempo real. Sem a carne dos outros nada sabereis de vós. Condenais-vos a nunca vislumbrar o que significa a intimidade, nem para vós, nem para ninguém, o conhecimento dela passa através dos corpos, não das palavras. Ó cronistas do sexo, à toa.
segunda-feira, 29 de abril de 2019
quarta-feira, 24 de abril de 2019
Património
Parece que afinal ainda importa comemorar, com virtuosismo, a memória e a fidelidade, a resistência e a música como alternativas à mentira e à escuridão, percebendo-se que a liberdade nunca será o paraíso perdido em que, por vezes, já nestes tempos novos, nos querem fazer acreditar.
(Sim, ainda leio o Blitz. Se é a mesma coisa? Não, não é a mesma coisa.)
(Sim, ainda leio o Blitz. Se é a mesma coisa? Não, não é a mesma coisa.)
terça-feira, 23 de abril de 2019
O homem-livro
"Agora ajude-me a descarregar os livros, por favor - disse-lhe Kien sem mais preâmbulos, assombrado com a sua própria ousadia. Para evitar qualquer pergunta capciosa, tirou da sua própria cabeça uma pilha de livros e passou-a ao anão. Este recebeu-a destramente entre os seus compridos braços e exclamou: - Ena tantos! Onde quer que os ponha?"
__Elias Canetti in Auto-de-Fé
Acabou a reflexão, acabou o jejum, voltai ao pecado
Cantarolai, vesti os linhos, longas saias dançantes, blusas justas, cabelos soltos ao vento, corpo ofertado ao luar. Distribuí beijos, caricias ao acaso. Sabei que o amor é um fluido que circula de um ser para outro fazendo desvios, é generoso e perde-se no caminho, pousa sobre corações solitários e deixa neles a sua marca, antes de florescer naqueles que elegeu. Ó pecadores, voltai ao pecado.
quinta-feira, 18 de abril de 2019
Sexta-feira Santa
Naturalmente Deus é apenas uma ficção da imaginação humana. Mas também é, por ventura, a sua invenção mais galvanizadora. Uma crença sem a qual a humanidade se sentiria perdida. Uma ficção sem a qual tudo o que restaria seria uma espécie de trivialidade virtuosa, no máximo, ou, na pior das hipóteses, e muito mais provável, uma queda ainda mais miserável na fornalha da ganância desmedida, da vulgaridade e do egoísmo ainda menos esclarecido; ou seja, aquilo que se define por Inferno - outra invenção. Creio que uma geração humana em cada duas ou, pelo menos, os seus supremos sacerdotes, perceberam a necessidade da existência desta ficção. E acredito que o problema é que a humanidade não compreendeu isso. Ao matar Deus, destruí a criação mais impressionante, mais afirmativa e a mais imaginativa da espécie humana. Fez, se quisermos, uma lobotomia colectiva. E o pós-lobotomia tem sido uma era amorfa, carregada de estupidez e mesquinhez.
Deus nunca existiu, mas não havia necessidade de o matar.
Deus nunca existiu, mas não havia necessidade de o matar.
quarta-feira, 17 de abril de 2019
A paixão segundo Tétisq
O que existe é um momento de desprendimento durante o qual se aclara o horizonte com cores impensáveis; a isto segue-se uma sensação de euforia por finalmente nos termos libertado, o mundo parece novo, aberto, colorido, como se o víssemos pela primeira vez; depois, vem o inevitável período da dúvida, o desesperado e sombrio recuo do arrependimento; só mais tarde, depois de as emoções terem retrocedido, somos capazes de ver com equanimidade a aberração cromática onde estivemos metidos.
terça-feira, 16 de abril de 2019
Paixão
A exacta diferença entre paixão, digamos assim, e adoração não interessa grandemente. Não interessa saber se me sinto enfeitiçado ou deslumbrado. Escrever "mon amour" ou "amore mio" em vez de "caso amoroso" não passa apenas de uma forma afectada de expressão. O que interessa de facto é saber que "paixão" é apenas uma palavra que nos permite descrever todo o espectro de cores que vai desde o rosa chã ao azul celeste, passando pelo preto, naturalmente. Isso é que importa.
segunda-feira, 15 de abril de 2019
Guerra dos tronos
Maria João é uma mulher pálida e sem viço. Anémica e caseira, à imagem dos personagens de romances anglo-saxónicos. Está morta. Ninguém a matou e não nasceu morta. Foi morrendo aos poucos estupidamente, como morrem as flores baratas. Ela já não é nova, mas foi-o.
João Maria nasceu velho. Nunca está contente, nunca está aborrecido. É um homem alto, seco, louro que vive afogado na dúvida sacramental. Um homem à procura de asilo nos braços de uma mulher; um homem de anseios irracionais, atormentado por um síndrome característico da infância. Tenta a todo o custo fugir da história da sua própria história - uma solene e glacial farsa.
Embebidos nas suas infelicidades secretas, tem dias em que sentem um aperto no coração, uma vontade fina que lenta e insidiosamente se vai-se espalhando pelos seus peitos. Estão presos nas malhas da tristeza. Há um turbilhão de deboche no mar morto dos seus corações. Mas o prazer é perigoso. O dever sim, ainda é tranquilizador. Há um modo a observar em cada família, basta consulta-lo, ilustrar-se a seu respeito e seguir o sulco cavado pela história ancestral.
quarta-feira, 10 de abril de 2019
Buraco negro
Fizeram amor com uma intimidade física que nem um nem outro alguma vez havia experimentado. O corpo dela já não recusava o dele. Ele fechou os olhos e os seus olhos fechados viam-na a ela. Os músculos dela, pronunciados pela magreza, e a frescura e macieza quase inanimada da sua pele reclinaram-se sobre ele expondo os seus peitos ao toque. A entrada entre as suas pernas estava molhada e dilatada mas, ao mesmo tempo, estranhamente rígida; fazendo lembrar - contra a sua vontade - uma ferida, conferindo ao seu sexo uma tonalidade violenta apesar da suavidade com que tentava movimentar-se. Sentiu o seu cheiro. Sentiu a sua respiração trepar dificultosamente das entranhas. Perto do fim, ela estremeceu - lamentosamente, quase mortalmente e o seu estremecimento desencadeou o dele. Sentiram-se simultaneamente saciados e envergonhados.
terça-feira, 9 de abril de 2019
Cuna
Sim, era inebriante. Isto é o que, olhando para trás e de uma forma reconhecidamente prolixa, eu penso da grande cidade. A grande cidade tornou tudo possível para mim. Mas não me fez, não podia ter feito, esquecer outras coisas tais como quanto gosto do arroz de ervilhas de quebrar aqui, nesta minha terra natal, cozido o tempo suficiente para adquirir esta cor rica e esta textura solta. Vou levar para o Fiodor.
segunda-feira, 8 de abril de 2019
Omniscientes ou observadores, pouco importa
Não é possível narrar sem nos contradizermos. Vivemos presos do calculo e, por isso, contamos verdades enviesadas. Calculamos e erramos com semelhante frequência, porque com frequência esquecemos que os outros calculam como nós e que os seus cálculos não coincidem necessariamente com os nossos. Nem sequer os nossos cálculos sobre um mesmo assunto são coincidentes. Cada vez que escolhemos um rumo e não outro, deixamos para trás partes de nós mesmos, e cada vez que contamos construímos uma história parcial onde essas possibilidades que demos de lado não aparecem sem antes serem convenientemente modificadas. Anulamo-las ou diminuimo-las ou, se o que pretendemos é lamentar-nos, empolamo-las outorgando-lhes uma importância que não tiveram.
quinta-feira, 4 de abril de 2019
Não é o Facebook, não é o Instagram
O que está a matar os blogs é a fria lubricidade com que os bloggers se estão a despir.
Penitencio-me.
Penitencio-me.
quarta-feira, 3 de abril de 2019
Inanidade
o longo dos corredores, no acaso dos compartimentos, no espelho da casa de banho, nas portas entreabertas, distingo por vezes, e sempre fugazmente, aquilo que poderá ter sido a família que ali habitou. Ainda ontem à noite, enquanto me entretinha no restauro de umas poltronas velhas e que foram resgatadas a uma casa também ela muito antiga, dei por mim a imaginar as noites, quando apenas subsistia o ronco de uma borrasca ou o sibilar de um vento mau, sou remetido a um passado que não foi meu, quando a mesma borrasca ou o mesmo vento os encontrava todos juntos sentados nestas poltronas, em volta da lareira. O ruído familiar, o odor comum, o cinzento de um céu, as vozes a cochichar, as crianças que crescem, as saídas na manhã azul e os regressos na noite negra, o prado à janela, o odor quente dos pratos que aquecem em lume brando, a telefonia que graniza na indiferença de outras misérias, os anos que desfilam.
Penso em tudo isso, embora não seja um sentimento que me pese, não são feridas minhas que se reavivam, não é uma estranha melancolia, nem uma espécie de vácuo na alma. Não sinto dor ou tristeza, mas uma estranha lassidão imprecisa. Na verdade meço o tempo que decorreu. Contemplo vidas antigas como se séculos me separassem do instante presente. Fico-me pela vacuidade de tudo isso. Na inanidade de umas poltronas meticulosamente restauradas. Embora me custe a entender o ânimo leve de quem se livrou delas.