sexta-feira, 31 de julho de 2020

GPS (IV)

        Gorbea Parque Natural

O problema dos homens é que não lhes podemos oferecer sempre a emoção da caça, aquelas cócegas no estômago e a certeza-incerteza de saberem se a presa será ou não sua. Isso só pode acontecer uma vez com cada mulher. E eu, naturalmente, já joguei esse torneio.

Isto assim dito em basco, garanto eu, tem exactamente o mesmo impacto que dito em russo. Talvez soe de outra forma em português. Mas já bebi uma dose generosa de txakoli. Aquilo é fraquinho, mas nunca se sabe...

terça-feira, 28 de julho de 2020

GPS (III)

Voltamos à grande cidade, na tarde. Alex conduziu o automóvel com a desenvoltura de um rapaz. Pelo caminho foi observando o voo baixo das gaivotas novas. O seu belo rosto enrugado reflecte imensa serenidade. Cumprimentou pessoas pelo caminho, na tarde. Agora, já noite cerrada, à mesa da sua sala, perante o meu entusiasmo com a região, conta-me que a beleza tem o poder de opor resistência à agressão - é certo, mas tempos houve em que não havia dias incomparáveis, requebrados, mansos e absolutamente ternos. Diz-me que aqui todos os dias possuíam no seu bojo uma crueldade latente que frequentemente explodia. Era um reino de silêncio, mas de frias cumplicidades. Um reino de alaridos calados e também de mudas catástrofes. Aqui as pessoas não se preparavam para a felicidade. Brindamos, com patxaran, a longos anos de vida. Dos quais, trinta, passados aqui.

GPS (II)


É uma manhã de fim de Julho e todas as gaivotas levantaram voo para deixar a praia limpa como um lençol. Ao fundo, no mar, cresce todo o ruido cinzento do mundo. À medida que o dia vai transcorrendo, diminui a expectativa e cresce o silêncio, até que a expectativa se esgoste na totaliidade.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

GPS

O Senhor Impontual está a fazer uma viagem grande ao volante do seu automóvel. São quilómetros e quilómetros. É incrível como todas as estradas acabam noutras estradas. E essas estradas acabam em aldeias, vilas e cidades. De lá, sai-se para outras estradas, que vão dar a outros países, onde as estradas recomeçam. Em todos os lugares onde o Senhor Impontual tem parado, as pessoas parecem apaziguadas e felizes. Vozes ocultas de comando devem ordenar-lhes que amem em exclusivo, que renunciem ao medo porque o medo torna tudo inseguro. Mas, quando as pessoas se livram de um medo em particular, procuram encontrar a segurança criando outros medos, sem deles darem conta. É assim em todo o lado onde vá dar uma estrada. Os homens nunca sabem muito bem o que querem e muito menos onde vão parar. Os homens* são passageiros de passos perdidos. 
O carro de alta cilindrada do Senhor Impontual tem GPS, mas está desligado.

*(Quem diz os homens diz as mulheres, claro está.)

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Sessão da Meia-Noite


"Laranja Mecânica" -  Stanley Kubrick, 1971

Com Maria (sem rosto) que, por instinto, gosta de olhares fragmentados e consequentes leituras dissonantes.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Memento

Observo o interlocutor e sei que tudo aquilo que diz já ocorreu há muito tempo. Eu, como ele, sempre alimentei uma espantosa faculdade de esquecimento. Ambos tomamos notas avulsas para resguardar o passado e alimentar a memória futura.

sábado, 11 de julho de 2020

Palomar

Calções às riscas, camisa de linho branca totalmente desabotoada, cabelo puxado para trás, óculos aviator encaixados no nariz, o Senhor Impontual desliza pelo areal como uma pena. A água salgada, fria, desfaz-se a seus pés num vai-e-vem que nasce e morre na areia saibrosa. O Senhor Impontual vai andando e vai pensado, como é seu timbre: a maturidade de um homem está directamente ligada à perda da sua inocência; à desilusão, ao desencanto. Muda-se-lhe tudo: a maneira de olhar e de examinar as coisas, que se tornam mais distantes; os movimentos mais pausados e calculados; a própria voz que se torna mais grave, menos cristalina e menos feliz. O Senhor Impontual não sabe o que pensar destes desfiles de jovens, desta violência, deste desvario pela captura do momento perfeito, fugaz e inverosímil. Desta gente que não entende que a felicidade e a liberdade são coisas inseguras e instáveis e por isso mesmo belas. Que têm de ser vividas e não apenas fotografadas e difundidas.
Lançam-se num mundo e num tempo hostis e insociaveis - submetem-se a essa domesticação; ignorantes, afáveis e disciplinados. Longe de imaginar que, logo logo, tudo será nocturno e reiteradamente silencioso. As bandeiras penderão murchas, na noite e no silêncio. Logo logo haverá uma parte deles que anda mais devagar.
Sabem agora um pouco de tudo e muito de nada. Saberão mais à frente, sobretudo, que os homens não suportam muita realidade.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Banda sonora

A noite está tropical. Caminho em passo lento. Da rua oiço a voz de um violino. "Pas de deux", Tchaikovsky. A voz do violino sai de uma janela aberta. A janela aberta pertence a um prédio de estilo colonial. Mãos delicadas removem as cortinas e uns olhos brilhantes de um rosto esbatido de obscuridade sobrepõem-se à escuridão por escassos segundos. A música e o prédio de estilo colonial harmonizam-se como um todo perfeito, apenas interrompido por nova e repentina aparição dos olhos brilhantes - um ser imponderável, uma imagem somente imaginada. 
A fantasia nunca foi ordenada, concisa e exacta, mas tem sempre uma banda sonora. Ou poderá um homem apaixonar-se pela voz de um violino?

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Quarta fase de desconfinamento

Nem sabia muito bem porque aceitara o convite. Na verdade, admitiu, fora para mitigar a intensidade do desejo que sentia por ela. Toda a noite enquanto fazia conversa de circunstância, não parara de pensar em leva-la para a cama e fode-la com força e poucas palavras. O desejo, adormecido até aí, tomara-o de novo de assalto com rudeza. Enquanto ela falava, estivera sentado com um pau inquieto dentro das calças, a imaginar que lho punha na boca, que lhe beliscava os mamilos, que lhe mordia o lóbulo da orelha, que a encostava à parede, que lhe enfiava os dedos, que se servia daquela carne de todas as maneiras e feitios durante toda a noite, até se libertar daquela estranha atracção, e depois refugiar-se-ia novamente no confortável vazio que até então não tivera vontade alguma de quebrar.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Palomar


O Senhor Impontual perscruta o horizonte e pensa: se calhar, outrora, tudo se fazia de acordo com as estações, e as pessoas apresentavam-se duas vezes por dia para verem aparecer e desaparecer o astro-rei. Qualquer homem era todos os homens: uma vontade livre, um dever coordenado pelo seu entendimento do bem e do mal. Hoje, as coisas extinguem-se ou transformam-se rapidamente, apenas persiste a luzinha da lamparina, que derrama um pouco de quê?, um pouco de vida, talvez, ou um sinal oscilante e trémulo. Hoje entre presságios e riscos ouvem-se profetas benévolos, piedosos, demoníacos, coléricos e soberbos que afirmam ter sido o nosso destino selado na terra tal qual a vemos. O homem é o rei de todos os deuses. Os olhos e a voz são a sua força. Às vezes acontece ao Senhor Impontual rir como se estivesse só: um riso retraído.