domingo, 31 de maio de 2020

Palomar

A tarde vai cinza, quente e preguiçosa. Pela janela escancarada o Senhor Impontual vê telhados e telhados e, para lá deles, mesmo no limite, um manto de água chamado Atlântico. Pensa nas pessoas que passaram pela sua vida, mais um monólogo em voz alta do que outra coisa. Pensa nas pessoas e procura uma definição moral para cada uma delas. Sabe, o Senhor Impontual, que mesmo persistindo em nós próprios, mesmo dando um sentido individual à nossa vida, tornamo-nos pessoalmente responsáveis por muitos outros seres humanos que connosco se cruzam. E é isso: devemos persistir em dar um enredo individual, uma trama singular à nossa vida. Assim, delega-se nas ilusões a parte mais rica da nossa existência conferindo-lhe uma qualidade febril, inquietante, e uma considerável força de interrogação nos que tentam descortinar, no crepúsculo tardio, para lá do horizonte visual, a marca invisível que todo o homem traz em si, como um estigma que pertence ao destino. E que os destinos extraordinários são, por vezes, inseparáveis da ausência de destino.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Maio maduro Maio

Ergueu-se da cadeira de baloiço que já pertencera à sua avó, tirou água da torneira para o reservatório da máquina de café e fez-lhe um expresso espesso e aromático. Só ele bebeu; ela, não: tira-lhe o sono. Sentem conforto em terem-se um ao outro. Mas nada recordam em voz alta. Tudo o que foram é uma sombra. E esse conforto interiormente experimentado fá-los pressentir que, se algo for dito, tudo será considerado incómodo, e logo os vivos sentimentos de sossego e de paz se alterariam. Eles próprios vagamente percebem que são escombros de uma época naufragada, sem pertencerem, embora, a uma raça particular de pessoas. Nada de sumptuoso ou de magnifico há a recordar. Tudo o que se lhes refere é mediano, dissimulado e convencional. Apenas se tinham ajudado a construir uma teia de estradas que, a seu tempo foram elas também alteradas, substituidas por outras ou submersas pela força insubmissa de inesperados cataclismos. Durante os longos periodos de silêncio foram-se dando conta de que as pessoas, mesmo quando vivem em comum, estão muito mais separadas do que relacionadas entre si.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Sobre isso de adormecer com música

Pois comigo é ao contrário. Acordar com música sempre foi para mim uma verdadeira aflição. A música tem vida, tem histórias, tem peripécias em todos os seus recantos e gosta de se me imiscuir nas entranhas, de me revolver o tempo passado e presente, de me precipitar o futuro, de me infectar as veias, de me afectar, de me deixar ali morto por fora mas muito vivo por dentro. Então há momentos, como naquela estrofe "When it's summer in Siam and the moon is full of rainbows", que são como um fragmento de história que acontece ali naquele segundo, precisamente naquele instante e que por vezes não identifico qual é, porque ali, naquela fracção mínima de tempo, cabem dias e noites, meses e anos, conversas imaginadas, corpos tombados, desejos incontornáveis. E depois fica tarde, muito tarde... e já não há margem para mais atrasos. Que magnifico dia está hoje!

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Ferreira de Castro

Abordou-me com fingido desprendimento e muito para além da distância de segurança. Quis falar-me da sua nova companheira, evocou tempos não muito idos, encontros passageiros, que haviam rido muito com as tolices, as maliciosas alusões, as ternas lembranças. Falou com convicção, detendo-se nos pormenores, na explicação dos diálogos, sublinhando as frases com gestos e entoações. Andou de um lado para o outro, como um sonâmbulo subitamente acordado que manifesta grande surpresa e, ao mesmo tempo, uma espécie de excitante encantamento. A mulher que procurava retratar-me não era desejadamente saída de um qualquer milagre ou de qualquer fábula. Alta e morena, branca e submissa, ou loira e de cabeça erguida, fosse como fosse que a contava, a imaginava, a inventava, disse-a sempre cândida e doce, clara e segura, como se anunciasse a substância da própria felicidade. 
Há muito tempo que não via Ferreira de Castro. Ferreira de Castro não tem afinidade nenhuma com o cão, nem jeito para o passear, mas é uma tarefa sua. Foi um prazer.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Maria Eduarda

Surgiu e de repente tudo ficou silencioso e estático. Esboçou uma furtiva caricia, prendeu-lhe o rosto entre as mãos, afagou-lhe os cabelos, beijou-lhe os olhos e a boca ao de leve, abriu as pernas e num instante vertiginoso fê-lo encaixar-se na superfície levemente abobadada do seu ventre... e ali descansar. Depois ergueu-se, compôs o vestido, restituiu às faces a distante arrogância, sua defesa invisivel, caminhou com dignidade para a porta, embrenhou-se nas sombras da noite. "Sê feliz por ti mesmo", disse-lhe sentenciosamente.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Trovoada

Vem do lado do mar um sopro morno de vento e o eco da distante trovoada seca. Quando o vento é morno e as trovoadas são secas, correm pelos telhados e descem pelas ruas odores estonteantes que perturbam as pessoas e as fazem andar mais apressadas, silenciosas e sós. Os rostos tornam-se fechados e indiferentes. As portas e as janelas são cerradas como se a atmosfera estivesse carregada de inumeras ameaças e apenas no interior das casas as pessoas, sem coragem nem paciência, conseguissem preservar-se e defender-se desses perigos indistintos.
Ou então, apetece-lhes falar com os seus espíritos; ouvi-los. E, até o estrondo se extinguir, pouco a pouco, sobe-lhes à memória mil pequenas coisas que lhes sucederam e às quais atrubuem alguma importância derivada. Devem ser coisas emudecidas pelo tempo: factos, rostos, gritos, gestos, vozes sem nome, que talvez nestas alturas lhes impõem os seus mistériosos impulsos. Ou talvez esse momento possa ser uma forma de  solidariedade e de equilibrio para com os seus fantasmas. Sei lá. 

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Capitão-de-mar-e-guerra

A negridão no fim do horizonte é ameaçadora, mas recomponho-me fitando o mar com o extremado carinho de quem encontrou a coisa amada. Abdico (provisóriamente?) de gestos e palavras trazidos comigo de outras paragens. Detenho-me agora a adivinhar o poder misterioso das correntes, as rugosidades da água, a sua flora talvez secular, o desenho delicado e firme das ondas, o pulsar secreto da sua vida submersa. Invento até episódios e façanhas em que sou protagonista - um autêntico lobo do mar. Como se a acumulação de vivências tivesse quebrado o selo da ausência. Sorrio com sóbria gravidade, olhos cravados no interior da imensidão do nada: a correria dos pensamentos, das imagens, das recordações. A maresia a circular nas veias.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Simbiose


@Alexander Grinberg

“Estava iluminada por dentro, 
e a noite ia e vinha sobre os arcos e os tanques e as frestas."

_Herberto Helder

segunda-feira, 4 de maio de 2020

A obra

Nada é feito à imagem e semelhança do criador. E bem desejariam os homens que a obra fosse rigorosamente como eles. Assim o têm tentado, com obstinada aplicação: criações que levem a sua dedada particular, o seu apetite de harmonia e beleza, os seus pulsares e respirações. Mas as obras são produtos que os homens fazem para se sacrificar, mais tarde ou instantaneamente, às suas exigências mais cruéis. Assim como nenhuma casa é o homem que a construiu, assim como nada que o homem cria ou edifica lhe pertence como fiel imagem devolvida. Nem as mães - o mais superlativo dos criadores - o conseguem com os seus filhos.
Talvez haja quem pense: o homem nasceu infeliz por nada conseguir criar que seja seu.