sábado, 31 de dezembro de 2022

Resoluções de Ano Novo

Esperar pelo sol, lidar com a factura, patinar no silêncio, chegar a tempo.
Ir a Beja comer uma sericaia.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Questiúncula

Gente empenhada no bem comum, portadores da indignação partilhada, que estais ali entre os brandos agitadores de rua e a pequena burguesia estabelecida, sofredores em silêncio, amortecedores da nação, donos dos votos oscilantes... estais preparados?

sábado, 24 de dezembro de 2022

Outra vez Natal

Um decantador, um copo de balão e um terraço voltado para o mundo onde, ainda antes da azafama natalícia, passar algum tempo sentado a ouvir o cair do dia, a agitação da chegada das aves nocturnas contra um céu cinzento, cada vez mais escuro. Uma certa solidão imposta e alguma paz é o que se precisa para reflectir. Impressões dispersas, pedaços de conversa, observações e opiniões meio formadas atravessam-me a mente, e uma sensação de tranquilo bem-estar instala-se, devolve-me a mim próprio e fico com maior consciência do prazer da própria companhia. Reclino-me na cadeira de palhinha que faz baloiço, beberico calmamente o vinho, e percebo que sou um terrível juiz de carácter que, com efeito, se vai enganando um pouco em quase tudo. Mas que, sozinho, debaixo deste cenário romanesco, esforçando-me por aceitar esta nova visão de mim mesmo que me permite entre outras liberdades nunca imaginadas, a de admitir que ainda há uma série de beijos e abraços por dar. E que isso, de entre todos os rigores das reflexões profundas, ainda é o que me sossega.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Obelisco de Buenos Aires

Vejo os seus olhos, uns olhos felizes a fixarem-se no firmamento, uns olhos dispostos a fugirem para outro universo. As pernas pendem do seu tronco ajaponesado, enfiadas numas botas de futebol enrugadas, umas botas de joelhos inflamados e tendões torcidos. Aquele homem já nem se contenta com ser anão. Também é gigante e disforme. Parece um personagem de Goya pintada por Picasso.
Empunha o troféu. Neste momento, eu não teria conseguido compreende-lo, se não o tivesse visto com uma bola colada no pé. A mim esse homem de taça ao alto não me aterroriza. O que me aterroriza é a parca possibilidade de um dia outro homem colar a bola no pé e, por conseguinte, parecer-se com ele.

sábado, 17 de dezembro de 2022

1997

Ouvi um ligeiro grito, em seguida o meu nome pronunciado a meia voz, depois, mais nada...e senti os lábios queridos colarem-se aos meus. Tive a impressão de que a alma me fugia! 
E fugiu. Para longe.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Cristiano Ronaldo

Nos momentos de depressão, a pátria é o lugar onde somos livres de falar mal dos outros. Contudo, de vez em quando também chegam rajadas de solidariedade. Quando isso acontece, compreende-se a dor do desterro, porque fica-se a compreender o que é a pátria. A pátria é não estar sozinho. Na ascensão e na queda.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Santíssima Trindade

Três senhoras de idade avançada chegam à minha porta e tocam a campainha. Uma delas traz vários folhetos na mão. Outra traz um caderno e um lápis. Da terceira apenas pode ver-se à flor da pele a transcendência que emana da sua autoridade pessoal. As três parecem papagaios dissecados, pássaros sem vida mas ainda com cores. A recomendação silenciosa da minha consciência não era necessária, porque estas senhoras são o tipo de mulheres que só produz nos homens recções cavalheirescas.

__ Bom dia Cavalheiro - dizem as três em coro.

__ Bom dia -  retribuo.

__Somos de um movimento católico com mais de 50 anos. Focolares, conhece?

__ Peço desculpa mas não estou interessado. Nem sequer sou católico. Sou ateu.

__Ah, não se preocupe. Deus é democrata. Não reserva o poder para si, mas distribui-o por uma trindade ministerial benevolente. Pai, Filho, Espirito Santo que nos dá pão, liberdade e justiça. Não lute contra Deus. Deus é três pessoas diferentes. A luta é desigual.

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Reticências

Não conheço hipocrisia e estupidez maior que a dos que escrevem a palavra puta só com a inicial e três pontinhos. Esses moralistas imorais ficam com o pecado e sem o género. Esta é a época da decadência não só da língua, mas também do espirito. A época em que os escrivas resolveram cortar à palavra as últimas três letras. A época em que a filho-da-putice (em toda a sua abrangência) é nada mais nada menos do que um ónus que envergonha não apenas os escolhidos.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Questiúncula

Marcar uma greve para uma sexta-feira e, ao invés de se manterem no local de trabalho em defesa da causa, irem para casa descansados gozar o fim de semana prolongado por conta da nobre iniciativa, que poder confere à classe?

Já ninguém acredita nos políticos, mas eles sabem bem o povo que têm.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Opinion Makers

Vim cá só para informar que estou muito feliz por não ter opinião fundamentada sobre o caso Cristiano Ronaldo ao qual não dediquei um minuto do meu tempo. E dizer ainda que devíamos todos experimentar mais vezes esta coisa tão aprazível que é não ter opinião sobre tudo e mais um par de chancas. Estou fã. Experimentem.

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Ablepsia

Ao olhar em redor, compreendo até que ponto pode um homem interpretar em certas ocasiões os sentimentos colectivos. Por uma vez na vida, os políticos querem dar-se ao luxo de terem um preso seu, um preso para mostrar à justiça.
A mim já não me interessa a politica. De modo geral, começo a alhear-me desta liberdade de gritos insensatos, de favores pagos, de indolências trágicas, de suficiências grotescas. Embora não deixe de me surpreender e magoar este mundo que me é dado a ver ultimamente e que os meus olhos envelhecidos quase não reconhecem.
De tudo o que tive de fazer hoje, o mais fácil foi convencer-me das razões que justificam estes tempos. Aceito-as sem grandes objecções. Acho que o faço porque não me sinto muito à vontade no papel de homem que se vê obrigado a cumprir a sua cegueira.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Ele aí está...

Motivando e estimulando o funcionamento zeloso de uma corte de indivíduos dedicados à cegueira da oportunidade. Ele aí está. Eles aí estão. Suspensos do olho frio e do sorriso breve daquele homem que durante trinta anos nunca se enganara e raramente tivera dúvidas e que sempre convocara Deus como sua testemunha abonatória. 

Valha-nos o Senhor dos Santos Passos

sábado, 15 de outubro de 2022

Café Central

É engraçado, a partir da esplanada, observar os homens do café. À primeira vista, parece que a liberdade é passar o dia no café. Olhando com mais atenção, os homens do café parecem presos, amarrados às cadeiras onde se sentam e às mesas diante das quais bebem ou comem ou falam. Apesar de ser ainda relativamente cedo, é evidente que não falta quem beba aguardente a esta hora. Os que o fazem tão cedo bebem-na em chávenas de café, de forma que tudo se faz de acordo com as mais severas exigências da moralidade pública. Contudo, a maioria dos clientes bebe café em chávenas pequenas que fumegam ao longe, no nevoeiro, como chaminés de barcos de brincar.

As horas passam depressa nos cafés. Porém, a fisionomia deste estabelecimento não muda com a passagem das horas. Também não muda o barulho, que é sempre a mesma sucessão de sons sincronizados no volume da estridência popular. Não fosse porque, indubitavelmente, alguns homens se levantam e vão embora, podia dizer-se que a humanidade incrustada no café é apenas uma, porque é sempre a mesma.

No café os homens olham para a televisão, olham para os tanques, olham para o carros de assalto, olham para a guerra. Não há duvida que aquele aparelho de opressão lhes diz muito. Voltam a olhar para a televisão, escrevem algumas palavras no telemóvel, levantam-se e vão telefonar, regressam aos seus lugares. Continuam a beber café, numa tentativa de darem aos seus nervos o estimulo que não obtêm pelo simples facto de parecerem homens livres.

As mulheres, parece que não foram admitidas neste antro de ócio. A falta de qualquer manifestação de ternura feminina dá ao café um carácter acertadamente misógino. Para além disso torna o estabelecimento ainda mais sombrio. As mulheres passam na rua sem olharem para o café. De imediato um horizonte de pescoços ávidos, quais pescoços de bonecos ventríloquos, estica-se em direcção à rua e começa a farejar no ar a essência efémera do perfume que passa, abrindo espaço, entre o peito e as costas, para o próximo café.

Da esplanada, os homens do café parecem muito tristes. Vivem de pequenos excessos de preguiça e de ilusão. Murmuram e falam de coisas que não sabem, como a guerra e a politica. Subjugam e dominam as mulheres que não têm. Quando não estão a caluniar, gritam e queixam-se dos impostos. Embalsamados no cheiro do café, estas múmias da liberdade dão uma ideia muito pobre da liberdade. De vez em quando levantam-se e compram uma raspadinha. Oferecem aos seus olhos semicerrados uma visão da esperança numerada. Num instante raspam a cautela da sorte grande, a fatia de ilusão, como se estivessem a subscrever um seguro de vida contra o trabalho. 
Contemplo também essa caricatura cómica do génio grego: alguns homens do café lêem jornais e dão a essa leitura a importância dos grandes eventos culturais. Ao lerem o jornal, sentem-se cidadãos de Atenas. Sentem-se felizes por se sentirem atenienses lendo jornais no café.

Agora, enquanto tomo o café já frio, há que reconhecer que de vez em quando, um homem passa ao largo da porta do café. No entanto, esse homem excepcional tem ar de quem vem de outro café.

Na esplanada do Café Central uma chávena de café frio, num dia nublado, custa um euro e dez cêntimos. A cusquice paga-se caro.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Sob(re) a sotaina

Ler isto, isto e isto, faz-me pensar que uma das características universais da injustiça é que todos os homens a reconhecem, apesar de todos contribuírem incessantemente para ela.

Que escabrosidade!

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Altíssimo

Por ora dás por ti a assobiar para o lado. Mas quando fechas o bico, as palavras amontoam-se-te na boca como cachos de uvas, não podem sair porque, para lá do alto dessa tua janela está a vida em bruto, a vida que nunca viveste e que intuis maravilhosa, com pássaros e árvores que roçam as nuvens, com rios que se arrastam espumosos, com ruas de pedras inundadas de sol, com gente que se passeia ao vento, por isso fechas as pálpebras, por isso suspiras pelos inocentes que lá em baixo vivem as suas vidas, formosos e apertados, com a pele bruta mas luzidia, e ficas com os sentidos a trabalhar rente ao chão, selvagens e ferozes, e anseias por descer e acolhe-los na sotaina, toca-los com as tuas mãos impolutas.

sábado, 1 de outubro de 2022

Anexação

Não pude resistir àqueles olhos tristes, de olhar sereno, trespassando os meus. Sentir a sua voz de veludo acariciar-me por dentro e não saber o que dizer. Somente inspirar o suave perfume que exalava do seu corpo e inundava o ar ainda quente deste Outono tímido. Trouxe esse aroma gravado na memória e incrustado nas entranhas. Só receio não conseguir conservar o sabor daqueles lábios sedentos.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Óh Partigianos!

A civilização destes tempos, embora se refira constantemente a ideais de progresso, à razão e à liberdade, embora proclame que é iluminada pelo sublime objectivo de se libertar, sustentar e elevar-se ao seu expoente máximo, no fundo escraviza-se, engana-se, instiga-se e algema-se. Apesar do incrível desenvolvimento do pensamento, da evolução da ciência, do avanço da comunicação, da instrução e da melhoria das condições de vida, o homem parece não se sentir feliz nestas novas condições. Impede-o a alienação, o complexo de inferioridade, a frustração, a religião, o fanatismo e os banhos que toma de politica oca. Está embasbacado. É artificial. Profundamente inautêntico. Iludido, corre atrás do vento seja em Roma, em Kiev, em Moscovo, ou em qualquer outro lugar do universo. O Mundo está abafado. Precisa de uma purga. Rápido.

Oh partigianos!

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Eixo do mal

Esta época não é propícia ao entendimento dos mais rudimentares valores da humanidade nem à vital aceitação das soberanias e das liberdades individuais. É uma época que manifesta repetidas vezes que, em certas ocasiões, um homem que ataca outro homem é um tirano, e, em outras, é um cruzado - embora nenhuma guerra seja santa ou cavalheiresca.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Viúva

Sentada a observar o rio, os últimos raios do sol a tocarem no estuário e a estenderem-se docemente pelo grande canal de água até à foz; rabelos vogam, barbos pululam acima da linha de espuma deixada pela popa dos barcos, uma harmonia discreta e singela envolve a mulher solitária e grave. Talvez devesse tomar um destino novo e procurar - o quê? Enfraquecem-lhe os ímpetos e uma grande tristeza nasce-lhe no olhar quando, depois, se lhe sobrepõe a imagem dele, um homem que se matara a si mesmo continuando, no entanto, vivo. 

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Sessão da Meia-Noite


"Une femme est une femme"  - Jean-Luc Godard, 1961

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

O pássaro

Salto da cama e quando mal acabo de abrir os olhos e de levantar a persiana da janela, noto a azafama assídua e conhecida. Olho para a rua, que à força de tantas manhãs e de tantas vezes abrir a janela acabou por perder o seu brilho original.  Mas ali está o pássaro.
A letargia estupida do encerramento nocturno quebra-se momentaneamente com a perspectiva luminosa do milagre. O pássaro representa para mim a porta da poesia, a promessa da liberdade, o elogio do sonho, o escape, enfim, para tudo aquilo que o encerramento na noite me roubou.
Isto repete-se todas as manhãs. Acordo e, como se o acto de abandonar o sono, abrir as janelas, comunicasse com o pássaro por meio de uma antena invisível e o pássaro começa a voar automaticamente.
Durante algum tempo, não consegui parar de pensar que por trás de todo o homem há sempre um pássaro que salta e que voa. E de facto na zoologia social eu e o pássaro somos muito parecidos, temos um vinculo oculto, somos da raça dos que saem de manhã e voltam à noite.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Liberdade


Estamos aqui três perfeitos desconhecidos a olhar este final de tarde magnifico de fim de Agosto. Cada um de nós formou um conceito próprio de liberdade, feito à medida das suas inclinações ou das suas conveniências. Cada um bebe com lábios diferentes a tisana da liberdade. Para ela, a vagabunda que pinta quadros, a liberdade é um pincel em forma de telemóvel. Para ele, o aventureiro de mochila às costas que colecciona bilhetes postais, a liberdade reduz-se a um passaporte internacional. Para mim, que sou um deslumbrado, mas que, sobretudo, sou um fugitivo, a liberdade é outra coisa.
Para cada homem ou para cada mulher, a liberdade é algo diferente. Caminho, escolha, acaso, sonho. Fugindo das servidões do dia-a-dia, todo o homem procura a liberdade, persegue-a, alcança-a, compreende-a, usufrui dela à sua maneira. 
O drama começa quando há duas pessoas, porque duas pessoas não conseguem pôr-se de acordo para falar disso. A liberdade não é nada, porque a liberdade é tudo. A liberdade é um enigma ao alcance dos olhos.

sábado, 27 de agosto de 2022

Nódoas na consciência


No princípio, a saudade é apenas um som delirante: um som esquecido pelo nosso coração. Ao tocar no corpo e examinar a alma, encontramos apenas as protuberâncias remanescentes da distância. A distância despojou-nos de tudo, menos de uma convicção: ainda posso parecer-me com um homem livre. Depois, com o passar do tempo, a saudade toma a forma de uma brisa cuja caricia nos vai arrebatando. Até que um dia a saudade explode e deslumbra-nos, como se entre as nossas mãos acabasse de cair uma bola de sol. Os nossos olhos, angustiados de cobardia e escuridão, ficam por um instante cegos de saudade. Então, a saudade, ar e luz dos fugitivos começa a palpitar no nosso sangue. A saudade está connosco e por isso fugimos cada vez para mais perto. Não temos pernas para mais.

terça-feira, 23 de agosto de 2022

11:17



Onze horas e dezassete minutos da manhã. Trinta e quatro graus centígrados. Acordei no inferno. Primeiro tentei escapar ao fogo na cama, depois ao fogo no chão e depois ao fogo no ar. Até correr para a varanda não percebi: o fogo não sou só eu, o fogo não sou só eu. Hoje, mesmo fugindo de mim próprio, não sei se conseguirei escapar a esta fornalha intrincada. 

sábado, 13 de agosto de 2022

Nubentes

O corpo dela é um cálice, um cibório, um nicho de sombras. O seu vestido branco de seda selvagem dobrada com um acordeão em volta das ancas, o medo agarrado em cada prega do tecido, uma viagem de infinitos desvios. Do pescoço, um fio obliquo cai-lhe sobre o peito. Os lábios pintados de carmesim encobrem a boca seca. Debaixo do rímel negro das pestanas, os olhos em fuga.
Carrega todas as sensações correspondentes da infância: o desamparo atormentado, o abandono primitivo, a angustia de se encontrar à completa mercê dos outros.
A sensação de fragilidade é tão forte que se assustou com a aparição à sua direita de um corpo que caminhava a par com ela. Olhou de soslaio o seu perfil e sentiu-se confortada pela sua altura e pelo seu sorriso suave. Também estava vestido de branco, também caminhava para o  cadafalso.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Cinderela

Vejo que não conheces o teu poder. Consomes-te em amor e dádiva e desconheces os milagres que daí resultam. Senti isso a noite passada ao ver-te representar a Cinderela, que eras tu, qualquer que fosse o papel que estavas a representar, que tocaste nesse ponto em que a arte e a vida se fundem e em que apenas se existe. Senti a tua fome e os teus sonhos, os teus desejos ao mesmo tempo que despertavas os meus. Senti que não estavas a representar mas a sonhar; senti que eu - o espectador - podia sair do teatro e, sem transição, passar por artes magicas para outro baile, para outra tempestade, para outro amor, para outro sonho. Diante dos meus olhos eras consumida pelo desejo e pelo sonho da entrega. A chama dos teus olhos, dos teus gestos, eram uma fogueira de fé e dissolução. Tu tens o poder. Representar, em ti, é uma revelação. Aquilo que tantas vezes a alma não consegue exprimir pelo meio do corpo porque o corpo não é suficientemente subtil, tu consegues exprimi-lo. Geralmente o corpo atraiçoa a alma. Tu tens o poder do contágio, de transmitir a emoção por meio dos infinitos cambiantes dos teus movimentos, das variações dos traços da tua boca, das palpitações macias das tuas pestanas. E a tua voz, a tua voz ligada à respiração, a ausência do sopro da sensação, de tal modo que me arrebataste a respiração e me levaste para o reino inspirado do silêncio. Que imenso poder tu tens!

Imagino, lá nessa tua vida de representação, o choque ao perceberes que no final o público continua por transformar. A dor que essa quebra do sonho provocará em ti. 
Deviam levar-te imediatamente para fora do palco, para que não sentisses a mudança de nível do palco para a rua, e da rua para casa, e dali para outra festa, para outro amor, para outra cama, para outra tempestade, para outro par de sapatos dourados.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Sessão da Meia-Noite


"Faca na água" - Roman Polanski, 1962

sábado, 16 de julho de 2022

Benevides d'Almeida


Na esplanada, enquanto me enxovalha o saco do Expresso, Benevides d`Almeida vai-me dizendo que um homem na casa dos cinquenta anos só usa bermudas quando já abdicou de ter sex appeal. 
Fiodor rosnou debaixo da mesa.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Palomar


O Senhor Impontual, nas suas múltiplas peregrinações, foi aprendendo a reconhecer os ecos dos amores e dos desejos maiores. Aprendeu que os grandes amores, em especial se não tiverem perecido de morte natural, nunca morrem completamente e deixam reverberações. Uma vez interrompidos, quebrados artificialmente ou acidentalmente sufocados, eles continuam a existir em fragmentos distintos e infinitos ecos menores.
Uma vaga semelhança física, uma boca quase igual, uma voz levemente parecida, alguma partícula do carácter, de repente, imigra para outra pessoa que se reconhece imediatamente na multidão ou numa festa, pela ressonância erótica que isso desperta.
Os ecos impressionam primeiro através da misteriosa instrumentalização dos sentidos que retêm as sensações tal como os instrumentos retêm um som depois de tocados. O corpo permanece vulnerável a certas repetições muito tempo depois do espirito julgar que procedera a um rompimento claro e final.

Por estes dias de mar ao fundo, o espirito do Senhor Impontual teima em acolher a ideia de que o amor pode perfeitamente ser como as ondas: cada recuo é um novo ponto de partida.
O amor! Que invenção cansativa!

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Insónias em carvão


Sendo esta, por natureza, a época do ano em que há mais emoções e momentos para evocar, concentrados que estão na zona escarpada das recordações, ali onde o fole da memoria se enche com mais frequência e menos vazios há a registar, não era preciso uma brasa destas. Só complica.

terça-feira, 5 de julho de 2022

Hendrick´s Neptunia

A cada inspiração, os seus mamilos pressionavam o fino tecido de algodão da camisa de dormir. Os seu lábios sorridentes brilhavam sobre o feixe de luz do candeeiro na mesa de cabeceira. Não havia dúvida. O meu coração ribombava como se estivesse preso numa armadilha. A minha coragem, porém, não conseguiu ir além do gesto de passar os dedos pelos meus próprio lábios. Secos. Foi então que ela abriu os olhos e o seu olhar caiu pesadamente na minha boca. O seu corpo, contrariamente ao meu, não parecia ocultar-se atrás dos pensamentos. Levantou-se e beijou-me os lábios. O gin tê-la-ia posto num estado onírico? Até aí ignorara que o horror e o deleite pudessem ser tão doces. Inclinou-se para trás e apagou a luz. Senti os braços dela puxarem-me para o seu peito e, depois, a respiração quente do seu suspiro queimou-me a testa. Por um instante imaginei outra coisa: não havia fogo algum, a casa não estava a arder. Pensei em correr para a janela para deixar entrar o ar marinho e lavar os meus pulmões. Porém quedei-me indolente e solicito nos seus braços até que o momento passasse e o sono se apoderasse de mim.

Quando voltei à realidade, descobri que a noite nos envolveu ainda mais, pousara a coxa dela, nua, em volta da minha cintura e colocara a minha coxa entre as suas pernas. Quais ramos de uma árvore, cada galho encontrara o seu caminho naturalmente. Embora a minha vergonha fosse poderosa, manteve-se afastada de mim. Aproximei-me e ela acompanhou-me no movimento. Deve ter sido uma noite nublada porque a luz amarela vinda do lado do mar fazia ricochete no céu e entrava pelo quarto dentro. Vi-lhe os olhos pestanejar na fraca luz sépia.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Arquitectura da fuga

Há um ínfimo momento naquela música do Jorge Palma, “Quem és tu de novo", em que o desejo assume um novo contorno, ganha uma nova forma, um novo odor, uma nova voz e uma vida própria. Há um trecho de história que acontecesse ali naquele instante, naquela fracção de segundo e que eu sei perfeitamente qual é porque apanho-o num voo planado, capto-o num movimento pendular e porque dele me fui escapando numa estúpida, por vezes absurda, diria mesmo irracional miscelânea de amarga e doce saudade. 

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Fly into the sun

A sua pele vibrou ao contacto do primeiro raio de sol, que foi deslizando pelo pescoço abaixo, que lhe contornou um mamilo e depois outro, disparando descargas de corrente eléctrica que a invadiram por completo. À lenta e dolorosa distensão do ventre, seguiu-se a sensação de humidade no côncavo acetinado do intervalo das coxas. Sentiu o calor que irradiava dele a espalhar-se dentro de si, e ficou agitada, baloiçou-se para a frente e para trás, precipitando-se desenfreada numa sucessão de ondas que se foram desfazendo. O bater de asas tornou-se mais rápido, num crescendo que passou a rugido, e ela foi completamente revirada por um forte impacto de calor. Um fluido leitoso e quente correu de dentro para fora e veio perder-se por entre as suas pernas.

Mas achando-se que foi mais o "Walk on the wild side" ou mesmo o" Perfect day", aceita-se sem qualquer contestação.

terça-feira, 21 de junho de 2022

Godot

Eis que, dominado por uma sensação de invisibilidade, como se fosse o único espectador da sua aparição, da sua única aparição, sem que mais ninguém a identificasse no vazio do ali e do agora, me vi perante aquela figura simples, nívea, quase transparente, leve e despretensiosa que se aproximou vagarosamente, e de repente, num assalto de comiseração me surripiou a tristeza, sem a menor intenção de a restituir.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Roseta

@Yale Joel

As coisas que percepcionamos como belas podem ser diferentes, mas as características efectivas que atribuímos ao que é belo são as mesmas. Reparem. Quando alguma coisa nos salta à vista como bela e nos inflama os sentidos, essa coisa tem mais presença, surge mais nítida, revela um colorido, mais vivo. Salienta-se. Multiplica-se. Brilha. Parece quase iridescente se comparada com a opacidade de outros objectos menos atraentes que a paisagem nos oferece. Não é assim? Não vos penitencieis por olhardes para onde os vossos sentidos vos desviaram os olhos. Ou sois mais bananas? 

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Terra e Mar

Horácio viveu durante dez anos com uma mulher da beira do mar. Branca. Meiga. Delicada. 
No inicio, não conseguia passar sem o seu sal fino, sem o seu pulsar suave. Apertava-se com força em volta dela e os seus seios erguiam-se como ondas gigantes que desciam, subiam, de encontro ao peito dele.
Mas gradualmente, o seu cabelo alinhado, dourado e cheio de luz, tornou-se, de repente, demasiado familiar. O seu gosto tornou-se insipido, o seu corpo vazio e os olhos de Horácio desviaram-se para outra, tão sensual e com formas arredondadas que poderia ter sido esculpida na própria terra. Aquilo que ele queria, ela não lhe podia mais oferecer: uma carne que não cedesse, um abraço cheio de fricção e resistência. Horácio ansiava por mulheres da cor da terra, de pés descalços tão firmemente pousados no chão que o vento lhes percorria os cabelos como se corresse por entre as folhas. Mulheres que tivessem braços parecidos com ramos maciços, mulheres que criassem raízes num determinado lugar, à espera que ele chegasse para acariciar a casca delicada e achocolatada das suas pernas e as ramificações das suas coxas tão flexíveis. Uma vez e outra, foi à procura delas, ansiando pela terra.
Na sua inquietude, Horácio, é um homem bom. Liso. Honesto. Partiu hoje para África com bilhete só de ida. 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Paula Rego

O que é admirável na extensíssima obra de Paula Rego é que a sua linguagem pictórica e figurativa não romantiza o ser humano. Por mais que o amor possa estar ali representado, é a denuncia das ilusões e da falsa moral, que sobressaem daquelas cenas mirabolantes de chocantes e dolorosas verdades.

Eu estou grato por esse banho de realidade.

quarta-feira, 8 de junho de 2022

O elo mais fraco

Quando a cadeia do ódio é urdida a partir do desamor, começa sempre num elo muito frágil: os ciúmes. Aos ciúmes junta-se a presunção e à presunção a obsessão sem fim.

terça-feira, 7 de junho de 2022

Pintar Junho

Há largos meses que não aparecia. Entrou com a elegância de sempre. Sentou-se no canapé de palhinha com as costas direitas, entrelaçou os dedos das mãos e deixou-as cair sobre o regaço. Fez uma pausa. Ignorou-me com o olhar. Fixou-se absorta no vazio. Começo com um esboço do seu rosto. Na última vez que posou, favoreci-a na tela. Hoje serei implacável nos pormenores e registo cada ruga ou mudança de cor, ou sinal oblongo. Observo-lhe o busto. Um dilúvio de entusiasmo pela sua pele, aquela seiva provocante que anima os meus olhos, faz-me antever horas sublimes. Mas acabo por esquivar a minha própria rendição, prolongar o tempo em volta de um corpo nunca vazio, dar-lhe vontade de se mostrar nu, fazê-lo encontrar em si essa volúpia. Para que consiga deleitar-se com esse exercício é preciso que goste de si mesma, do seu corpo, mas também da personalidade que sofre dentro dele.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

1972

Hoje, ao cabo de um momento, adivinhei tudo; um único minuto bastou para me revelar de repente, sem uma palavra de explicação, graças a um raio de luz irresistível, esta verdade fatal que milhares de factos, repetindo-se todos os dias à minha vista, durante longos anos, não haviam conseguido fazer-me suspeitar.

Ainda sou uma criança.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Banco Alimentar

Notei nas pessoas um certo desconforto quer ao serem abordadas pelos voluntários com o saco, quer depois ao deposita-lo, já preenchido, nos contentores. Não sei se vi ali o desconforto da necessidade de contribuir (esse assalta-me sempre), se o desconforto da sua própria necessidade, presente ou eminente. 
Mas...não quero "alimentar" essa ideia.  

sábado, 28 de maio de 2022

Linhares da Beira

A forma das casas baixas e sombrias pouco ou nada mudou de há cinco ou seis séculos a esta parte. Julguei sonhar quando vi através das magnificas janelas manuelinas, aqueles grupos de mulheres de olhar selvagem e linha escultural, que fiavam a sua rocada na sombra e conversavam entre si numa língua quase imperceptível. Parece que todos aqueles espectros pardacentos tinham acabado de quebrar a pedra do túmulo para executarem entre si uma cena de outra época, de que fui o único espectador vivo. A pouca vida das ruas da aldeia tem o mesmo caracter de estranheza e arcaísmo que parece fielmente copiado do modo de viver duma geração que já passou.
Não me importava nada de cá morar. Podia manter-me a papas de milho e pesto de urtigas.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Vista aérea

Lá em baixo, homens e mulheres, mensageiros dos deuses, nomeiam as estrelas e as figuras do céu, dizem aos outros homens e às outras mulheres, amamos-vos e ensinar-vos-emos a viver ensinando-vos como curar as maleitas, escutando e transcrevendo o que dizem os vossos gritos e as vossas falas. Ensinar-vos-emos a tornar-vos amigos do mundo para não serdes estrangeiros nele, a sonhá-lo, a sulcá-lo, a usá-lo. Lá em baixo, homens e mulheres derramam a palavra, como um pólen abandonado ao vento, para transmitirem as histórias apreendidas com o refluxo do mar e com o fluxo da névoa, as histórias e lendas do mundo e da vida. Cá de cima, não tarda, o que se verá é a noite a distribuir por cada um a sua solidão, o medo, o susto e a redobrar um sentimento que todos já conhecem - a inquietude da incerteza.

Sou tão telúrico!

sexta-feira, 20 de maio de 2022

A costureira triste

Pude finalmente encontra-la. Vejo-a agora, pela primeira vez, depois da sua triste desaparição. Estava sozinha na sala quando entrei; reconhecendo-me, fez um movimento involuntário, como para se levantar, como que para se pôr em fuga, depois ficou imóvel, e o seu rosto pareceu cobrir-se, repentinamente, com um véu de púrpura inflamada. Foi contagioso, porque eu também senti que corava até à raiz dos cabelos.

-- Como vai, Senhor Impontual? Vem por causa do fraque? - exclamou, estendendo-me a mão.
Pronunciou estas simples palavras com um tom de voz tão suave, tão tímido -- e tão terno! --, que senti vontade de cair de joelhos diante dela.
Respondi friamente que sim, embora não tenha sido esse o motivo que me levou até ela.

Olhou para mim dolorosamente, depois baixou os seus grandes olhos com ar resignado e continuou a trabalhar na Bernina.

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Palomar

Está-se no meio do mês de Maio e no ar desta manhã, por entre os pingos da chuva suave, já paira a fragrância do jasmim, do alecrim, da madressilva e das mimosas. Os botões da catalpa rebentam nas árvores, parecendo estrelas, o seu perfume a leite-creme espalha-se delicadamente pelo ar. Numa fase de profundos desafios à humanidade, o Senhor Impontual, figura míope, distraída e introvertida, não para de se interrogar se alguma vez os senhores das armas terão inalado este ar. Talvez não. Não é de espantar, a guerra começa antes da aurora.

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Perguntar não ofende

Esta semana há greve da Função Publica. Será sexta-feira?

Tantos países a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas... ninguém resolve o problema do sexo entre pessoas do mesmo casamento?

Há serviços públicos, como por exemplo as Conservatórias, que não atendem o telefone há dois anos por causa da pandemia. Será um problema endémico?

Em que planeta fica o «mundo livre« que a NATO defende?

Como é que se ressuscita uma tangerineira moribunda ?

Marcelo, o presidente, disse que «Portugal é um beneficiário liquido da situação de guerra». Isto diz-se?

Sabem o significado da palavra «abesbílico»?

Segundo um estudo publicado no jornal Publico, quatro em cada cinco jovens gays ocultam a orientação sexual aos professores. Mas porque é que os jovens deveriam revelar a sua orientação sexual aos professores?

E no festival de Cannes? Há algum filme ucraniano?

É este mês que se paga o IMI, não é?

Já leram o artigo do MEC de hoje no Publico?

Varíola dos macacos?


Porque é que isto nos está a acontecer?

terça-feira, 17 de maio de 2022

Metadados

É certo que se tem vontade, necessidade, que o mundo seja branco ou negro, que os homens sejam inocentes ou culpados, santos ou escumalha. É uma cisão que dá segurança. Cada um tem o seu modo de vida, tem o seu papel. O cinzento, isso é que não é assunto nosso. O intermédio não se sabe bem onde se encontra. As fronteiras devem estar claramente estabelecidas, desenhadas. Consoante o lado onde cada um se encontra, assim se é capaz de dizer a que campo se pertence. Tem-se necessidade de coisas límpidas, e legíveis, e duras. No entanto, a mim, acontece-me acreditar que a realidade é mais contrastada. Aprendi que a luz e a sombra são indissociáveis. Aprendi que é preciso fazer escolhas na base da tridimensionalidade. Na sombra própria e na projectada. Apreendi a puxar-me as orelhas. 

segunda-feira, 2 de maio de 2022

De Dostoiévski a Shevchenko, num ápice

Está uma tarde maravilhosa, uma dessas tardes que apenas são possíveis quando somos crianças. O céu está tão cheio de azul, tão luminoso, parece pintado de fresco, que quem erguer os olhos para ele vê-se forçado a perguntar a si mesmo: será possível que sob um céu assim possam viver homens maus e caprichosos? A própria pergunta é infantil, muito infantil, mas oxalá ao amigo leitor, lha possa inspirar muitas vezes!

Entretanto, há um tempo na Ucrânia onde armas roncam. Há um tempo naqueles terras suavemente onduladas onde jazem, enterrados, corpos cossacos com a cabeça quebrada.
Mais uma vez o sangue das pessoas.
Está a jorrar...

terça-feira, 26 de abril de 2022

À espera do sol


 Andrei Tarkovski _ "Nostalgia",1983

domingo, 24 de abril de 2022

Vejam bem

Que hoje, importa mais do que nunca - e isto não é uma constatação grandiosa - comemorar, com virtuosismo, a memória e a fidelidade, a resistência e a música como alternativas à mentira e à escuridão, percebendo-se que a liberdade nunca será o paraíso perdido em que, por vezes, neste tempo novo, nos querem fazer acreditar.

sábado, 23 de abril de 2022

Frontispício

Mais de dois anos passaram pelas pessoas. Hoje caíram as máscaras. As pessoas estão mais bonitas, mas os seus rostos reencontram-se sempre num vinco eterno. Os dias, as agruras, a fadiga, o encarceramento porventura, atenuaram-no, mas o essencial está intacto. O rosto não é coisa que mude verdadeiramente. Há traços que as pessoas não perdem, que trazem consigo toda a vida, apesar do amadurecimento, apesar da deformidade, apesar das provações. Pode ser a doçura. Ou a infância. Ou a desgraça. Ou a culpa a perfurar o pensamento. Ou o áspero sorriso em silêncio. Mas está lá. Sempre. Para sempre.  

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Alguém sabe ler o céu?

O Senhor Impontual está aqui sentado, num amorfo dia de Abril, a tomar uma cerveja de mar ao fundo. Tudo em seu redor se encontra em permanente mudança; o sol alterna entre projectar sombras profundas e em varre-las de seguida para outro lugar. A lua, desfocada, já está ali de guarda, pendente acima da linha do horizonte, como um sopro de ar suspenso criando um ambiente crepuscular interminável a fazer acreditar na elasticidade do tempo. As horas a espalharem-se diante do Senhor Impontual, e o amanhã a tornar-se tão vago que deve estar mesmo muito longe. Entretanto, o relógio repicou, a tarde retraiu-se e fez ricochete, pairou uma luz acinzentada e soprou uma aragem fresca que se dissolveu na escuridão. 

Alguém sabe ler o céu?

quinta-feira, 31 de março de 2022

Síndrome de deficiência androgénica

Chegado a este ponto, sinto agora não só a febre de devorar aquela mulher, aquela fome indescritível que por vezes sentem os homens inconclusos, mas também a de ouvir, inteirar-me das lavas internas, daquilo que assoma para fundar uma pessoa, ir de uma alma a outra, partilhar o dom da oferenda reciproca da fala, da escuta e... da absolvição. 

terça-feira, 29 de março de 2022

segunda-feira, 28 de março de 2022

Armamento

O Senhor Impontual não entende que com o tempo, ou melhor, com o passar do tempo, as pessoas, zangadas e frustradas que estão, e têm boas razões para isso, não compreendam que quando nos encontramos no terreiro comum, que é o lado de fora da vida, não é mau que nos guie a ilusão - essa arma superior.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Equinócio

Espero que ainda te recordes de como, sob as minhas caricias, o teu corpo se enchia de botões viçosos como antes de florirem. Como gostei de colher as tuas flores, deixando-me embriagar com os aromas que elas exalavam. Alimentava-me do teu suco, mas acabaste por deixar-me em troca da salvação da tua alma. Mas que traição, mas que traição! Não, eu não creio num Criador que exige estes sacrifícios humanos. Não creio num Criador que destrói a vida de um homem para salvar a alma de uma estação. Espero que ainda te recordes. Vem, vem. Preciso de ti.

sábado, 19 de março de 2022

A Oeste, o preço do petróleo

Ameaça agora o mundo uma época implacável. Forjamo-la nós, todos, que já somos sua vitima. Que importa que a Rússia seja o martelo e a Ucrânia a bigorna? O importante é que reine a resistência, não a servil rendição do desamparado. Se a vitória, a justiça e a felicidade não forem para a Ucrânia, que seja para outras nações. Que o céu exista, mesmo que o nosso lugar seja irremediavelmente o inferno. 

segunda-feira, 7 de março de 2022

A guerra é uma emoção desgraçada

Bem; basta de desgraça por esta noite. Que triste ocupação esta a de assistir pela televisão a tais coisas! A guerra é uma emoção desgraçada. No entanto, ir acompanhando, parece que me restitui alguma tranquilidade à consciência. A desgraça é, sem dúvida, uma lei sagrada; basta fazer a mais ligeira aplicação dessa lei para experimentar alguma serenidade - temos sorte, não é connosco, estamos vivos. O homem, embora não goste da desgraça, não pode, contudo, desprezar os seus infalíveis desígnios; aproveita-se dela todos os dias; no entanto, olha-a sempre com a mesma repugnância. Parece-me que há nisto uma contradição singular e misteriosa, como se sentíssemos na desgraça, ao mesmo tempo, o castigo e o sinal divino e paternal do juiz.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

A Oeste nada de novo

Quase tão estupido como a própria guerra em si, é o resto do mundo começar a convencer-se que a Ucrânia pode resistir aos russos e que assim sendo não é preciso fazer nada, evitando-se desse modo a sempre chata quezília com o tresloucado papão russo. Que, como bem se sabe, toma Kiev quando quiser e como quiser. 

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Palomar

O Senhor Impontual saiu esta manhã bem cedo em direcção ao mar. Perscrutar o horizonte marinho é um dos passatempos preferidos do Senhor Impontual. Só se lhe compara um outro passatempo que o Senhor Impontual teve em tempos que era, em noites de constelação, tentar acasalar as estrelas. Às vezes dá a sensação de que a lascívia é uma espécie de veneno que corroí a vida. Contudo, a partir do momento em que se compreende que essa mesma vida, pela sua natureza, não dura para sempre e não pode esperar, o veneno passa de uma tentação perigosa à promessa do renascer. Porque não, pois, erguer o copo e brindar? Eis o pensamento pérfido do Senhor Impontual para este Sábado em que o sol veio embrulhado num manto plúmbeo.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Humor Tétrico

Depois de dois anos consecutivos passados no desconforto do entreportas a contemplar com o olhar triste o vazio do mundo, escutando estupidamente os murmúrios e os ruídos monótonos da rua e sentindo-me mais só no meio de um universo parado, mais abandonado e mais perto do desespero que o naufrago que tirita de frio em pleno oceano sobre a frágil tábua a que se agarrou, ainda havia Putin!

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Da Rússia

"Toda a manhã de hoje li jornais. Na Espanha estão acontecendo coisas estranhas. Nem consegui analisa-las bem. Escreve-se que o trono está vago e os graúdos se encontram em grande embaraço quanto à eleição de um sucessor; daí provem grande indignação. Acho extremamente esquisito. Como pode um trono estar vago?

O dia de hoje é um dia de grande triunfo! A Espanha já tem rei. Encontraram-no. Esse rei sou eu. Foi só hoje que eu descobri isso. Confesso, foi como se de repente um raio me tivesse iluminado. Não entendo como pude pensar e imaginar que sou um conselheiro titular. Como foi que esse pensamento louco pode entrar na minha cabeça? Que bom que na época ninguém pensou em me colocar no hospício."

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Devaneio Excessivo Mal Adaptado

Quantas e quantas vezes a memória e a imaginação andam de mãos dadas. Quantas e quantas vezes competem entre si. A memória a apresentar-se real e sólida na medida do possível. A imaginação a bater as asas. A memória a inclinar-se para o conhecido, a imaginação a voar em direcção ao desconhecido. A memória a inspirar-me prazer e paz. A imaginação a fazer-me andar de um lado para o outro acabando por me enfraquecer.
Um dia, mais tarde, não precisa de ser já, ainda hei-de aprender a viver exclusivamente pela memória.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

O Homem

Nunca se soube, ou se soube ninguém o disse, o que foi feito do Homem. Alguns supõem que conseguiu confundir-se com a multidão que saiu para as ruas no dia seguinte, como se nada de grave tivesse acontecido na noite anterior. Durante um tempo relativamente breve especulou-se de que ainda estivesse entre nós, escondido nalgum recanto do Universo, mas em breve a cidade retomou o seu pulso normal e enormes cartazes publicitários cobriram as ruas para promover as novidades de Primavera. O Jardim Zoológico abriu as suas portas ao som da banda filarmónica; outros animais raros, raríssimos, foram expostos nas jaulas vagas. Também as prisões voltaram a encher-se. Mendigos e vagabundos encontraram refugio por baixo dos arcos das pontes e envolveram-se à pancada com os zombis e os loucos que de noite pretenderam invadir-lhes a propriedade. Dos espigões do cais, os barcos de cruzeiro partiram em busca de novas aventuras. Dezenas de banhistas gozaram o sol nas areias das praias. E as fabulas, as fábulas de sempre, voltaram a ser contadas - mas o homem, mais uma vez, esqueceu-se do homem.  

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Kamasutra - posição para o dia dos namorados (cara ou coroa)

Os solitários sabem em carne viva que a imposição de uma tarefa tão simples como passar doze horas a esfregar uns sapatos reluzentes, ou doze minutos a aparar o bigode, demonstra, se duvidas houvesse, que a fome de companhia ou a sede de solidão se transformam facilmente em angustias físicas porque o seu alivio nunca depende do esfomeado ou do sedento mas de outro, de alguém, de um semelhante que ofereça um bocado de amizade ou um gole de carinho. O trânsito por este mundo é uma moeda ao ar, um milagre ou uma ciência viva, um tédio ou uma aventura, uma derrota ou uma vitória, uma sorte ou uma maldição, um calvário ou um festim, um inferno ou um paraíso, mas quer a moeda caia cara ou coroa, a outra face será sempre a melhor das surpresas.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Anafilaxia

Inclinou-se sobre aqueles dedos tépidos subindo até ao pulso com uma caricia imprudente que lhe despertou nos olhos uma surpresa, quase uma réstia de alarme.
-- Nunca imaginei que se pudesse seduzir uma mulher só a tocar-lhe na mão, disse-lhe umas horas mais tarde, já nos braços dele, enquanto o sol da tarde anormalmente quente de Inverno entrava obliquo naqueles aposentos soturnos.

sábado, 29 de janeiro de 2022

Dia de reflexão

O Senhor Impontual não sabe se há-de cumprir o dever de ir votar ou cumprir o dever de ficar em casa.
De qualquer dos modos o Senhor Impontual cumprirá com a sua obrigação cívica.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Fiodor


Fiodor não entende que com o tempo, ou melhor, com o passar do tempo, e já lá vão três actos eleitorais, as pessoas - zangadas e frustradas que estão, e têm boas razões para isso - não compreendam que a lucidez será sempre uma arma superior ao descontentamento transviado, a tolerância e a ponderação mais úteis, mais ferozes que os gestos de raiva e desalento inadvertido, e se proponham protestar votar no Chega.

Pessoas, vós que sois gente empenhada no bem comum, portadores da indignação partilhada, que estais ali entre os brandos agitadores de rua e a pequena burguesia estabelecida, sofredores em silêncio, amortecedores da nação, donos dos votos oscilantes, não desperdiceis as vossas balas. Se quereis ridicularizar e flautear o sistema, parar o tempo, fazer um rewind civilizacional, voltar às pedras da calçada, tendes sempre o Vitorino Silva - um calceteiro profissional, um homem de cabeça limpa. É menos arriscado.

Zé Albino, Bala e Camões, fofosuras, comam mais fruta. Ou então, tomai um Melhoral. Não vos fará bem, mas também não vos fará mal. Venham brincar.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Intermezzo

O sol, a lua e as estrelas projectam a sua luz onde desejam, os navios não são aparelhos para permanecerem nos portos, nem as casas construídas para permanecerem trancadas. As metáforas sucedem-se em cadeia, tocando as suas buzinas como veículos todo-o-terreno num engarrafamento do centro da cidade. Um homem a queixar-se das limitações da liberdade é uma figura tão inepta!

O céu, frio, está coberto de um azul uniforme e a luz, difusa, faz os contornos das coisas parecerem em ebulição. Não sei se meta o cão de pêlo pardo no carro, ponha a Cavalleria Rusticana de Mascagni nas colunas de alta fidelidade e vá dar uma volta de mar ao fundo, ou se fique aqui embrenhado na "mulher mais bonita da cidade"? Já calcei as sapatilhas.

sábado, 22 de janeiro de 2022

Insubordinação


A mãe mandou ir buscar o Tomás Nevinson, mas eu trouxe a mulher mais bonita da cidade.
Já está no corredor das almas perdidas.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Ordem de manutenção

Há quem argumente que o sentimento a que chamamos desejo não é necessariamente positivo, como o desejo de prazer, de amor, de mudança, de prosperidade, mas que podem considerar-se também desejos, embora negativos, os ciumes, o ódio, o medo. Assim, estes desejos, um por um, unidos ou em oposição, provocam a vivência. Os desejos das pessoas, de uma ou de outra índole, são o motor da actividade humana. E o motor não funciona sem estas duas forças motrizes em acção. Pois que se limpem os injectores, que se regule a tensão da mola.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Ano novo

Parece claro que o passado interfere sempre na vida das pessoas, quase sempre para o mal, mas não sem a sua participação directa. Tomada por uma miríade de pensamentos nefastos, ao ter de lidar com condições desfavoráveis desde tenra idade, qualquer mente se mostra receptiva a formas desconhecidas de apreender o mundo. 
No tempo em que ainda era solteiro, Frederico ocupava os dias com longas meditações filosóficas que o mergulhavam numa doce angustia e lhe davam a sensação de pairar sobre a pobre gente que o circundava. Prisioneiro das questiúnculas tacanhas e mesquinhas que lhe absorviam a vida do dia-a-dia, não havia manhã em que não o assaltassem as mesmas interrogações: "de onde venho eu? Que faço da minha existência? Porque estou vivo? Qual vai ser o meu destino?
Esta manhã as roupas de ambos enrodilharam-se em desordem aos pés da cama e os dois corpos pareciam repousar depois de um duro combate. Amélia tinha ainda na mão o sexo vigoroso e luzidio de Frederico, cujo braço repousava numa prega do peito mole e opulento da amante. Estampou-se-lhes nos rostos aquele ar apaziguado que as crianças exibem durante o sono.