quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Questiúncula

Li por aí que os deputados do Bloco de Esquerda há uns dias levantaram-se entusiasticamente a aplaudir um voto de pesar a um ditador morto, mas que ontem aquando da intervenção no Parlamento de um Chefe de Estado - vivo - de uma democracia vizinha se deixaram ficar, malcriadamente, sentados, desrespeitando a boa educação institucional. Não páro absurdamente de me questionar se não terei sido também um nadinha malcriado quando há dias o mesmo Chefe de Estado passou à minha porta e me chamaram para ir à varanda ver o Rei e me deixei sentado na poltrona a ler no Aleph de Borges o que me faltava do curto mas fascinante conto "Os dois Reis e os dois labirintos"? 
Depois saltei para o "Deutsches Requiem".

Santo padroeiro.

Mais vale confessar desde já que tenho um pacto com o diabo. Não é nada de extraordinário - uma pitada de niilismo social ali, um pouco de sabotagem comportamental acolá - e receio que faça parte da minha existência. Coisa de nada. Não inspira grandes cuidados.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Introspecção do mal.



__Deutsches Requiem, Jorge Luís Borges - O Aleph

Regata

Por outro lado as palavras "ir embora", que deveriam ter o efeito de um grande alívio, são quase sempre interpretadas pelas pessoas e pela sua mente baralhada como se fossem o tiro de misericórdia. Como se o mundo fosse um barco e as atirassem borda fora.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Teresa

Custava-lhe muito fazer aquilo. Sabia que estava a deixar tudo para trás. A mãe, Tecas - o gato maltês, a carreira que nunca lhe agradara, tudo o que fora a sua vida até aí. Mas aquilo não foi verdadeiramente a sua vida. Conseguia agora perceber que nunca passara de um reflexo das vidas de outras pessoas.
Apesar de tudo, já sentia saudades da mãe. Sempre irá sentir a falta dela, a força da sua persuasão. Fica a imaginar quanto tempo irá demorar a perceber que se fora embora. Do lado de fora da janela, Lisboa passa a correr. O ar está límpido e frio e os aspersores assobiam junto aos passeios. O autocarro segue com velocidade, uma sombra esguia que passa por entre as luzes da cidade e algures, no meio da escuridão parece capaz de dizer qual o momento exacto em que a mãe aceita a sua partida. Suspira e esconde o rosto nas mãos, sem dizer uma palavra. Nesse momento sente a tensão abrandar, subitamente. As outras pessoas que vão no autocarro não notam nada, mas durante este tempo todo, tem estado cada vez mais leve e mais vazia, até que agora, por fim, começara a sentir-se a emergir. Era apenas uma rapariga que vai passar pelo resto da vida como o vento.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

O radicalismo no amor

Aflige-me aquele género de pessoas que falam das suas paixões particulares com aquela singularidade em que tudo arde e tudo se consome. Aflige-me e faz-me sempre sentir simultaneamente invejoso e ligeiramente desconcertado. Sempre que pressinto o seu fogo lento por trás da cortina de uma conversa, não consigo deixar de perguntar a mim próprio se alguma vez na minha vida terei amado alguma coisa com o mesmo género de intimo conhecimento, com a mesma intensidade, com a mesma largura e fidelidade. Tenho a certeza de que nunca amei o que quer que fosse tão magnifica e magnanimamente como essa gente ama qualquer das suas pequenas coisas. O calor de cada uma das suas observações vem de uma labareda imensa! Que alegria não haverá nisso! Já para não falar daquela parte da fadiga e trabalho árduo que qualquer grande amor seja ele por pessoas, por cães, por gatos, por jardins, por deus, por futebol, pelo socialismo ou mesmo pelos próprios filhos, implica inevitavelmente. O amor não era uma coisa natural?

Rosas

Curiosamente já há entre nós aqueles optimistas cegos e que interpretam todos os acontecimentos a nosso favor, que vêem em todo o lado sinais de grandeza aparente e que o futuro, inevitavelmente, chegará por uma estrada forrada a rosas. Entretanto, nas ruas, o desespero é grande e aninha-se em todos os cantos. Não há chão para tantos pés.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Segunda-feira.


Levantou-se de manhã cedo. Tomou banho, fez a barba e contemplou intensamente o rosto no espelho, olhando para ele como se não lhe pertencesse. Podia ir sem receio.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Decantador


Não há nada como numa sexta-feira chegar cedo a casa, um decantador, um copo de balão e um terraço voltado para o mundo onde passar algum tempo sentado a ouvir o cair do dia, a agitação da chegada das aves nocturnas contra um céu cinzento, cada vez mais escuro. Uma certa solidão imposta e alguma paz é o que se precisa para reflectir. Impressões dispersas, pedaços de conversa, observações e opiniões meio formadas atravessam-me a mente, e uma sensação de tranquilo bem-estar instala-se, devolve-me a mim próprio e fico com maior consciência do prazer da própria companhia. Reclino-me na cadeira de palhinha que faz baloiço, beberico calmamente o vinho, e percebo que sou um terrível juiz de carácter que, com efeito, se vai enganando um pouco em quase tudo. Mas que, sozinho, debaixo deste cenário romanesco, esforçando-me por aceitar esta nova visão de mim mesmo que me permite entre outras liberdades nunca imaginadas, a de admitir que ainda há uma série de beijos e abraços por dar. E que isso, de entre todos os rigores de uma reflexão profunda, ainda é o que me sossega. Logo mais vou ao jazz.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

«Sou eu. Estou bem. Amo-te».


Já não sabia qual era o significado da primeira frase, a segunda era falsa e a terceira parecia já não ter importância nenhuma.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

«A rapariga no comboio»

Numa mão o café num copo plástico, na outra um croissant do qual mordisca apenas a ponta. Retira um brinco, atende o telefone. Um par de pernas cruzadas, sapatos de couro falso trançado e meias pretas mal esticadas, passajadas. Uma imagem a preto e branco que cheira a miséria e a esforço, a pequenos esquemas e a uns euros duros de ganhar, a coração que se aperta e a sonhos que se fazem esperar. Mirou-me com um olhar agudo. Tentei sorri-lhe. Não consegui o esboço. Éramos os únicos ocupantes da carruagem.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Esplendor

O dia de hoje parece uma ilha. Na manhã desta terça-feira, pergunto a mim mesmo se serei capaz de vencer a prova de viver rodeado de esperanças por todos os lados. Que maravilha o orvalho, que sol mansinho mas radioso, que brisa delicada, que estranho tremor o da liberdade e da expectativa! Parece que me basto a mim próprio. Os demónios, esses, parecem compensar o que os deuses vão tirando.  Logo mais a lua virá grande?

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Olá, bom dia.

Como estão? Cansadinhos, não é?  Foi muito Trump, muito Web Summit, muito Pedro Dias. Pois eu, apesar de tal como tantas outras pessoas que vivem este extraordinário momento da história da humanidade, não tenho, de forma alguma, a certeza do que está correcto e do que está errado. Por isso, se aqui e acolá vos parecer um pouco lento a compreender as dimensões politicas, tecnológicas, morais e sociais do que se está a passar, receio ter de vos pedir que tenham paciência comigo. Peço desculpa. É uma idade difícil.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Tríptico





Hoje morreu uma parte muito significativa da minha música. Talvez haja um deus acima. Um frio e triste aleluia.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Caverna

Por muito que nos oiçam e esmiucem as nossas confusões em fragmentos pequenos, tão pequenos que não possamos fazer outra coisa senão sorrir. Por muito que nos ofereçam música que nos comove, leituras de poemas que nos dizem que é de nós que está a falar, e é de nós. Por muito que nos ofereçam livros que vão para além da limitação das palavras. Por muito que nos mostrem caminhos que dão outros significados à vida. Por muito que nos possam oferecer, se não nos oferecerem a emoção da caça, aquelas cocegas na barriga e a certeza-incerteza de saber se a presa será ou não nossa. Nada feito.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Bosta.

Agora é definitivo. Desenvolveu-se hoje, mais do que nunca, a tese que reduz o mundo inteiro a uma espécie de massa bosta acrítica, destinada unicamente a regular a cotação do petróleo, fazer a vénia e desembolsar os prejuízos colaterais. A unanimidade da derrota previamente anunciada redundou numa bela trump(a). Ou bosta se preferirem.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

A imposição do cinza.

Recordo como se fosse hoje. Foi num dia cinza, cinza, cinza da cor do tédio. Atrás do mar, agitado, via-se um magote de nuvens presas no fim do horizonte a enclausurar o céu que ganhava a passos largos uma associação a reminiscência desagradável. A textura do silêncio em redor era de tal ordem que parecia destilado, depurado. Apareceu com a sua graça, com a sua ousadia e humor. Trazia algo de cândido e provocante ao mesmo tempo. A surpresa do diálogo ocasional a intensificar uma impaciência de mãos, os lábios agudizados pela chama ágil do olhar intenso, o cenário a oferecer conotações incitantes e a impaciência a não permitir grande margem para adiamentos, um braço invisível, tórrido, a indicar com delicadeza o túnel do pecado em direcção ao lugar de todos os sacrilégios, onde tudo correria na perfeição, sem quaisquer resquícios de outros apegos, mas apenas atordoados pelo sentimento de posse mútuo, pelo desprendimento, pela frenética simultaneidade, pelo infantil sentimento da realização momentânea. E assim foi. Num dia cinza, cinza, cinza da cor do frio.

Leitura


Meus olhos resgatam o que está preso na página: o branco do branco e o preto do preto.

__Herberto Helder - Bebedor Nocturno, poemas mudados para português 

sábado, 5 de novembro de 2016

Claridade



Clareou.
Vieram pombas e sol,
e, de mistura com sonho,
pousou tudo num telhado...
(eu, destas grades, a ver,
desconfiado.)

Miguel Torga

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Grau Zero

Há dias em que, em vez de se abrir um jornal, bom era entrar-se num estado de ausência absoluta. Pender para a aproximação a um sifão misterioso que nos aspirasse para um outro mundo, território de menos angústias, campo aberto a outras euforias desmedidas, barco sem amarras arrastado por uma corrente invisível, a derivar insensivelmente para o largo. Aprendendo-se assim a evitar todas as formas interrogativas e a articular frases e semblantes que não exigissem nem inspirassem nenhuma explicação, nenhuma justificação, nenhuma continuação.

Sistema nervoso simpático.


Já há muito que não via duas mulheres exercitarem-se na insinuação sarcástica. Há muito que não corava desta maneira, que não sentia tão vivamente o ridículo de que se cobrem duas mulheres fogosas quando tentam atingir a rival através de mordeduras idiotas, considerando a saliva um veneno e olhando de lado ao lançar as flechas da troça. Aceitar pegar nas armas do adversário para combater sempre foi um erro muito comum, contudo a pseudo-indiferença e o riso de ódio desenhados no rosto de alguém também está próximo de um espectáculo horrível. Vergonha alheia!

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Gasganete.

Da vida escolhia sempre o que era palpável, caminhos seguros, corrimões onde se agarrar. Ia sempre direito ao alvo. Trilhava sempre caminhos que passassem longe da ribanceira imaginária de onde alguns - os cabeças-de-vento - se lançavam com a ilusão de aprenderem a voar na vertigem da descida. Preferia sempre ancorar em terra firme. As nuvens não foram feitas para se andar sobre elas. Ria-se dos poetas repentinos, desconfiava dos boémios, dos noctívagos, dos apaixonados. Propunha-se sempre, e que ninguém duvidasse que o conseguisse, a descobrir os truques do mágico: como saiu o coelho da cartola ou a artimanha do ilusionista ao serrar ao meio a voluptuosa assistente. Nunca fraquejava. Só que um dia as picadas do ciume, da mesquinhez e da vingança estrangularam-lhe o gasganete, pagou caro o desprezo pela ficção, viu-se obrigado a fantasiar e não sabia. Só lhe ocorriam cenas de péssima qualidade dramática. Deixou de se bastar a si próprio. Está agarrado ao arbusto no meio do precipício.