segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Bruxas.

Puxou-me para si, depois empurrou-me bruscamente para cima da cama larga, deitou-me ao atravessado sobre o edredão, quis levantar-me, apertar-me nos seus braços, fazer-me sair de um mundo onde não tinha vivido para me arremessar para um mundo onde não vivia ainda; os seus lábios entreabriram os meus, conspurcaram os meus dentes, que tinha apertado, a língua demasiado carnuda assustou-me, o sexo, estranho, não se moveu - esperava ausente e recolhido. Os seus lábios passearam sobre os meus lábios: umas pétalas que me varriam de lés-a-lés. O meu coração batia demasiado alto e eu queria escutar aquela doçura, aquele adejar novo. Beija-me, pensava eu. Ela traçou um circulo à volta dos meus lábios, rodeou a agitação, colocou um beijo fresco em cada canto, largou duas notas excitantes, regressou, hibernou. Os meus olhos estavam redondos de espanto debaixo das minhas pálpebras, o ruído das ondas nas rochas era vasto demais enquanto ela continuava: descia nó após nó, por uma noite para além da noite até largar um travo de mel na minha boca que me fez saber, então, que tinha estado privado dela antes de a conhecer. Pão por Deus.

Poliprion Americanus

Dostoiévski deveria ter isto em mente quando definiu o homem como uma criatura que se habitua às coisas.

Ressonâncias.

Às vezes a vida não lhes dá aquilo que desejam, e esperam. Esperam pacientemente, inventam desculpas para continuar à espera, e inventam esperanças com que se alimentam. E o tempo passa e passa, e querem que o dia de hoje não dê lugar ao dia de amanhã, que não seja a continuação do dia de ontem. Às vezes, têm a perfeita noção de que os deuses vão permanecer inactivos. Às vezes, ficam ali a tentar ser já sem que o tempo exista. A aprender que a expectativa é o presente do futuro e que a salvação, às vezes, vem em comboios muito atrasados. Às vezes, acontece...

sábado, 29 de outubro de 2016

Já em 1881 Machado de Assis ensaiava sobre a polémica problemática do exercício da parentalidade e o consequente processo de subjectivação da criança.

«Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semi-demência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.»

Machado de Assis in Memórias póstumas de Brás Cubas

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Indiferença

Não sei como definir isto. Se é uma sensação ou um sentimento. Será possível que a ausência de sentimento seja um sentimento em si? Seja como for é um estado de ânimo que atordoa. A sua presença pressupõe a falta de tudo. Abre um vazio. Além de estranho pelo seu significado, é estranho pela sua natureza destrutiva. Indiferença! Que puta de sentimento sensação esta.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Russos.

Fiodor Dostoievsky -  «O eterno marido»
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Uma das coisas que se aprende com a leitura dos russos é que não há necessidade de nevoeiros e símbolos: qualquer realidade, quando é bem descrita, produz ela própria os símbolos e, com efeito, qualquer personagem ou objecto numa situação determinada, pode ser um símbolo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Fósforo

O amor é algo para ser merecido. O conhecimento íntimo é que estraga tudo. Entra-se primeiro naquela componente de amizade. Depois, da usurpação da identidade à luta pela exclusividade absoluta é um fósforo. Mas não é só no amor, no trabalho também.

(Fui comprar umas Caterpillar Kitson Safety. Que lindas são!)

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Sem abrigo.

Decidir, decidir, decidir. A vida não é mais que isso. E se não soubermos escolher, os factos escolhem-nos a nós. Sem uma palavra, sem uma queixa, só com o silêncio. É uma coisa horrível, perguntarmo-nos para que lado vamos dormir: é como estar expostos ao céu escuro e profundo, nus e indefesos por dentro, sem abrigo possível. Uma emoção negra. Uma unhada na alma.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Do debate desta noite.

No face, no fear and no loathing...
(Amanhã terei tempo para horrores. Hoje, não.)

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Um outro ícone da cultura americana e mundial.


De joelhos, num gesto brusco que não deixa margem para protestos, os jeans puxados para baixo a prender as pernas e aquela sensação de estar preso, apenas esbracejar, contorcer-se e proferir um chorrilho de palavras vindas directamente das entranhas, sem passarem primeiro pelo cérebro, sem qualquer filtro. "Queres mesmo que eu pare?» O polegar que desliza ao de leve pelas partes molhadas onde a língua já estivera. Um longo arquear de costas a catapultar para a frente um «não» absolutamente rotundo.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Em três dias...

...criei o esquecimento, mas também a recordação: um imenso território branco. Deve ser essa a cor da indiferença.

E então, já se decidiu se aquilo do Dylan é ou não literatura? A montanha já pariu o rato do imposto sobre os imóveis caros? Em que níveis estão o suspense e a vibração no caso do maluco de Aguiar da Beira? 

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Disgeusia.

Nos dias que correm, a gente da Rede gosta muito de travar batalhas -- e, melhor, de as ganhar -- sem sair do sofá, do computador ou do telemóvel inteligente. Barafusta, reclama, exulta, critica irónica e convictamente. Até regozija. Mas depois não consegue ler, ouvir, apreciar sem vertigem, sentir algum pasmo ou assomo. Estão, por assim dizer, moribundos, os seus olhos e ouvidos estão apagados. Mas a boca não. Questiono-me sempre absurdamente: que gosto lhes ficará na língua? Enxofre? Só se for.
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O grande Dylan lá ganhou o Nobel, não foi? Coitado, deve ter as orelhas arder.

Assobiando Hard Rains Gonna Fall

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Persianas.

As pessoas adormecem boquiabertas. Gosto de assistir impávido a esse momento de agonia em que toda a gente se retorce e evoca. Evoca o passado, vão-se fechando as janelinhas, umas atrás das outras, a escuridão entra-lhes pela pele, uma tinta espessa sela-lhes a vista, e ali fica a sua vida congelada à espera do dia seguinte. Depois deixo-me ali, silencioso, a mitigar sobre o seu despertar. Certamente uns dias levantam-se do abrigo atormentados por visões e espíritos, outros deslumbrados por uma música interior. A vida parece ser isto. Adormecer, despertar. Despertar, adormecer...

Ao cuidado dos Senhores da Academia.


Deixem-se lá de geopolítiquices e outras coisas que tal, está bem?

O Homem que contempla

©Chiahru Shiota

Vejo que as tempestades vêm aí
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,
batem nas minhas janelas assustadas
e ouço as distâncias dizerem coisas...

__R.M. Rilke, "O Livro das Imagens"

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Resolução 66/170, da Assembleia Geral das Nações Unidas

Reparei que olhava bem de frente, que não abanava as nádegas, que era uma rapariga de poucas curvas, aparentemente pouco sexy, mas com um sorriso, um sorriso que escancarava o mundo, e que a acendia toda e a deixava a transbordar sabe-se lá de quê!

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Isósceles

Estou aqui às voltas, como de resto a maior parte das pessoas, no espaço entre a vida a dois para sempre e a libertinagem, vou passando algum tempo a pesar opções. Por acaso até me apetecia falar em triângulos, mas normalmente as pessoas ficam todas eriçadas quando se lhes fala em triângulos - pensam automaticamente em traição, rivalidade, vencedores com sorrisinhos de satisfação e vencidos amargurados de testa enrugada - mas como não tenho a certeza de dispor de um vocabulário suficientemente rico em nuances para discutir triângulos neste momento, aguardo então por um ambiente mais distendido.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Vizinhança(s).

Já o do lado esquerdo, pensa retirar-se do amor como quem se despede do palco. Cansado de representar sempre o mesmo papel. Apenas o cenário muda. Sempre o mesmo papel: terno e inocente no prólogo, mortífero e mortificado quando o pano cai. Uma autêntica tragédia redigida por um autor desconhecido e cujos textos recita como um aluno de conservatório, aplicado e esforçado.

(Agora que o sol baixou, que sensual, que caprichoso, que magnifico é o efeito da sombra da sebe sobre o relvado: abraça, na sua forma sinuosa, os meus melhores sonhos, os meus desejos impossíveis. Só gostava que vissem. Estou tão constipado!)

Vizinhança.

Ela já não é nova, mas foi-o. Ele, nasceu velho. Nunca está contente. Nunca está aborrecido. É um homem alto, seco, louro. Ela é pálida e sem viço.

(Eu sou o vizinho engripado que, retido em casa, veio ao jardim apanhar um pouco de ar, mas que já volta para dentro.)

Chã de folha de laranjeira, rum, Borges, a voz desgraçada de Shane MacGowan, pingo no nariz e... uma insónia demorada.


terça-feira, 4 de outubro de 2016

Duplo mortal invertido com saída à retaguarda.

Nada em redor, a não ser o ar na plenitude do seu movimento e um reconforto absoluto. Os pensamentos flutuam lentos e retorcem-se grotescamente como uma mosca à procura de uma janela aberta. O mundo apresenta-se repleto de telhados e pontes que oferecem essa garantia. Podia simplesmente inclinar o corpo para a frente, suportar o minuto difícil da queda. Mas, e depois? inquiriu-se.
Um dia vê-se e não se sente, outro sente-se sem se ver, eis a eterna condição. Às vezes continua-se a ser já sem que se exista.

sábado, 1 de outubro de 2016

Chacota.

Eu se fosse americano estaria agora numa profunda reflexão do tipo: nós que fomos os primeiros a ir à lua, nós que inventamos a Internet, nós que mostramos ao mundo a bomba atómica, nós que descobrirmos a coca-cola, levamos à mesa os hambúrgueres, nós que preparamos o melhor atleta olímpico de sempre, nós que dominamos e marcamos a cadência do universo, não podemos continuar a ser gozados até Novembro. Mas como sou português, calo-me bem calado