terça-feira, 30 de novembro de 2021
Quarta parede
sexta-feira, 26 de novembro de 2021
Lugar, lugares
«Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo – diziam. E depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.(...)»
_Herberto Helder
terça-feira, 23 de novembro de 2021
CNN
Na sociedade em que nos coube viver, a aluvião de noticias, a cultura imposta, o ensino, as múltiplas opiniões produzidas por gigantescas fábricas de noticias e difundidas em regime de franchising, ao mesmo tempo que aumentam as possíveis explicações do mundo dificultam a tarefa de as interpretarmos por nós próprios, de acordo com a própria natureza, e com serenidade.
O processo de consolidação de uma sociedade de analfabetos funcionais está a avançar em passos muito largos.
quinta-feira, 18 de novembro de 2021
Sermão aos peixes
segunda-feira, 15 de novembro de 2021
O fabuloso destino de Amélia
Amélia cruza-se comigo varias vezes ao dia. Não posso deixar de reparar naqueles dois globos terrestres que, a cada passada de Amélia, parecem pautar o ritmo do Universo. Esforço-me por adivinhar qual será a diferença entre o rabo tapado de Amélia, que conheço até agora, e o descoberto, ao qual acrescenta beleza - ou talvez a extrapole - a minha inflamada imaginação.
Aquelas esplêndidas nádegas apresentam-se-me generosas e dóceis, entregam-se à minha contemplação, conscientes de que o facto de olhá-las e desejá-las pode embelezá-las ainda mais. Essas delícias, prometedoras, rutilantes e sumptuosas, se são prazenteiras e excitantes à vista manifestam que o serão muito mais ao tacto.
Bem sei que nem Rimsky-Korsakov ao compor o incitante Scheherezade nem Ravel ao compor o orgásmico Bolero, tocaram e acariciaram carne humana. As polpas dos seus dedos apenas batiam nas teclas do piano, o que já é deleitoso para um amante de musica, mas o que é certo é que Scheherazade e as demais mulheres do harém, e o amoroso e frenético par do Bolero, permaneceram intangíveis.
Não fosse a minha incipiente vocação artística e já seria um deleite desenhar, escrever ou musicar a gloriosa protuberância que se esconde para lá das saias de Amélia.
terça-feira, 9 de novembro de 2021
Renoir
Pareceu-me ser uma jovem atraente que combinara encontrar-se com o amante e chegara cedo. Mal tocara no aperitivo que pedira. Olhava atenta e firmemente para quem passava diante da sua mesa. Olhava em seu redor calmamente, avaliando o que via, mas sem o esforço óbvio de chamar a atenção. Era discreta e contida. Estava à espera. Eu também estava à espera. Cumprimentou-me com cordialidade como se tratasse de um amigo, mas raparei que ficou agitada. A sua voz era mais arrebatadora do que o seu sorriso: tinha bom timbre, era ligeiramente grave e um pouco rouca. Era a voz de uma mulher que se sente feliz por estar viva, que se entrega aos desejos, que é descuidada e modesta e que fará tudo para preservar o fragmento de liberdade que possui. Era a voz de uma mulher que dá, que consome: apelava mais ao diagrama que ao coração. O seu corpo era pesado, terreno. Parecia um Renoir. Mas os sons que lhe saiam da garganta eram como notas cristalinas de um violino.