Não há nada mais humilhante do que ser um assalariado. O teu destino é ser livre. Mas a servidão do assalariado é perversa: dá-te a falsa sensação de que és livre porque ainda vais dispondo de dinheiro para as tuas necessidades mais elementares. Não te queixes. Quem se queixa está a empurrar os seus problemas para os demais. Vai chatear outro!
segunda-feira, 31 de agosto de 2020
sexta-feira, 28 de agosto de 2020
Dickinson
Há quem seja fútil de propósito.
E profundo por mero acaso.
(reconheço-me, mas não me sossega.)
(reconheço-me, mas não me sossega.)
segunda-feira, 24 de agosto de 2020
Marginal
terça-feira, 18 de agosto de 2020
Um homem...
... que é um vigoroso animal insatisfeito, que pressente que a consciência dos outros homens está adormecida, reclusa numa passividade que não lhes permite, de momento, intentar ideias claras sobre a sua própria singularidade e identidade. Um homem que sabe que todo o ser humano é uma criatura única, irrepetivel e preciosa, com crescente predisposição para o espanto, mas que, todavia, nem sequer resolve a sua própria individualidade, vai agora atentar na insidiosa escalada populista que floresce a céu aberto... é um homem perigoso. Não é?
sábado, 15 de agosto de 2020
Deusa
Veja-o subir a rua com o pescoço resoluto, a cabeça erguida, embora o tronco ligeiramente curvado; o movimento dos braços dessincronizado, as mãos abertas, à defesa. Vejo-a e parece uma deusa a subir a calçada. Mas, repare-se, uma deusa também altiva e sobranceira, talvez irada com o que em seu redor ocorre, a ira encoberta porém, o olhar apertado, os músculos faciais tensos e compridos, a boca desdenhosa, passos firmes cujo ruído, o silêncio circundante logo absorve. Uma deusa mas occasionatus. Limitada como eu, claro.
terça-feira, 11 de agosto de 2020
Palomar
O Senhor Impontual andou pelo mundo ou por aquilo que se considera ser o mundo, e sabe não haver qualquer tipo de engano: tudo é um curso ininterrupto de sentimentos e de acções consequenciais. O lugar onde o Senhor Impontual se encontra agora - em casa - constituiu alguma excepção, mas não deixa de agudizar inquietações. Como é possível nascermos, vivermos (e morrermos) num mundo assim feito, frágil e instável? Mas nada existe de estoicamente definitivo; obscuros clarões de uma ambígua esperança surgem em grandes paradas citadinas, em ajuntamentos de rua onde se fala de um Estado empenhado na sanidade e nas liberdades individuais dos cidadãos, de estabilidade no trabalho e de tranquilidade nas consciências, quando na realidade o que se vê é um desfile de pessoas num movimento pendular entre a fuga e a nostalgia, como se cada um e todos tivessem o corpo e a alma desgovernados.
segunda-feira, 10 de agosto de 2020
GPS (VIII) - A caminho de casa
Beber um copo onde ninguém conhece ninguém, mas onde todos examinam as estaturas com muda apreensão e indiscreta curiosidade. Retomar a marcha. Avançar pela estreita faixa entre as esplanadas e o rio, aproveitar a sombra proporcionada pela correnteza de prédios antigos, palacetes e velhos solares. Comer melancia e melão. Observar as vendedoras ambulantes ajoujadas sob o peso das bancas amovíveis. Marginal acima, passo corrido, tronco dançante, cada uma delas possuindo uma maneira de andar, seios e nádegas soltos, voluptuosas. Às vezes param e miram com velada tristeza as vielas outrora pejadas de gente. Observar as subtis rotações das coisas, os relativos destinos,a reverberação do sol nos vidros das janelas, o voejar de pombos em bandos, os murmúrios imperceptíveis, o amargo da dúvida, a explosão das certezas, o chiar dos eléctricos nos carris, os pregões, tudo para esvaziar a terrível sensação gelada de um mundo adormecido, aquiescente.
quinta-feira, 6 de agosto de 2020
GPS (VII)
Os dias rumam, consomem-se, remontam e impõem a força indistinta do que tem de ser. Os dias correm, cobertos de demora, de memória, e a sua aparente harmonia parece nascer de um pudor secretamente doloroso e melancólico. J&B, chamemos-lhe assim, meus ocasionais companheiros de viagem, dissipam suavemente os dias, desperdiçando as horas, o tempo, num árido afastamento um do outro. E nenhum deles faz um mínimo esforço para derrubar essa parede de indiferença. Lêem jornais e livros, trocam frases curtas, quase monossílabos, e essas relações concisas exprimem não só um orgulho acossado mas também um desafio escondido. De certa forma, sabem como utilizar o silêncio ou os frágeis factos de somenos para se irritar surdamente um ao outro. São pessoas que têm a ver com o mundo, com as estradas, com os rios - esses caminhos líquidos. E são igualmente pessoas que têm a ver com uma espécie compacta de solidão, a solidão dos diferentes. Talvez seja isso que os torna indiferentes.
terça-feira, 4 de agosto de 2020
GPS (VI)
Agradarmo-nos de uma sombria calma, deixarmo-nos envolver pela plácida sucessão dos dias que ninguém atravessa, que não dá qualquer sentido a cada encontro, que nos faz esquecer o gosto das antecipações, que nos liberta de promessas, que nos impele a mansas displicências, que nos envia os sentimentos da indolência e da letargia, deixar de lado os deveres que a consciência - esse território pantanoso - nos recomenda, não é viver na solidão. É gostar dela para fazer algumas coisas. É, por vezes, lutar contra moinhos de vento.