quinta-feira, 28 de junho de 2018

Cesariny


Rejúbilo
Por arder de mansinho junto ao mar
rejúbilo
porque uma coisa é certa: ninguém me ouve
rejúbilo
porque outra é indubitável: eu não oiço ninguém

Rejubilemos

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Perguntem ao Carlos

O ressentimento é uma sopa espessa que se pousa nos lábios, passa pela boca e pelo esófago e vai ancorar-se no estômago. E por ali fica, em ebulição constante ao longo de anos, até regurgitar.

Palomar

Está-se no final do mês de Junho e no ar paira a fragrância do jasmim, do alecrim, da madressilva e das mimosas. Os botões da catalpa rebentam nas árvores, parecendo estrelas, o seu perfume a leite-creme espalha-se delicadamente pelo ar. O Senhor Impontual olha para aquela mulher dentro do seu vestido de linho cor purpura. Olha para ela e pergunta-se como como será a sua roupa interior, pergunta-se como será nua. O linho até uma certa idade acrescenta dez anos, depois de uma certa idade retira dez anos. O Senhor Impontual, numa rápida incursão mental pelo seu closet, afere que não tem uma única peça de linho. Mas não vê nisso inquietação de maior.

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Às vezes acontece a vida acontecer

Num cair de noite assim, sob esta luz de vermelho ao mar, puxá-la para mim, abraçá-la fortemente, acariciar-lhe o cabelo e, peito com peito, capturar o pulsar do seu sangue, deixar-me levar no percurso ondulante da sua circulação. A lua, ali de guarda, pendente acima da linha do horizonte, como um sopro de ar suspenso. Um ambiente crepuscular interminável a fazer acreditar na elasticidade do tempo. Ele a espalhar-se diante de nós, e o amanhã a tornar-se tão vago que deve estar mesmo muito longe. Depois... o tempo retrai-se e faz ricochete, o relógio repica, paira uma luz acinzentada e sopra uma aragem fresca...

Não vos acontece, acontecer?

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Inturgescência


Os aviões sempre exerceram sobre mim um efeito analgésico e euforizante. Talvez em consequência da rarefacção do oxigénio, a não ser que seja o facto de voar a vinte mil pés de altitude que me transmite a inebriante ilusão de me encontrar fora do alcance das contrariedades e das preocupações terrestres. Refastelado no assento, de cabeça apoiada no vidro da janela, apalpo-me por dentro e questiono-me. Aos vinte anos, não temos coração. Julgamos que temos; estamos convencidos de que fomos amaldiçoados com uma coisa sagrada, inchada, que estremece ao ouvir os nomes que adoramos, mas não é um coração, porque ainda que abdique de tudo no mundo - da mente, do corpo, do futuro, até da ultima hora solitária que tem - não se sacrifica a si próprio. Não é um coração, aos vinte anos, é uma rainha gorda que murmura na sua colmeia.
Quando é que nos nasce o coração? Quinze, vinte anos anos depois de precisarmos dele?

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Questiúncula

Sabendo-se da sua natureza egocêntrica, dos seus narcisismos desastrados que à medida que as suas obsessões aumentam se tornam mais febris, o que é que aquelas duas criaturas, lá no meio daquela testilha sem história, terão para dizer uma à outra? 

Carrego eu ou carregas tu?

Com cumprimentos ao Cão Grande


Nestes tempos em que o existencialismo anacrónico ousa pisar o terreno do romantismo desacreditado, Fiódor - o cão de pêlo pardo - não acredita no amor convencional, mas também ainda não encontrou um substituto para esse sentimento. É a metafísica paradoxal. Deixa, porém, um aviso intemporal:  cuidado com os subterrâneos dos desejos, que as suas janelas estão sempre escancaradas.

sábado, 9 de junho de 2018

Insónia

Bocarra aberta que aspira o vivente para depois expelir miséria. Sorvedouro. Tudo ali se transforma, o ar, o ruído, o grito. Tudo se apresenta, tudo se exalta. Indiferente, sem pudor, caminha sobre a sombra dos transeuntes como se tudo se espezinhasse. Lugar sem meio, migrante, flutuante ao sabor dos terminais do pensamento, ao sabor das horas e picos de reflexão, campo aberto onde se extasiam fragmentos. Queixume ininterrupto. Às vezes noite-encontro, os amantes nas suas caçadas esgueiram-se pelos becos sem saída, caricias dóceis, o esperma jorra, o prazer é tão curto.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Quando vier a Primavera, se eu já estiver morto, as flores florirão da mesma maneira *


* Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa - Poemas Inconjuntos

terça-feira, 5 de junho de 2018

Polinómio

O facto de termos a mais baixa taxa de natalidade da Europa, representada numa média de 1,3 nascimentos por mulher, aliado ao facto de estarmos a produzir uma média diária de lixo na ordem dos 1,3 kgs per capita, o que representa uma dramática subida da produção anual, poderá deixar-nos de certo modo optimistas, quanto ao futuro, perante o facto de metade dos alunos do primeiro ciclo não conseguir saltar à corda ou efectuar uma cambalhota simples com saída para a frente e a outra metade não saber apontar Portugal num mapa?

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Graciosa


Enquanto lá fora o céu, baixo, esvaziava o seu ventre, os seus excrementos, num aguaceiro amarelo de enxofre vulcânico semelhante à urina, invadiu-a um desejo cheio de fervilhantes impaciências. Os excessos daquela natureza oceânica que crepitava sob gotas grossas, fazia eco aos seus enormes apetites. Indiferente a tudo, Graciosa sentia agora não só a febre de comer aquele homem, aquela fome indescritível que por vezes sentem as mulheres inconclusas, mas também a de ouvir, inteirar-se das lavas internas, daquilo que assoma para fundar uma pessoa, ir de uma alma a outra, partilhar o dom da oferenda reciproca da fala, da escuta e... da absolvição.