quarta-feira, 26 de julho de 2023

Adosinda

Barcelona. Ramblas. Quarto 600. Sexto piso. Adosinda já entrou. Antigamente devia fazer parte do sótão do prédio. Tem o tecto inclinado. O ambiente é de um luxo acolhedor. As paredes, os cortinados e até o edredão da cama são de um branco muito espesso. Adosinda está numa nuvem.
À direita há um quadro cinzento, uma aguarela do jardim e da fachada do hotel que lhe recorda o efeito do seu primeiro ataque de ansiedade: a tinta diluída. 
Em cima da mesa do pequeno almoço está um livro "Universo Dali". À esquerda há uma escrivaninha com um prospecto " Museu Picasso". E claro, há as janelas. Foi por isso que veio. Duas janelas discretas que dão para uma varanda de balaustrada muito baixa e perigosa. 
Ao fundo está o mar. Manso. Esverdeado. O ar está abafado. A luz, azulada, fraca, deixa antever a chegada da noite. Apagou as luzes do interior, abriu um pouco as cortinas e aproximou um cadeirão da varanda já iluminada por dois apliques na parede com uma luz difusa, morna.
Demorou cerca de vinte minutos a sair. Tem o cabelo molhado, acabou de tomar banho. Tem uma blusa de seda com renda que parece uma camisa de dormir e que lhe dá um ar de repouso sedutor. 
Distendeu-se na poltrona. Numa cadência de movimentos suaves e lentos, afaga o peito, sente a tristeza na sua pele branca, alguma excitação, o seu próprio cheiro, o suor e os sons interiores. A alma a perder as rédeas. O lume dentro de si. Um lume brando, mas em que não se podia tocar.
Adosinda nasceu para  tocar, não para ser tocada. Para observar, não para ser observada. 

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Projecto de Alvenaria

Ó bom-gosto dos homens, quem seria capaz de te fundar sobre o raciocínio? Quem ousaria usar-te somente conforme os princípios da lógica? Tu existes e não existes. Tu és e não és. Partes sempre de matéria díspar.
Não queiras inventar um palácio onde tudo seja perfeito. O bom-gosto é virtude de curador de museu. Se fores a desprezar o mau-gosto, não terás nem pintura, nem dança, nem palácio, nem jardins... nem salário.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Rui Rio

 É odiosa até mais não se poder a ironia, que não faz parte do homem, mas sim do cancro.

Morreste-me

Fiquei insustentavelmente mais pobre, apesar de toda a riqueza que me deixou.

quarta-feira, 12 de julho de 2023

O outro

Usam um léxico especial, feito de carinhos e palavras imbuídas de brandas melodias, gestos e hábitos muito próprios a conotar a relação proibida, rituais imperceptíveis que, certamente, precedem calorosos encontros carnais, uma espécie de sociedade secreta onde não entra quem quer que seja. Um dia chegará o latido repentino, a sensação que jaz silenciosa, o choque emocional, a queda da pedra basilar -  a consciência da condição. Ainda haverão de tentar fazer tábua rasa, alienar-se, ou escapar à angústia que trazem dentro de si, afundarem-se, desaparecer, desligar todos os sentidos para não perceberem aquilo que vão apreendendo, ou que receiam apreender, no ambiente circundante, adormecer para só despertar quando o pesadelo da perda já se tiver desvanecido. Mas o cálice amargo da culpa não admitirá meias medidas e será esvaziado até ao fundo, transformando "templos" de amor em "infernos" de má consciência.

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Moscatel quente

É que não foram assim tão poucas como isso as vezes que o Senhor Impontual viu o virtuosismo enganar as pessoas. O Senhor Impontual, que tenta governar-se por si próprio, aprendeu a sondar a profundidade dos corações virtuosos, para só ao objecto digno de estima dispensar a sua admiração. Mais não faz do que negar essa veleidade às feridas de exibição que empolgam algumas almas virtuosas. Assim como também a nega aos labiosos, e além disso aos muito labiosos.
E o Senhor Impontual sabe muito bem porquê.