Ir a Beja comer uma sericaia.
sábado, 31 de dezembro de 2022
Resoluções de Ano Novo
Ir a Beja comer uma sericaia.
quinta-feira, 29 de dezembro de 2022
Questiúncula
Gente empenhada no bem comum, portadores da indignação partilhada, que estais ali entre os brandos agitadores de rua e a pequena burguesia estabelecida, sofredores em silêncio, amortecedores da nação, donos dos votos oscilantes... estais preparados?
sábado, 24 de dezembro de 2022
Outra vez Natal
Um decantador, um copo de balão e um terraço voltado para o mundo onde, ainda antes da azafama natalícia, passar algum tempo sentado a ouvir o cair do dia, a agitação da chegada das aves nocturnas contra um céu cinzento, cada vez mais escuro. Uma certa solidão imposta e alguma paz é o que se precisa para reflectir. Impressões dispersas, pedaços de conversa, observações e opiniões meio formadas atravessam-me a mente, e uma sensação de tranquilo bem-estar instala-se, devolve-me a mim próprio e fico com maior consciência do prazer da própria companhia. Reclino-me na cadeira de palhinha que faz baloiço, beberico calmamente o vinho, e percebo que sou um terrível juiz de carácter que, com efeito, se vai enganando um pouco em quase tudo. Mas que, sozinho, debaixo deste cenário romanesco, esforçando-me por aceitar esta nova visão de mim mesmo que me permite entre outras liberdades nunca imaginadas, a de admitir que ainda há uma série de beijos e abraços por dar. E que isso, de entre todos os rigores das reflexões profundas, ainda é o que me sossega.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2022
Obelisco de Buenos Aires
sábado, 17 de dezembro de 2022
1997
quinta-feira, 8 de dezembro de 2022
Cristiano Ronaldo
Nos momentos de depressão, a pátria é o lugar onde somos livres de falar mal dos outros. Contudo, de vez em quando também chegam rajadas de solidariedade. Quando isso acontece, compreende-se a dor do desterro, porque fica-se a compreender o que é a pátria. A pátria é não estar sozinho. Na ascensão e na queda.
terça-feira, 6 de dezembro de 2022
Santíssima Trindade
quarta-feira, 30 de novembro de 2022
Reticências
Não conheço hipocrisia e estupidez maior que a dos que escrevem a palavra puta só com a inicial e três pontinhos. Esses moralistas imorais ficam com o pecado e sem o género. Esta é a época da decadência não só da língua, mas também do espirito. A época em que os escrivas resolveram cortar à palavra as últimas três letras. A época em que a filho-da-putice (em toda a sua abrangência) é nada mais nada menos do que um ónus que envergonha não apenas os escolhidos.
sexta-feira, 18 de novembro de 2022
Questiúncula
quinta-feira, 17 de novembro de 2022
Opinion Makers
Vim cá só para informar que estou muito feliz por não ter opinião fundamentada sobre o caso Cristiano Ronaldo ao qual não dediquei um minuto do meu tempo. E dizer ainda que devíamos todos experimentar mais vezes esta coisa tão aprazível que é não ter opinião sobre tudo e mais um par de chancas. Estou fã. Experimentem.
quarta-feira, 9 de novembro de 2022
Ablepsia
A mim já não me interessa a politica. De modo geral, começo a alhear-me desta liberdade de gritos insensatos, de favores pagos, de indolências trágicas, de suficiências grotescas. Embora não deixe de me surpreender e magoar este mundo que me é dado a ver ultimamente e que os meus olhos envelhecidos quase não reconhecem.
De tudo o que tive de fazer hoje, o mais fácil foi convencer-me das razões que justificam estes tempos. Aceito-as sem grandes objecções. Acho que o faço porque não me sinto muito à vontade no papel de homem que se vê obrigado a cumprir a sua cegueira.
terça-feira, 18 de outubro de 2022
Ele aí está...
Motivando e estimulando o funcionamento zeloso de uma corte de indivíduos dedicados à cegueira da oportunidade. Ele aí está. Eles aí estão. Suspensos do olho frio e do sorriso breve daquele homem que durante trinta anos nunca se enganara e raramente tivera dúvidas e que sempre convocara Deus como sua testemunha abonatória.
Valha-nos o Senhor dos Santos Passos
sábado, 15 de outubro de 2022
Café Central
É engraçado, a partir da esplanada, observar os homens do café. À primeira vista, parece que a liberdade é passar o dia no café. Olhando com mais atenção, os homens do café parecem presos, amarrados às cadeiras onde se sentam e às mesas diante das quais bebem ou comem ou falam. Apesar de ser ainda relativamente cedo, é evidente que não falta quem beba aguardente a esta hora. Os que o fazem tão cedo bebem-na em chávenas de café, de forma que tudo se faz de acordo com as mais severas exigências da moralidade pública. Contudo, a maioria dos clientes bebe café em chávenas pequenas que fumegam ao longe, no nevoeiro, como chaminés de barcos de brincar.
As horas passam depressa nos cafés. Porém, a fisionomia deste estabelecimento não muda com a passagem das horas. Também não muda o barulho, que é sempre a mesma sucessão de sons sincronizados no volume da estridência popular. Não fosse porque, indubitavelmente, alguns homens se levantam e vão embora, podia dizer-se que a humanidade incrustada no café é apenas uma, porque é sempre a mesma.
No café os homens olham para a televisão, olham para os tanques, olham para o carros de assalto, olham para a guerra. Não há duvida que aquele aparelho de opressão lhes diz muito. Voltam a olhar para a televisão, escrevem algumas palavras no telemóvel, levantam-se e vão telefonar, regressam aos seus lugares. Continuam a beber café, numa tentativa de darem aos seus nervos o estimulo que não obtêm pelo simples facto de parecerem homens livres.
Agora, enquanto tomo o café já frio, há que reconhecer que de vez em quando, um homem passa ao largo da porta do café. No entanto, esse homem excepcional tem ar de quem vem de outro café.
Na esplanada do Café Central uma chávena de café frio, num dia nublado, custa um euro e dez cêntimos. A cusquice paga-se caro.
terça-feira, 11 de outubro de 2022
Sob(re) a sotaina
Ler isto, isto e isto, faz-me pensar que uma das características universais da injustiça é que todos os homens a reconhecem, apesar de todos contribuírem incessantemente para ela.
Que escabrosidade!
terça-feira, 4 de outubro de 2022
Altíssimo
sábado, 1 de outubro de 2022
Anexação
Não pude resistir àqueles olhos tristes, de olhar sereno, trespassando os meus. Sentir a sua voz de veludo acariciar-me por dentro e não saber o que dizer. Somente inspirar o suave perfume que exalava do seu corpo e inundava o ar ainda quente deste Outono tímido. Trouxe esse aroma gravado na memória e incrustado nas entranhas. Só receio não conseguir conservar o sabor daqueles lábios sedentos.
segunda-feira, 26 de setembro de 2022
Óh Partigianos!
A civilização destes tempos, embora se refira constantemente a ideais de progresso, à razão e à liberdade, embora proclame que é iluminada pelo sublime objectivo de se libertar, sustentar e elevar-se ao seu expoente máximo, no fundo escraviza-se, engana-se, instiga-se e algema-se. Apesar do incrível desenvolvimento do pensamento, da evolução da ciência, do avanço da comunicação, da instrução e da melhoria das condições de vida, o homem parece não se sentir feliz nestas novas condições. Impede-o a alienação, o complexo de inferioridade, a frustração, a religião, o fanatismo e os banhos que toma de politica oca. Está embasbacado. É artificial. Profundamente inautêntico. Iludido, corre atrás do vento seja em Roma, em Kiev, em Moscovo, ou em qualquer outro lugar do universo. O Mundo está abafado. Precisa de uma purga. Rápido.
Oh partigianos!
quinta-feira, 22 de setembro de 2022
Eixo do mal
Esta época não é propícia ao entendimento dos mais rudimentares valores da humanidade nem à vital aceitação das soberanias e das liberdades individuais. É uma época que manifesta repetidas vezes que, em certas ocasiões, um homem que ataca outro homem é um tirano, e, em outras, é um cruzado - embora nenhuma guerra seja santa ou cavalheiresca.
quarta-feira, 21 de setembro de 2022
Viúva
terça-feira, 13 de setembro de 2022
quarta-feira, 7 de setembro de 2022
O pássaro
terça-feira, 30 de agosto de 2022
Liberdade
sábado, 27 de agosto de 2022
Nódoas na consciência
terça-feira, 23 de agosto de 2022
11:17
sábado, 13 de agosto de 2022
Nubentes
quarta-feira, 3 de agosto de 2022
Cinderela
Vejo que não conheces o teu poder. Consomes-te em amor e dádiva e desconheces os milagres que daí resultam. Senti isso a noite passada ao ver-te representar a Cinderela, que eras tu, qualquer que fosse o papel que estavas a representar, que tocaste nesse ponto em que a arte e a vida se fundem e em que apenas se existe. Senti a tua fome e os teus sonhos, os teus desejos ao mesmo tempo que despertavas os meus. Senti que não estavas a representar mas a sonhar; senti que eu - o espectador - podia sair do teatro e, sem transição, passar por artes magicas para outro baile, para outra tempestade, para outro amor, para outro sonho. Diante dos meus olhos eras consumida pelo desejo e pelo sonho da entrega. A chama dos teus olhos, dos teus gestos, eram uma fogueira de fé e dissolução. Tu tens o poder. Representar, em ti, é uma revelação. Aquilo que tantas vezes a alma não consegue exprimir pelo meio do corpo porque o corpo não é suficientemente subtil, tu consegues exprimi-lo. Geralmente o corpo atraiçoa a alma. Tu tens o poder do contágio, de transmitir a emoção por meio dos infinitos cambiantes dos teus movimentos, das variações dos traços da tua boca, das palpitações macias das tuas pestanas. E a tua voz, a tua voz ligada à respiração, a ausência do sopro da sensação, de tal modo que me arrebataste a respiração e me levaste para o reino inspirado do silêncio. Que imenso poder tu tens!
Deviam levar-te imediatamente para fora do palco, para que não sentisses a mudança de nível do palco para a rua, e da rua para casa, e dali para outra festa, para outro amor, para outra cama, para outra tempestade, para outro par de sapatos dourados.
quinta-feira, 28 de julho de 2022
sábado, 16 de julho de 2022
Benevides d'Almeida
sexta-feira, 15 de julho de 2022
Palomar
quarta-feira, 13 de julho de 2022
Insónias em carvão
terça-feira, 5 de julho de 2022
Hendrick´s Neptunia
A cada inspiração, os seus mamilos pressionavam o fino tecido de algodão da camisa de dormir. Os seu lábios sorridentes brilhavam sobre o feixe de luz do candeeiro na mesa de cabeceira. Não havia dúvida. O meu coração ribombava como se estivesse preso numa armadilha. A minha coragem, porém, não conseguiu ir além do gesto de passar os dedos pelos meus próprio lábios. Secos. Foi então que ela abriu os olhos e o seu olhar caiu pesadamente na minha boca. O seu corpo, contrariamente ao meu, não parecia ocultar-se atrás dos pensamentos. Levantou-se e beijou-me os lábios. O gin tê-la-ia posto num estado onírico? Até aí ignorara que o horror e o deleite pudessem ser tão doces. Inclinou-se para trás e apagou a luz. Senti os braços dela puxarem-me para o seu peito e, depois, a respiração quente do seu suspiro queimou-me a testa. Por um instante imaginei outra coisa: não havia fogo algum, a casa não estava a arder. Pensei em correr para a janela para deixar entrar o ar marinho e lavar os meus pulmões. Porém quedei-me indolente e solicito nos seus braços até que o momento passasse e o sono se apoderasse de mim.
Quando voltei à realidade, descobri que a noite nos envolveu ainda mais, pousara a coxa dela, nua, em volta da minha cintura e colocara a minha coxa entre as suas pernas. Quais ramos de uma árvore, cada galho encontrara o seu caminho naturalmente. Embora a minha vergonha fosse poderosa, manteve-se afastada de mim. Aproximei-me e ela acompanhou-me no movimento. Deve ter sido uma noite nublada porque a luz amarela vinda do lado do mar fazia ricochete no céu e entrava pelo quarto dentro. Vi-lhe os olhos pestanejar na fraca luz sépia.
terça-feira, 28 de junho de 2022
Arquitectura da fuga
Há um ínfimo momento naquela música do Jorge Palma, “Quem és tu de novo", em que o desejo assume um novo contorno, ganha uma nova forma, um novo odor, uma nova voz e uma vida própria. Há um trecho de história que acontecesse ali naquele instante, naquela fracção de segundo e que eu sei perfeitamente qual é porque apanho-o num voo planado, capto-o num movimento pendular e porque dele me fui escapando numa estúpida, por vezes absurda, diria mesmo irracional miscelânea de amarga e doce saudade.
quarta-feira, 22 de junho de 2022
Fly into the sun
A sua pele vibrou ao contacto do primeiro raio de sol, que foi deslizando pelo pescoço abaixo, que lhe contornou um mamilo e depois outro, disparando descargas de corrente eléctrica que a invadiram por completo. À lenta e dolorosa distensão do ventre, seguiu-se a sensação de humidade no côncavo acetinado do intervalo das coxas. Sentiu o calor que irradiava dele a espalhar-se dentro de si, e ficou agitada, baloiçou-se para a frente e para trás, precipitando-se desenfreada numa sucessão de ondas que se foram desfazendo. O bater de asas tornou-se mais rápido, num crescendo que passou a rugido, e ela foi completamente revirada por um forte impacto de calor. Um fluido leitoso e quente correu de dentro para fora e veio perder-se por entre as suas pernas.
terça-feira, 21 de junho de 2022
Godot
Eis que, dominado por uma sensação de invisibilidade, como se fosse o único espectador da sua aparição, da sua única aparição, sem que mais ninguém a identificasse no vazio do ali e do agora, me vi perante aquela figura simples, nívea, quase transparente, leve e despretensiosa que se aproximou vagarosamente, e de repente, num assalto de comiseração me surripiou a tristeza, sem a menor intenção de a restituir.
quarta-feira, 15 de junho de 2022
Roseta
segunda-feira, 13 de junho de 2022
Terra e Mar
Mas gradualmente, o seu cabelo alinhado, dourado e cheio de luz, tornou-se, de repente, demasiado familiar. O seu gosto tornou-se insipido, o seu corpo vazio e os olhos de Horácio desviaram-se para outra, tão sensual e com formas arredondadas que poderia ter sido esculpida na própria terra. Aquilo que ele queria, ela não lhe podia mais oferecer: uma carne que não cedesse, um abraço cheio de fricção e resistência. Horácio ansiava por mulheres da cor da terra, de pés descalços tão firmemente pousados no chão que o vento lhes percorria os cabelos como se corresse por entre as folhas. Mulheres que tivessem braços parecidos com ramos maciços, mulheres que criassem raízes num determinado lugar, à espera que ele chegasse para acariciar a casca delicada e achocolatada das suas pernas e as ramificações das suas coxas tão flexíveis. Uma vez e outra, foi à procura delas, ansiando pela terra.
quinta-feira, 9 de junho de 2022
Paula Rego
O que é admirável na extensíssima obra de Paula Rego é que a sua linguagem pictórica e figurativa não romantiza o ser humano. Por mais que o amor possa estar ali representado, é a denuncia das ilusões e da falsa moral, que sobressaem daquelas cenas mirabolantes de chocantes e dolorosas verdades.
Eu estou grato por esse banho de realidade.
quarta-feira, 8 de junho de 2022
O elo mais fraco
terça-feira, 7 de junho de 2022
Que estranha forma de impotência!
Os homens estão a matar a mulheres.
Já sinto vergonha... da vergonha.
Pintar Junho
Há largos meses que não aparecia. Entrou com a elegância de sempre. Sentou-se no canapé de palhinha com as costas direitas, entrelaçou os dedos das mãos e deixou-as cair sobre o regaço. Fez uma pausa. Ignorou-me com o olhar. Fixou-se absorta no vazio. Começo com um esboço do seu rosto. Na última vez que posou, favoreci-a na tela. Hoje serei implacável nos pormenores e registo cada ruga ou mudança de cor, ou sinal oblongo. Observo-lhe o busto. Um dilúvio de entusiasmo pela sua pele, aquela seiva provocante que anima os meus olhos, faz-me antever horas sublimes. Mas acabo por esquivar a minha própria rendição, prolongar o tempo em volta de um corpo nunca vazio, dar-lhe vontade de se mostrar nu, fazê-lo encontrar em si essa volúpia. Para que consiga deleitar-se com esse exercício é preciso que goste de si mesma, do seu corpo, mas também da personalidade que sofre dentro dele.
quarta-feira, 1 de junho de 2022
1972
Hoje, ao cabo de um momento, adivinhei tudo; um único minuto bastou para me revelar de repente, sem uma palavra de explicação, graças a um raio de luz irresistível, esta verdade fatal que milhares de factos, repetindo-se todos os dias à minha vista, durante longos anos, não haviam conseguido fazer-me suspeitar.
Ainda sou uma criança.
segunda-feira, 30 de maio de 2022
Banco Alimentar
sábado, 28 de maio de 2022
Linhares da Beira
A forma das casas baixas e sombrias pouco ou nada mudou de há cinco ou seis séculos a esta parte. Julguei sonhar quando vi através das magnificas janelas manuelinas, aqueles grupos de mulheres de olhar selvagem e linha escultural, que fiavam a sua rocada na sombra e conversavam entre si numa língua quase imperceptível. Parece que todos aqueles espectros pardacentos tinham acabado de quebrar a pedra do túmulo para executarem entre si uma cena de outra época, de que fui o único espectador vivo. A pouca vida das ruas da aldeia tem o mesmo caracter de estranheza e arcaísmo que parece fielmente copiado do modo de viver duma geração que já passou.
Não me importava nada de cá morar. Podia manter-me a papas de milho e pesto de urtigas.
quarta-feira, 25 de maio de 2022
Vista aérea
Lá em baixo, homens e mulheres, mensageiros dos deuses, nomeiam as estrelas e as figuras do céu, dizem aos outros homens e às outras mulheres, amamos-vos e ensinar-vos-emos a viver ensinando-vos como curar as maleitas, escutando e transcrevendo o que dizem os vossos gritos e as vossas falas. Ensinar-vos-emos a tornar-vos amigos do mundo para não serdes estrangeiros nele, a sonhá-lo, a sulcá-lo, a usá-lo. Lá em baixo, homens e mulheres derramam a palavra, como um pólen abandonado ao vento, para transmitirem as histórias apreendidas com o refluxo do mar e com o fluxo da névoa, as histórias e lendas do mundo e da vida. Cá de cima, não tarda, o que se verá é a noite a distribuir por cada um a sua solidão, o medo, o susto e a redobrar um sentimento que todos já conhecem - a inquietude da incerteza.
Sou tão telúrico!
sexta-feira, 20 de maio de 2022
A costureira triste
Pude finalmente encontra-la. Vejo-a agora, pela primeira vez, depois da sua triste desaparição. Estava sozinha na sala quando entrei; reconhecendo-me, fez um movimento involuntário, como para se levantar, como que para se pôr em fuga, depois ficou imóvel, e o seu rosto pareceu cobrir-se, repentinamente, com um véu de púrpura inflamada. Foi contagioso, porque eu também senti que corava até à raiz dos cabelos.
Pronunciou estas simples palavras com um tom de voz tão suave, tão tímido -- e tão terno! --, que senti vontade de cair de joelhos diante dela.
Olhou para mim dolorosamente, depois baixou os seus grandes olhos com ar resignado e continuou a trabalhar na Bernina.
quinta-feira, 19 de maio de 2022
Palomar
Está-se no meio do mês de Maio e no ar desta manhã, por entre os pingos da chuva suave, já paira a fragrância do jasmim, do alecrim, da madressilva e das mimosas. Os botões da catalpa rebentam nas árvores, parecendo estrelas, o seu perfume a leite-creme espalha-se delicadamente pelo ar. Numa fase de profundos desafios à humanidade, o Senhor Impontual, figura míope, distraída e introvertida, não para de se interrogar se alguma vez os senhores das armas terão inalado este ar. Talvez não. Não é de espantar, a guerra começa antes da aurora.
quarta-feira, 18 de maio de 2022
Perguntar não ofende
Esta semana há greve da Função Publica. Será sexta-feira?
Tantos países a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas... ninguém resolve o problema do sexo entre pessoas do mesmo casamento?
Há serviços públicos, como por exemplo as Conservatórias, que não atendem o telefone há dois anos por causa da pandemia. Será um problema endémico?
Em que planeta fica o «mundo livre« que a NATO defende?
Como é que se ressuscita uma tangerineira moribunda ?
Marcelo, o presidente, disse que «Portugal é um beneficiário liquido da situação de guerra». Isto diz-se?
Sabem o significado da palavra «abesbílico»?
Segundo um estudo publicado no jornal Publico, quatro em cada cinco jovens gays ocultam a orientação sexual aos professores. Mas porque é que os jovens deveriam revelar a sua orientação sexual aos professores?
E no festival de Cannes? Há algum filme ucraniano?
É este mês que se paga o IMI, não é?
Já leram o artigo do MEC de hoje no Publico?
Varíola dos macacos?
Porque é que isto nos está a acontecer?
terça-feira, 17 de maio de 2022
Metadados
É certo que se tem vontade, necessidade, que o mundo seja branco ou negro, que os homens sejam inocentes ou culpados, santos ou escumalha. É uma cisão que dá segurança. Cada um tem o seu modo de vida, tem o seu papel. O cinzento, isso é que não é assunto nosso. O intermédio não se sabe bem onde se encontra. As fronteiras devem estar claramente estabelecidas, desenhadas. Consoante o lado onde cada um se encontra, assim se é capaz de dizer a que campo se pertence. Tem-se necessidade de coisas límpidas, e legíveis, e duras. No entanto, a mim, acontece-me acreditar que a realidade é mais contrastada. Aprendi que a luz e a sombra são indissociáveis. Aprendi que é preciso fazer escolhas na base da tridimensionalidade. Na sombra própria e na projectada. Apreendi a puxar-me as orelhas.
segunda-feira, 2 de maio de 2022
De Dostoiévski a Shevchenko, num ápice
Está uma tarde maravilhosa, uma dessas tardes que apenas são possíveis quando somos crianças. O céu está tão cheio de azul, tão luminoso, parece pintado de fresco, que quem erguer os olhos para ele vê-se forçado a perguntar a si mesmo: será possível que sob um céu assim possam viver homens maus e caprichosos? A própria pergunta é infantil, muito infantil, mas oxalá ao amigo leitor, lha possa inspirar muitas vezes!
Mais uma vez o sangue das pessoas.
terça-feira, 26 de abril de 2022
domingo, 24 de abril de 2022
Vejam bem
sábado, 23 de abril de 2022
Frontispício
Mais de dois anos passaram pelas pessoas. Hoje caíram as máscaras. As pessoas estão mais bonitas, mas os seus rostos reencontram-se sempre num vinco eterno. Os dias, as agruras, a fadiga, o encarceramento porventura, atenuaram-no, mas o essencial está intacto. O rosto não é coisa que mude verdadeiramente. Há traços que as pessoas não perdem, que trazem consigo toda a vida, apesar do amadurecimento, apesar da deformidade, apesar das provações. Pode ser a doçura. Ou a infância. Ou a desgraça. Ou a culpa a perfurar o pensamento. Ou o áspero sorriso em silêncio. Mas está lá. Sempre. Para sempre.
quarta-feira, 13 de abril de 2022
Alguém sabe ler o céu?
O Senhor Impontual está aqui sentado, num amorfo dia de Abril, a tomar uma cerveja de mar ao fundo. Tudo em seu redor se encontra em permanente mudança; o sol alterna entre projectar sombras profundas e em varre-las de seguida para outro lugar. A lua, desfocada, já está ali de guarda, pendente acima da linha do horizonte, como um sopro de ar suspenso criando um ambiente crepuscular interminável a fazer acreditar na elasticidade do tempo. As horas a espalharem-se diante do Senhor Impontual, e o amanhã a tornar-se tão vago que deve estar mesmo muito longe. Entretanto, o relógio repicou, a tarde retraiu-se e fez ricochete, pairou uma luz acinzentada e soprou uma aragem fresca que se dissolveu na escuridão.
Alguém sabe ler o céu?
quinta-feira, 31 de março de 2022
Síndrome de deficiência androgénica
terça-feira, 29 de março de 2022
segunda-feira, 28 de março de 2022
Armamento
O Senhor Impontual não entende que com o tempo, ou melhor, com o passar do tempo, as pessoas, zangadas e frustradas que estão, e têm boas razões para isso, não compreendam que quando nos encontramos no terreiro comum, que é o lado de fora da vida, não é mau que nos guie a ilusão - essa arma superior.
segunda-feira, 21 de março de 2022
Equinócio
Espero que ainda te recordes de como, sob as minhas caricias, o teu corpo se enchia de botões viçosos como antes de florirem. Como gostei de colher as tuas flores, deixando-me embriagar com os aromas que elas exalavam. Alimentava-me do teu suco, mas acabaste por deixar-me em troca da salvação da tua alma. Mas que traição, mas que traição! Não, eu não creio num Criador que exige estes sacrifícios humanos. Não creio num Criador que destrói a vida de um homem para salvar a alma de uma estação. Espero que ainda te recordes. Vem, vem. Preciso de ti.
sábado, 19 de março de 2022
A Oeste, o preço do petróleo
segunda-feira, 7 de março de 2022
A guerra é uma emoção desgraçada
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022
A Oeste nada de novo
Quase tão estupido como a própria guerra em si, é o resto do mundo começar a convencer-se que a Ucrânia pode resistir aos russos e que assim sendo não é preciso fazer nada, evitando-se desse modo a sempre chata quezília com o tresloucado papão russo. Que, como bem se sabe, toma Kiev quando quiser e como quiser.
sábado, 26 de fevereiro de 2022
Palomar
O Senhor Impontual saiu esta manhã bem cedo em direcção ao mar. Perscrutar o horizonte marinho é um dos passatempos preferidos do Senhor Impontual. Só se lhe compara um outro passatempo que o Senhor Impontual teve em tempos que era, em noites de constelação, tentar acasalar as estrelas. Às vezes dá a sensação de que a lascívia é uma espécie de veneno que corroí a vida. Contudo, a partir do momento em que se compreende que essa mesma vida, pela sua natureza, não dura para sempre e não pode esperar, o veneno passa de uma tentação perigosa à promessa do renascer. Porque não, pois, erguer o copo e brindar? Eis o pensamento pérfido do Senhor Impontual para este Sábado em que o sol veio embrulhado num manto plúmbeo.
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022
Humor Tétrico
Depois de dois anos consecutivos passados no desconforto do entreportas a contemplar com o olhar triste o vazio do mundo, escutando estupidamente os murmúrios e os ruídos monótonos da rua e sentindo-me mais só no meio de um universo parado, mais abandonado e mais perto do desespero que o naufrago que tirita de frio em pleno oceano sobre a frágil tábua a que se agarrou, ainda havia Putin!
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022
Da Rússia
O dia de hoje é um dia de grande triunfo! A Espanha já tem rei. Encontraram-no. Esse rei sou eu. Foi só hoje que eu descobri isso. Confesso, foi como se de repente um raio me tivesse iluminado. Não entendo como pude pensar e imaginar que sou um conselheiro titular. Como foi que esse pensamento louco pode entrar na minha cabeça? Que bom que na época ninguém pensou em me colocar no hospício."
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022
Devaneio Excessivo Mal Adaptado
Um dia, mais tarde, não precisa de ser já, ainda hei-de aprender a viver exclusivamente pela memória.
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022
O Homem
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022
Kamasutra - posição para o dia dos namorados (cara ou coroa)
Os solitários sabem em carne viva que a imposição de uma tarefa tão simples como passar doze horas a esfregar uns sapatos reluzentes, ou doze minutos a aparar o bigode, demonstra, se duvidas houvesse, que a fome de companhia ou a sede de solidão se transformam facilmente em angustias físicas porque o seu alivio nunca depende do esfomeado ou do sedento mas de outro, de alguém, de um semelhante que ofereça um bocado de amizade ou um gole de carinho. O trânsito por este mundo é uma moeda ao ar, um milagre ou uma ciência viva, um tédio ou uma aventura, uma derrota ou uma vitória, uma sorte ou uma maldição, um calvário ou um festim, um inferno ou um paraíso, mas quer a moeda caia cara ou coroa, a outra face será sempre a melhor das surpresas.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022
Anafilaxia
-- Nunca imaginei que se pudesse seduzir uma mulher só a tocar-lhe na mão, disse-lhe umas horas mais tarde, já nos braços dele, enquanto o sol da tarde anormalmente quente de Inverno entrava obliquo naqueles aposentos soturnos.
sábado, 29 de janeiro de 2022
Dia de reflexão
quarta-feira, 26 de janeiro de 2022
Fiodor
Fiodor não entende que com o tempo, ou melhor, com o passar do tempo, e já lá vão três actos eleitorais, as pessoas - zangadas e frustradas que estão, e têm boas razões para isso - não compreendam que a lucidez será sempre uma arma superior ao descontentamento transviado, a tolerância e a ponderação mais úteis, mais ferozes que os gestos de raiva e desalento inadvertido, e se proponham protestar votar no Chega.
Pessoas, vós que sois gente empenhada no bem comum, portadores da indignação partilhada, que estais ali entre os brandos agitadores de rua e a pequena burguesia estabelecida, sofredores em silêncio, amortecedores da nação, donos dos votos oscilantes, não desperdiceis as vossas balas. Se quereis ridicularizar e flautear o sistema, parar o tempo, fazer um rewind civilizacional, voltar às pedras da calçada, tendes sempre o Vitorino Silva - um calceteiro profissional, um homem de cabeça limpa. É menos arriscado.
Zé Albino, Bala e Camões, fofosuras, comam mais fruta. Ou então, tomai um Melhoral. Não vos fará bem, mas também não vos fará mal. Venham brincar.
terça-feira, 25 de janeiro de 2022
Intermezzo
O sol, a lua e as estrelas projectam a sua luz onde desejam, os navios não são aparelhos para permanecerem nos portos, nem as casas construídas para permanecerem trancadas. As metáforas sucedem-se em cadeia, tocando as suas buzinas como veículos todo-o-terreno num engarrafamento do centro da cidade. Um homem a queixar-se das limitações da liberdade é uma figura tão inepta!
O céu, frio, está coberto de um azul uniforme e a luz, difusa, faz os contornos das coisas parecerem em ebulição. Não sei se meta o cão de pêlo pardo no carro, ponha a Cavalleria Rusticana de Mascagni nas colunas de alta fidelidade e vá dar uma volta de mar ao fundo, ou se fique aqui embrenhado na "mulher mais bonita da cidade"? Já calcei as sapatilhas.
sábado, 22 de janeiro de 2022
Insubordinação
segunda-feira, 10 de janeiro de 2022
Ordem de manutenção
quarta-feira, 5 de janeiro de 2022
Ano novo
No tempo em que ainda era solteiro, Frederico ocupava os dias com longas meditações filosóficas que o mergulhavam numa doce angustia e lhe davam a sensação de pairar sobre a pobre gente que o circundava. Prisioneiro das questiúnculas tacanhas e mesquinhas que lhe absorviam a vida do dia-a-dia, não havia manhã em que não o assaltassem as mesmas interrogações: "de onde venho eu? Que faço da minha existência? Porque estou vivo? Qual vai ser o meu destino?
Esta manhã as roupas de ambos enrodilharam-se em desordem aos pés da cama e os dois corpos pareciam repousar depois de um duro combate. Amélia tinha ainda na mão o sexo vigoroso e luzidio de Frederico, cujo braço repousava numa prega do peito mole e opulento da amante. Estampou-se-lhes nos rostos aquele ar apaziguado que as crianças exibem durante o sono.