terça-feira, 30 de maio de 2023

Maria Luísa

Maria Luísa não mente, não engana. É o que é. Pode parecer arrogante, mas é verdadeira. Ganha a vida a aparecer. Transforma facilmente vencimentos muito razoáveis em álcool e más decisões. É depressiva, analítica, estupidamente inteligente e sufoca com o compromisso.
Não é uma mulher normal, nem pretende ser. O seu objectivo é bem mais simples: ser um bocado feliz. Numa tentativa de auto-observação, com uma leve pitada de algofilia, começou no inicio desta semana a consultar um psiquiatra. Dia após dia viu-se forçada a falar sobre o João por quem é apaixonada, sobre o Pedro com quem vai para a cama e sobre o Filipe - o seu apoio emocional. Os três homens que arruinaram a sua vida e a quem é completamente devota.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Albertino

Nunca votou. Era um principio ao qual sempre esperou nunca ter de renunciar. Até agora, resistiu a todas as tentações, a todos os processos de culpabilização, de desestabilização, às pressões, às chantagens, às avalanches de argumentações fundamentadas ou de argúcias falaciosas, agarrando-se ao único cântico do seu modesto breviário, convicto de que, todos sabemos que as eleições são uma cilada para uma pouco invejável congregação. Modestamente esforçou-se, pois, por nunca fazer parte dela. Esta atitude pode parecer um tanto limitada, a certos espíritos subtis, mas a harmonia cristalina desta concisão sempre lhe agradou. Não é este o momento de desenvolver quais os motivos. Digamos simplesmente que, para além da intangibilidade deste intróito, nunca apareceu, ao longo da sua vida, um único candidato em busca de votos a quem confiasse as chaves do seu carro ou de sua casa, em suma, um tipo com quem gostasse de partilhar uns momentos de pesca à linha.

Esta manhã encontrei Albertino no café. No meio de um croissant e um Tutti Frutti, Albertino perguntou-me se já escolhi o molho com que quero ser comido na próxima legislatura.

terça-feira, 9 de maio de 2023

sábado, 6 de maio de 2023

Luzia

Lá em baixo, Luzia caminha para junto da água. Sentou-se sobre a areia quente, com os pés em frente ao mar. Sentiu as ondas a bater contra os tornozelos como um amante que lhe tocava nos dedos com beijos gelados.
Não há sol, mas algumas gaivotas esvoaçam no céu, pequenos pontos de esperança. Luzia sente-se como se estivesse a afastar-se do mundo real e a entrar noutro universo. Um lugar povoado de fantasias. Embora estivesse sentada junto ao mar, podia muito bem estar deitada, completamente nua, numa nuvem branca, espessa. Sentia uma pontinha de medo, porém não o suficiente para querer parar o pensamento. Estava a ficar igual aos demais: encontrara o seu outro eu.
Cá em cima, na esplanada, os efeitos do gin-tónico. A mente a dispersar-se em ramificações eufóricas de fim de tarde.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Menandros

Repete-se até à náusea que o mundo de hoje é um teatro. E isto é assim não porque a natureza tenha per si alguma semelhança com os cenários dos teatros, nem com os anfiteatros helénicos, nem com os múltiplos cenários suspensos de pano ou papel dos teatros à italiana, nem com a sala negra do velhíssimo teatro de vanguarda. São os políticos. Políticos como os nossos, que teimam em fazer das suas vidas quotidianas, dos seus perigosos relacionamentos, das suas insanas prestações sociais e politicas, do seu amor próprio e mesmo da sua solidão, embora a sua profissão não seja a de actor, autênticas peças de teatro. Prestando-se a papeis miseráveis e a representações medíocres como se nessa inevitável ficção, na borda do palco, a cortina nunca se levantasse. Mas levanta, e do outro lado está o publico. Um publico numeroso, um publico frágil, incompreensivelmente silencioso.