terça-feira, 28 de junho de 2022

Arquitectura da fuga

Há um ínfimo momento naquela música do Jorge Palma, “Quem és tu de novo", em que o desejo assume um novo contorno, ganha uma nova forma, um novo odor, uma nova voz e uma vida própria. Há um trecho de história que acontecesse ali naquele instante, naquela fracção de segundo e que eu sei perfeitamente qual é porque apanho-o num voo planado, capto-o num movimento pendular e porque dele me fui escapando numa estúpida, por vezes absurda, diria mesmo irracional miscelânea de amarga e doce saudade. 

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Fly into the sun

A sua pele vibrou ao contacto do primeiro raio de sol, que foi deslizando pelo pescoço abaixo, que lhe contornou um mamilo e depois outro, disparando descargas de corrente eléctrica que a invadiram por completo. À lenta e dolorosa distensão do ventre, seguiu-se a sensação de humidade no côncavo acetinado do intervalo das coxas. Sentiu o calor que irradiava dele a espalhar-se dentro de si, e ficou agitada, baloiçou-se para a frente e para trás, precipitando-se desenfreada numa sucessão de ondas que se foram desfazendo. O bater de asas tornou-se mais rápido, num crescendo que passou a rugido, e ela foi completamente revirada por um forte impacto de calor. Um fluido leitoso e quente correu de dentro para fora e veio perder-se por entre as suas pernas.

Mas achando-se que foi mais o "Walk on the wild side" ou mesmo o" Perfect day", aceita-se sem qualquer contestação.

terça-feira, 21 de junho de 2022

Godot

Eis que, dominado por uma sensação de invisibilidade, como se fosse o único espectador da sua aparição, da sua única aparição, sem que mais ninguém a identificasse no vazio do ali e do agora, me vi perante aquela figura simples, nívea, quase transparente, leve e despretensiosa que se aproximou vagarosamente, e de repente, num assalto de comiseração me surripiou a tristeza, sem a menor intenção de a restituir.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Roseta

@Yale Joel

As coisas que percepcionamos como belas podem ser diferentes, mas as características efectivas que atribuímos ao que é belo são as mesmas. Reparem. Quando alguma coisa nos salta à vista como bela e nos inflama os sentidos, essa coisa tem mais presença, surge mais nítida, revela um colorido, mais vivo. Salienta-se. Multiplica-se. Brilha. Parece quase iridescente se comparada com a opacidade de outros objectos menos atraentes que a paisagem nos oferece. Não é assim? Não vos penitencieis por olhardes para onde os vossos sentidos vos desviaram os olhos. Ou sois mais bananas? 

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Terra e Mar

Horácio viveu durante dez anos com uma mulher da beira do mar. Branca. Meiga. Delicada. 
No inicio, não conseguia passar sem o seu sal fino, sem o seu pulsar suave. Apertava-se com força em volta dela e os seus seios erguiam-se como ondas gigantes que desciam, subiam, de encontro ao peito dele.
Mas gradualmente, o seu cabelo alinhado, dourado e cheio de luz, tornou-se, de repente, demasiado familiar. O seu gosto tornou-se insipido, o seu corpo vazio e os olhos de Horácio desviaram-se para outra, tão sensual e com formas arredondadas que poderia ter sido esculpida na própria terra. Aquilo que ele queria, ela não lhe podia mais oferecer: uma carne que não cedesse, um abraço cheio de fricção e resistência. Horácio ansiava por mulheres da cor da terra, de pés descalços tão firmemente pousados no chão que o vento lhes percorria os cabelos como se corresse por entre as folhas. Mulheres que tivessem braços parecidos com ramos maciços, mulheres que criassem raízes num determinado lugar, à espera que ele chegasse para acariciar a casca delicada e achocolatada das suas pernas e as ramificações das suas coxas tão flexíveis. Uma vez e outra, foi à procura delas, ansiando pela terra.
Na sua inquietude, Horácio, é um homem bom. Liso. Honesto. Partiu hoje para África com bilhete só de ida. 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Paula Rego

O que é admirável na extensíssima obra de Paula Rego é que a sua linguagem pictórica e figurativa não romantiza o ser humano. Por mais que o amor possa estar ali representado, é a denuncia das ilusões e da falsa moral, que sobressaem daquelas cenas mirabolantes de chocantes e dolorosas verdades.

Eu estou grato por esse banho de realidade.

quarta-feira, 8 de junho de 2022

O elo mais fraco

Quando a cadeia do ódio é urdida a partir do desamor, começa sempre num elo muito frágil: os ciúmes. Aos ciúmes junta-se a presunção e à presunção a obsessão sem fim.

terça-feira, 7 de junho de 2022

Que estranha forma de impotência!

Os homens estão a matar a mulheres. 

Já sinto vergonha... da vergonha.

Pintar Junho

Há largos meses que não aparecia. Entrou com a elegância de sempre. Sentou-se no canapé de palhinha com as costas direitas, entrelaçou os dedos das mãos e deixou-as cair sobre o regaço. Fez uma pausa. Ignorou-me com o olhar. Fixou-se absorta no vazio. Começo com um esboço do seu rosto. Na última vez que posou, favoreci-a na tela. Hoje serei implacável nos pormenores e registo cada ruga ou mudança de cor, ou sinal oblongo. Observo-lhe o busto. Um dilúvio de entusiasmo pela sua pele, aquela seiva provocante que anima os meus olhos, faz-me antever horas sublimes. Mas acabo por esquivar a minha própria rendição, prolongar o tempo em volta de um corpo nunca vazio, dar-lhe vontade de se mostrar nu, fazê-lo encontrar em si essa volúpia. Para que consiga deleitar-se com esse exercício é preciso que goste de si mesma, do seu corpo, mas também da personalidade que sofre dentro dele.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

1972

Hoje, ao cabo de um momento, adivinhei tudo; um único minuto bastou para me revelar de repente, sem uma palavra de explicação, graças a um raio de luz irresistível, esta verdade fatal que milhares de factos, repetindo-se todos os dias à minha vista, durante longos anos, não haviam conseguido fazer-me suspeitar.

Ainda sou uma criança.