sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Virgínia


    Dias de rigor...
em que o dessossego é tanto tanto tanto
que se transcende do próprio corpo 
           e vira canto.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Champions League

Ela pediu um café com leite e deu conta dele com pequenos goles, até ficarem no fundo as marcas castanhas e o açúcar por dissolver, que é o que agora remexe enquanto fala com ele. Tem o queixo apoiado na outra mão, com o braço perpendicular à mesa, e o fino cachecol, que na rua enrolava com três voltas, cai-lhe agora pelos ombros como um adepto de futebol colocaria o seu para mostrar o símbolo do seu clube. Tem a gabardina aberta e os três botões superiores da camisa desapertados. Vê-se-lhe o pesponto do soutien a rebentar pelas costuras e ele sente vontade de mergulhar a cabeça nele, para afastar a tempestuosa conversa que se avizinha, mas com a mesa pelo meio optou por passar-lhe a mão pela mão. Jogada de antologia. A valer três pontos preciosos.

sábado, 24 de outubro de 2020

Creme Brulée

Para lá da vidraça, o mar ao fundo, revolto. Do lado de dentro, cigarros e isqueiros sobre a mesa. Cada um pede um prato diferente para poder debicar o do outro. Ela, alta, com cabelos negros e frisados, as faces de quem gosta de rir, sobrancelhas de mulher minuciosa, que procura algum sentido para a vida, uma direcção, um significado, um gosto verdadeiro. Não o sentido único de que os fatigados, os resignados, se servem para não terem de lutar. 
Ele acende um cigarro, pousa o isqueiro, aspira uma grande baforada de tabaco, marca uma pausa, solta um sopro, dispensa o leite creme queimado, fita-a nos olhos sem desviar o olhar. Deve estar com medo. Tenta permanecer mole, doce, sem varejar com os braços e as pernas, fazendo um tremendo esforço para permanecer aberto, disponível.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Poltrona de Orelhas

O que nos protege do olhar alheio, por vezes, é o que congeminamos no nosso cadeirão favorito enquanto lemos, ouvimos música ou olhamos o declinar vespertino da luz através das janelas cobertas de cortinas de linho. Estamos em condições de consentir espaço para mais alguém além de nos próprios? A que padrão obedece a perenidade do nosso silêncio? O que esperamos? 
Há gente capaz de tudo para conseguir uma só coisa. Há gente que cede tudo e se reduz a um balão de ar, desde que os deixem ser senhores daquilo a que dão relevo.

Chega a ser... não direi humilhação, mas uma intromissão que nos oiçam a música da nossa vida.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A máscara e o mascarado

É ridículo ser um ser que foge. Alguém que tenta esquecer, mas que não sabe o que fazer com a recordação. Alguém que se furta e esconde e do seu esconderijo observa e engana, que desconfia, que recorre a miragens, alguém tão incoerente ou tão frágil o suficiente para se entregar aos dias deixando-os passar. Alguém que não sabe como enfrentar a vida e tão estúpido ou tão inconsciente o suficiente para não se sentir derrotado. Alguém a quem não falta a esperança, mas incapaz de a construir por si mesmo, alguém que prefere esperar apesar das incertezas da espera, alguém que confia que se encontrem as soluções sem a sua intervenção. Alguém que sente medo. A quem atemoriza a passagem do tempo, mas que permite que ele decorra vazio. Alguém incapaz de se esquecer de si mesmo, e suficientemente fátuo para se deleitar com a temeridade.

É ridícula esta inata catarse aristotélica da teatralidade da limitação e do renascimento, da máscara e do mascarado.
Mas...
quid faciemus?

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Observatório

Ele, tudo o que desejava era sentir-se um pouco mais próximo e com essa intenção levantou o braço e acariciou-lhe a nuca que o cabelo apanhado com duas trajectórias deixava a descoberto. Ela, deixou-se acariciar, e pouco depois ele culminou a caricia colhendo entre as polpas dos seus dedos o lóbulo da sua orelha esquerda. Notou-se o seu estremecimento pelo eriçar com que a pele do pescoço respondeu. Até aí tinha mantido o olhar baixo, mas então levantou-o sorridente e, por entre o barulho dos talheres das mesas vizinhas, julguei ouvir um ligeiro suspiro de aprovação ou de rubor que aspirava pelo nariz. Que espectáculo comovente o de um corpo a ceder a uma caricia! Surpreende-me a rapidez com que uma caricia persuade. Onde as palavras fracassam basta um toque da pele. Uma caricia significa o que é, busca uma emoção imediata e poucas vezes se presta a ser mal interpretada, mas pode ser cruel se os actos posteriores não acompanharem a calidez que a caricia iniciou.

sábado, 3 de outubro de 2020

Palomar

Neste contingente estado novo, o Senhor Impontual adquiriu um hábito, uma espécie de passatempo favorito para os seus dias de feriado: viajar nas viagens dos outros, conjecturar sobre os seus percursos, os seus destinos, tentar adivinhar o sentido banal de conversas soltas, decifrar aquele sorriso invulgar, desvendar o significado daquela sombra, descortinar um trejeito ténue e insurgente ou o que contém a flexível doçura daquela voz, acompanhar com os olhos umas pernas com um passo de sessenta centímetros, observar uma ou outra alma a perder as rédeas, dar espaço ao esquecimento, mas também à recordação - esse imenso território branco, sentir a textura do silencio enquanto decide para que lado vai dormir.