terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Efeitos colaterais

Que é feito daqueles meus ouvidos nocturnos que eram um queixume ininterrupto, onde se acumulava o arfar dos bairros, o estralejar de camas, os suspiros pós-sincronizados de vozes e corpos sufocados, os ferrolhos que se corriam em quatro pontos e bloqueavam as entradas? Aqueles ouvidos nocturnos que atravessavam mares, margens de rios, ruelas e avenidas antes de tombarem na alcofa da noite onde ecoava a caricia suave de uma mão sobre o granulado de uma auréola que somente é audível para os amantes? Que é feito daquele estrondo quando milhões despem e afloram, quando os saltos altos tombam dos canapés, quando as ligas estalam, quando as rendas e fitas da amargura estremecem, quando os corpos aos milhões produzem as idas e voltas molhadas do amor, quando outras tantas bocas se humedecem da saliva de uma outra boca, de uma outra língua, quando as fruições irrompem da noite e se apaziguam? Eu, que de ouvidos adestrados, era um perito em localizar os decibéis amorosos do mundo e em misturar o tumulto dos motores de explosão mecânica dos prazeres, todas as noites escutava a banda sonora de um mundo invisível da qual gravava pulsões e respirações - qual estetoscópio avisado -, acordo agora com uma estranha, rígida e inimaginável ensurdecência. Para onde foi o amor? 

10 comentários:

  1. Impontual,
    dizem que está em parte incerta.
    Nos entretantos vá fintando 2020 para entrar em 2021 com os sentidos todos despertos[risos].

    ResponderEliminar
  2. Quantas vezes pergunto o mesmo.
    ~CC~

    ResponderEliminar
  3. Bom, eu espero sinceramente, que o mal - se o há -, seja dos seus ouvidos, senhor Impontual. Ou o mundo estará perdido.
    Que, só por este texto belo demais, vale a pena vir aqui lê-lo.

    ResponderEliminar
  4. Impontual, o Amor deve andar por aí escondido por detrás das máscaras...mas quando as máscaras caírem, volta tudo ao estado normal...
    Bom ano de 2021.
    Fica um beijo e abraço mascarado 🌹

    ResponderEliminar