quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Defluência

Ir ao encontro do mundo sem se ferir. Avançar nu, com uma pequena carapaça de desconfiança moldada pela bruma que veio atrás. Erradicar as primeiras baforadas de medo e incerteza. Vaguear pelos meses recusando a ideia da amargura. Descobrir-se diferente, mais vivo, longe das más expectativas. Soltar a pessoa menos cheia de certezas que sentia fremir dentro de si. Soltar uma verdadeira alegria interior a surpreender um tempo que se julgava infinito. Perceber que as cores e as emoções ainda não foram devoradas. Sentir o desejo de abraçar, prelúdio ao prazer. Abandonar o abrigo e observar de perto. Mergulhar nos outros. Embriagar-se de beijos rodeado por uma música interior. Sentir gosto em frequentar esse universo recauchutado sem se atolar em delírios de desgaste lento. Saúde.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Efeitos colaterais

Que é feito daqueles meus ouvidos nocturnos que eram um queixume ininterrupto, onde se acumulava o arfar dos bairros, o estralejar de camas, os suspiros pós-sincronizados de vozes e corpos sufocados, os ferrolhos que se corriam em quatro pontos e bloqueavam as entradas? Aqueles ouvidos nocturnos que atravessavam mares, margens de rios, ruelas e avenidas antes de tombarem na alcofa da noite onde ecoava a caricia suave de uma mão sobre o granulado de uma auréola que somente é audível para os amantes? Que é feito daquele estrondo quando milhões despem e afloram, quando os saltos altos tombam dos canapés, quando as ligas estalam, quando as rendas e fitas da amargura estremecem, quando os corpos aos milhões produzem as idas e voltas molhadas do amor, quando outras tantas bocas se humedecem da saliva de uma outra boca, de uma outra língua, quando as fruições irrompem da noite e se apaziguam? Eu, que de ouvidos adestrados, era um perito em localizar os decibéis amorosos do mundo e em misturar o tumulto dos motores de explosão mecânica dos prazeres, todas as noites escutava a banda sonora de um mundo invisível da qual gravava pulsões e respirações - qual estetoscópio avisado -, acordo agora com uma estranha, rígida e inimaginável ensurdecência. Para onde foi o amor? 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Flor de Natal

Ruiva, esbelta e nervosa, florescia. Os olhos claros, vivos, flamejavam, a intensidade do rosto iluminava-se sob a aura de uma magia facilmente decifrável. Sempre apressada, sem tempo para nada, trabalhava de manhã à noite, como sempre, mas agora, de repente, em tempo de advento, preocupava-se com a forma como se combinam os vestidos, os sapatos, a mala, as luvas, o penteado, o alinhamento das sobrancelhas e...  as rendas interiores.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Calendário do Advento

Em dias como o de hoje em que nos pedem que regressemos bem mais cedo do que é habitual e, ainda debaixo da luz do dia, o Senhor Impontual encontra a casa vazia, fria, triste, escura. Recolhe uns "cavacos" na arrecadação, acende a lareira lentamente e fica ali a ouvir os primeiros estalidos da lenha a queimar. Tira um copo e uma garrafa de Cognac de Charente do armário e deixa-os na borda fria da pedra que emoldura o recuperador de calor. Depois, quando o lume pega completamente, os pedaços de lenha começam a brilhar e uma chama tremulante, regular, começa a dançar por toda a sala, recolhe a garrafa e serve uma dose generosa daquele néctar à temperatura certa. Entre uns goles curtos, o Senhor Impontual acende um Arturo Fuentes, dá umas baforadas e deixa-se ficar por ali uns momentos de pé, como que a contemplar as chamas bruxuleando na vulnerabilidade da tarde pálida a ser tomada pela noite escura. Até que se senta na poltrona de orelhas alumiado apenas pela incandescência da lenha e deixa-se invadir pelas ondas sonoras do sistema nervoso e suas vibrações misteriosas. 
O Senhor Impontual não se permite olhar para trás. Se bem que as atribulações do mundo nos levem o pensamento para lugares onde a vida era feita de abraços. Os mundos de ontem, agora incessantemente revisitados, magnificados, auto-embelezam-se para se converterem em quimeras. O Senhor Impontual não revitaliza firmamentos de azul celeste, não recorda amabilidades, sorrisos de boas-vindas, langores outonais. Não recorda beatitudes, tempos de espírito sereno, de calma e de saciedade. Mas o mundo de hoje e os seus habitantes mudos, a chuva, as frieiras, o medo, as tormentas da ausência, a insónia, os suores nocturnos, os despertares ancilosados, a ansiedade de um regresso, projectam o olhar do Senhor Impontual num único sentido, uma verdade antiga: a vida possui esta característica essencial, o facto de não podermos prevê-la, antecipa-la. Não adianta fazer lucubraçoes. Com a certeza, porém, de para o ano a Senhora do Ferrero Rocher voltará dentro do seu tailleur amarelo e que ainda havemos de nos voltar a aborrecer bastante uns aos outros.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Brandos costumes

A esplêndida sala de jantar de estilo art deco está cheia de gente e ouvem-se sussurros por todo o lado. É espantoso como o mundo pode estar a inclinar-se no seu eixo e as pessoas continuarem ainda a andar direitas, a viver o seu dia-a-dia, a jantar em restaurantes, a fazer os seus planos, a cumprir tradições. Se não fosse o absurdo das máscaras cirúrgicas penduradas ao pescoço dos convivas elegantemente vestidos, podíamos pensar que a pandemia ameaçadora que paira do lado de fora não passava de uma ficção. Um tocador de piano enche a atmosfera de musica requintada e lá fora uns cedros oscilam com suavidade sob a luz colorida dos vitrais de uma das clarabóias por cima das suas cabeças. Na parede, o impávido relógio de caixa alta Boa Reguladora assinala vinte e três horas. Ainda a noite é uma criança. Janeiro não vem já.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Linha 1

Um homem que está à espera do eléctrico, com uma mala na mão e um jornal debaixo do braço, repara no jovem casal que sai do meio das árvores do jardim. A rapariga é extraordinariamente bonita, tem as roupas amarrotadas, os cabelos ruivos caem-lhe soltos sobre os ombros e as faces estão vermelhas como maçãs. Agarra na manga do casaco do seu jovem companheiro, diz-lhe qualquer coisa e pára. O jovem abana a cabeça em sinal negativo. Pega nas mãos da rapariga e fala-lhe com uma expressão séria. Depois, beija-lhe levemente os lábios, vira-se e afasta-se. É nessa altura que o homem vê ao fundo da rua o eléctrico a aproximar-se. É uma história intemporal, que se reconstitui e se repete sem cessar ao longo de séculos.  Nada se altera. Só o jovem casal é que não sabe disso.  
Por um instante, ela olha fixamente para o jovem rapaz, depois vira-se, por sua vez, e corre na direcção oposta. Salta para o eléctrico e deixa-se chorar, levemente.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Ajuntamentos

Normalmente éramos dois. Nós e o outro. Bem...às vezes éramos três. Nós, o outro e o fantasma. Agora, vendo bem as coisas, já somos quatro. Pelo menos. Porque o fantasma de certeza que também já tem o seu próprio fantasma. E o fantasma do fantasma...

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Enquanto lá fora a chuva e o vento não param de se digladiar


Cá dentro, o Senhor Impontual faz uma pausa e ouve uma musiquinha de Natal.



Até porque não pode continuar a deslizar o grafite no estirador com este andamento lépido. Assim o Senhor Impontual nunca chegará a compreender-se. O Senhor Impontual não deseja uma vida instintiva. Os instintos desencadeiam-lhe uma serie de explosões ininterruptas. Uma animalidade disforme. Mas quê? Deixar correr a pena no velino é ainda pior.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Palomar

"Cada pessoa é um mundo". "O que mais me surpreende nos outros: a autenticidade". 
O Senhor Impontual estava aqui a ler algumas afirmações de Eduardo Lourenço e questiona-se impreciso: será que toda a amizade assenta num mal-entendido, parcial mas real? Aquele que consegue descobrir como é realmente o seu amigo, põe nessa tarefa muito de si próprio. Tudo corre bem até ao momento em que a substância se revela, involuntariamente, de um e de outro lado. Esses momentos são raros. Poucos os vivem. E tais são, regra geral, governados por um andamento lento e cruel, e os seus esforços mais dolorosos residem na descoberta da sombra ou do sangue estranho que o seu ser contém.
O Senhor Impontual não sabe se isto é uma verdade geral. E também não pretende proferir, e muito menos escrever, verdades gerais nem eternas. O Senhor Impontual recorda, de passagem, que o sentimento imbuído de eternidade e o desejo de seguir a lei das coisas o abandonaram há muito tempo.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

1960-2020

 Talvez a genialidade tenha morrido hoje.

Com excepção de MARADONA, nunca tive um ídolo na minha vida.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Querido diário

Não, não vou contar tudo. Seria repugnante. Digamos apenas que era alegre e viva. Mas o seu último espasmo irritava-me. O orgasmo de uma boneca é monstruoso. Porém, era demasiado tarde para parar. Mas não, não sou obrigado a anotar aqui todas as loucuras, todos os caprichos que assaltaram o meu espírito sedento de liberdade, de pecado e... de tranquilidade.
A grande vantagem do mal reside em que a qualquer momento se pode transformar em bem. O contrário também é capaz de ser verdade.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Elegia da derrota

Naquela noite, a luta durou mais tempo do que o habitual. Ambos estávamos exasperados com a resistência do outro. Os nossos músculos, endurecidos mas flexíveis, davam-nos uma fantástica sensação de amplitude, mais imaginária do que real. Os nossos braços procuravam e encontravam pontos de apoio inesperados. De acordo com as nossas posições, os olhares pousavam ao acaso, no tapete, num canto da cama ou da parede, no espelho. 
Lembro-me de pensamentos dispersos, de esperanças pueris, de sentimentos vexatórios. Imaginei o sangue dela a fervilhar nas veias como o meu. De súbito, sentir que me rendia, que queria ser vencido, embora fosse o mais forte. Um segundo mais tarde, ela, obedecendo a um impulso irreflectido, impôs-me a derrota. O efeito foi de uma estranha grandiosidade. A minha derrota durou uma eternidade. Não senti deslumbramento. O combate prosseguiu, selvagem. Estávamos inconscientes, fatigados, encarniçados. O instinto mergulhava-nos numa bruma de torpor. Ignoro quando reassumi o controlo, sei apenas que o fiz ao mesmo tempo que ela. E a minha consciência não me revelou qualquer crime cometido, nem contra mim nem contra ela.

sábado, 14 de novembro de 2020

Rompi o recolher obrigatório

.... e fui por aí bater às portas. E as portas abriram-se de par em par e ofereceram do seu pão acabado de fazer, do seu vinho, das suas rutilâncias, do seu eco, das suas locuções entusiastas, das suas flores, das suas angústias, do seu chá, dos seus olhares, dos seus sufixos indignados, das suas dores, do seu café, das suas fotografias, das suas imprecisões, dos seus livros, dos seus amores, das suas paranóias, dos seus medos, da sua poesia, das suas estações meteorológicas, do seu sentido de humor, dos seus animais, das suas rupturas, do seu mundo, do seu mar, do seu sol, da sua musica, do seu cinema, das suas personagens, da sua pele e da sua segunda pele, das suas irritações, das suas vidas e da pátina que o tempo nelas foi deixando..?

http://noismoraaki.blogspot.com/
(entre outros que não estavam nas suas casas, mas deixaram as portas abertas...)

Sabeis de portas novas onde este sedicioso possa ir bater?

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Breve interrupção, só para tentar perceber o mundo e os seus habitantes

Devido ao agravamento significativo da pandemia, o governo declara um estado de emergência nacional e decreta um recolher obrigatório ao fim-de-semana das 13 horas às 6 horas da manhã seguinte. Portanto, um recolher obrigatório implica as pessoas manterem-se em casa. No entanto, os supermercados anunciam um alargamento dos seus horários de funcionamento a montante, a jusante e dentro do recolher obrigatório. Que raio de perspectiva de negócio esta! Para quem? Se as pessoas não devem sair de casa. Ou podem? Ou a analise do perfil cívico e de cidadania que os grandes senhores dos supermercados fazem dos portugueses dá-lhes a garantia, impune, de mais um dia de gaveta cheia? Ide, ide.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Oh! O deslumbramento depois da angústia!

Quantas e quantas vezes lhe dei forma nas minhas viagens e pensamentos. Ele vive na minha alma. Criei-o ao enredar os factos, as paisagens e os desconhecidos que me rodeiam e não pela força das minhas mãos. Foram muitas as manhãs e inúmeros os crepúsculos em que contemplei uma outra argila transformada nesse mesmo esplendor.
Onde começará, onde acabará o deslumbramento? Não sei. 
Por agora tenho de voltar à narrativa real. Mas o caderno espera-me constantemente sobre uma mesa num alpendre voltado para um mundo empedernido. 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Isabel e as águas de Novembro

É bonita e calada. Não tem qualquer talento ou angustia. O seu saber viver ajuda-a. Não faz perguntas e só fala com conhecimento de causa. Chegada a casa os seus gestos tornam-se mais soltos, esforça-se por lhes conferir maturidade. O chá é o seu principal prazer. Toma-o sozinha, confortavelmente instalada no sofá, descalça, com o televisor ligado no Big Brother e na CMTV apalpa as entranhas do mundo. Depois de beber o chã, deita-se, brinca com o gato, lê umas páginas de um romance de Raul Minh'alma. Amanhã, se não chover, Isabel quer aprender a voar. E actualizar o Linkdin.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Díptico

Importa tomar o rumo de outras tentações. As tentações e os pecados não determinam apenas os caminhos da carne e é essa a felicidade de um homem. Quando peca, liberta-se: da estupidez, dos demónios. Torna-se simples e puro. A luz não provém da luz, provém das trevas.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Sem foto de pouco vale, mas...

Se eu escrevesse para os outros, deleitar-me-ia a descrever tudo o que não sinto necessidade de descrever para mim. Recorreria a uma enorme paleta de cores cruas e insólitas. Escreveria com uma bonita caligrafia sobre o céu azul desta tarde de Novembro. E uma sensação de azul liquido incitaria a minha mão. As palavras alinhar-se-iam, crispadas, incapazes de circunscreverem esta sensação de azul que me dilata o coração. E com a mesma caneta, a caneta da ilusão, descreveria o vento, o horizonte, as ondas à minha frente, as montanhas arrasadas atrás de mim... e o sol lá em cima.  
Mas como não escrevo para os outros e vim até aqui chamado por mim, não fotografei o azul. Um evadido não olha para as ondas nem para o céu. 

domingo, 1 de novembro de 2020

Fiéis defuntos

O medo é como a morte. A morte é pertença de cada um, indivisível, ninguém tem nada a ver com as nossas mortes, ninguém tem nada a ver com as mortes dos outros. Portanto, a morte é um território privado, como o medo. A nossa morte só a nós diz respeito, não a podemos compartir, não há duas mortes para cada um, não a podemos dividir nem rejeitar, como o medo; por isso tememos o medo e tememos a morte porque estamos sozinhos com o nosso medo e com a nossa morte. E o que nos horroriza na morte é termos de ficar outra vez sós. Mas aprender a gostar do medo não significa que aprendamos a gostar da morte.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Virgínia


    Dias de rigor...
em que o dessossego é tanto tanto tanto
que se transcende do próprio corpo 
           e vira canto.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Champions League

Ela pediu um café com leite e deu conta dele com pequenos goles, até ficarem no fundo as marcas castanhas e o açúcar por dissolver, que é o que agora remexe enquanto fala com ele. Tem o queixo apoiado na outra mão, com o braço perpendicular à mesa, e o fino cachecol, que na rua enrolava com três voltas, cai-lhe agora pelos ombros como um adepto de futebol colocaria o seu para mostrar o símbolo do seu clube. Tem a gabardina aberta e os três botões superiores da camisa desapertados. Vê-se-lhe o pesponto do soutien a rebentar pelas costuras e ele sente vontade de mergulhar a cabeça nele, para afastar a tempestuosa conversa que se avizinha, mas com a mesa pelo meio optou por passar-lhe a mão pela mão. Jogada de antologia. A valer três pontos preciosos.

sábado, 24 de outubro de 2020

Creme Brulée

Para lá da vidraça, o mar ao fundo, revolto. Do lado de dentro, cigarros e isqueiros sobre a mesa. Cada um pede um prato diferente para poder debicar o do outro. Ela, alta, com cabelos negros e frisados, as faces de quem gosta de rir, sobrancelhas de mulher minuciosa, que procura algum sentido para a vida, uma direcção, um significado, um gosto verdadeiro. Não o sentido único de que os fatigados, os resignados, se servem para não terem de lutar. 
Ele acende um cigarro, pousa o isqueiro, aspira uma grande baforada de tabaco, marca uma pausa, solta um sopro, dispensa o leite creme queimado, fita-a nos olhos sem desviar o olhar. Deve estar com medo. Tenta permanecer mole, doce, sem varejar com os braços e as pernas, fazendo um tremendo esforço para permanecer aberto, disponível.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Poltrona de Orelhas

O que nos protege do olhar alheio, por vezes, é o que congeminamos no nosso cadeirão favorito enquanto lemos, ouvimos música ou olhamos o declinar vespertino da luz através das janelas cobertas de cortinas de linho. Estamos em condições de consentir espaço para mais alguém além de nos próprios? A que padrão obedece a perenidade do nosso silêncio? O que esperamos? 
Há gente capaz de tudo para conseguir uma só coisa. Há gente que cede tudo e se reduz a um balão de ar, desde que os deixem ser senhores daquilo a que dão relevo.

Chega a ser... não direi humilhação, mas uma intromissão que nos oiçam a música da nossa vida.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A máscara e o mascarado

É ridículo ser um ser que foge. Alguém que tenta esquecer, mas que não sabe o que fazer com a recordação. Alguém que se furta e esconde e do seu esconderijo observa e engana, que desconfia, que recorre a miragens, alguém tão incoerente ou tão frágil o suficiente para se entregar aos dias deixando-os passar. Alguém que não sabe como enfrentar a vida e tão estúpido ou tão inconsciente o suficiente para não se sentir derrotado. Alguém a quem não falta a esperança, mas incapaz de a construir por si mesmo, alguém que prefere esperar apesar das incertezas da espera, alguém que confia que se encontrem as soluções sem a sua intervenção. Alguém que sente medo. A quem atemoriza a passagem do tempo, mas que permite que ele decorra vazio. Alguém incapaz de se esquecer de si mesmo, e suficientemente fátuo para se deleitar com a temeridade.

É ridícula esta inata catarse aristotélica da teatralidade da limitação e do renascimento, da máscara e do mascarado.
Mas...
quid faciemus?

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Observatório

Ele, tudo o que desejava era sentir-se um pouco mais próximo e com essa intenção levantou o braço e acariciou-lhe a nuca que o cabelo apanhado com duas trajectórias deixava a descoberto. Ela, deixou-se acariciar, e pouco depois ele culminou a caricia colhendo entre as polpas dos seus dedos o lóbulo da sua orelha esquerda. Notou-se o seu estremecimento pelo eriçar com que a pele do pescoço respondeu. Até aí tinha mantido o olhar baixo, mas então levantou-o sorridente e, por entre o barulho dos talheres das mesas vizinhas, julguei ouvir um ligeiro suspiro de aprovação ou de rubor que aspirava pelo nariz. Que espectáculo comovente o de um corpo a ceder a uma caricia! Surpreende-me a rapidez com que uma caricia persuade. Onde as palavras fracassam basta um toque da pele. Uma caricia significa o que é, busca uma emoção imediata e poucas vezes se presta a ser mal interpretada, mas pode ser cruel se os actos posteriores não acompanharem a calidez que a caricia iniciou.

sábado, 3 de outubro de 2020

Palomar

Neste contingente estado novo, o Senhor Impontual adquiriu um hábito, uma espécie de passatempo favorito para os seus dias de feriado: viajar nas viagens dos outros, conjecturar sobre os seus percursos, os seus destinos, tentar adivinhar o sentido banal de conversas soltas, decifrar aquele sorriso invulgar, desvendar o significado daquela sombra, descortinar um trejeito ténue e insurgente ou o que contém a flexível doçura daquela voz, acompanhar com os olhos umas pernas com um passo de sessenta centímetros, observar uma ou outra alma a perder as rédeas, dar espaço ao esquecimento, mas também à recordação - esse imenso território branco, sentir a textura do silencio enquanto decide para que lado vai dormir.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Quino (1932-2020)

 


Continuaremos sem saber se o mundo é realmente bonito, mas continuaremos seguros que é extenso.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Também já posso deixar de me importar com as coisas



 Acabei de cortar a erva cidreira. Por mim, está tudo bem.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

A finalidade oculta

Qualquer relato tem consequências, e suscitar a hilaridade ou o desprezo no seu destinatário não é a mais grave. Contamos para compreender e para que nos compreendam, contamos por motivos diferentes, mas persegue-nos sempre um propósito, quanto mais não seja o de descarregar o peso. E é aí, sempre na finalidade oculta, onde reside o sentido de cada relato. As palavras e as diferentes peças discursivas que o formam, não têm valor separadamente. A prova disso é que inclusive no relato mais simples é possível encontrar duas verdades que se contradizem ou que às vezes para expressar uma verdade é necessário recorrer à mentira. Nisso não se diferenciam da vida, por isso de pouco servem as palavras se os actos as não corroboram e por isso frequentemente não há só duas verdades simultâneas que contradigam, mas sim uma legião. Nunca mentimos, portanto. Excepto no sentido de que sempre que uma dessas verdades em luta se impõe, nega implicitamente a existência das outras. O nosso problema é termos demasiadas ideias absconsas.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Estulto

Fala com segurança, é arrogante, orgulhoso e depreciativo, presume da sua força e acusa, quando pode, os desvalidos. Chora. Pede aplausos aos indolentes. Intimamente não consegue sentir-se aquilo que representa. É o débito, suponho, de quem conhece os ordinários anseios onde todo o mal se origina: não acreditar em si mesmo, ter medo de vaguear mudo e com vergonha, esfumar-se numa névoa de impulsos distintos, tapar os olhos, perder o norte, perder o palco. 
Um verdadeiro idiota. Rodeado de idiotas - como diz o Jumento. E bem.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Outono

Os dias sucederam-se tão rapidamente de um equinócio ao outro. Já nada é novo, já nada no novo mundo é novo. Amanhã, não é uma palavra urgente. Talvez seja uma amostra compassiva de esperança. Outro tempo, outra estrada, outra água. Sol branco, lua triste, noite onde talvez os deuses se encontrem. Tudo embate, reflui ou tomba como matéria retalhada. Não são dias de começo, mas sim dias terminais. Envolvidas no buliçoso silêncio imposto, as pessoas existem sem perceber que permanecem no hoje. Ainda há jacarandás, choupos e oliveiras; claro que há. Não há é amanhã. O amanhã não é visível, tacteável. O amanhã encheu-se das pessoas e as pessoas encheram-se do amanhã. Cheios de uma eterna insuficiência. Digladiaram-se toda a vida, talharam-se de uma só dor.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Das expressões modernas

És uma orelha ambulante, aberta ao rumorejo do mundo, onde os laços rompidos, o isolamento e o medo condenam ao mutismo. Pequenos enclaves onde se desenrolam perspectivas e existências falhadas. És um novo normal. 

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Das expressões clássicas

Se há coisas que a pandemia podia aclarar era que a liberdade de uns acaba quando começa a dos outros. Mas, não.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Camp (style)


Por estes dias de regresso à velocidade e violência o primeiro estranho aparece-me logo pela manhã, no espelho de pé alto.
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Atentai no polimento irrepreensível dos sapatos tendência retro.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Eles aí estão...

Estimulando o funcionamento zeloso de uma corte de indivíduos dedicados à cegueira, suspensos do olho frio e do sorriso breve desse homem que nunca se enganara e raramente tivera dúvidas e que sempre convocara Deus como sua testemunha abonatória.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

A resposta que Marcelo quis dar, mas não conseguiu

Não há nada mais humilhante do que ser um assalariado. O teu destino é ser livre. Mas a servidão do assalariado é perversa: dá-te a falsa sensação de que és livre porque ainda vais dispondo de dinheiro para as tuas necessidades mais elementares. Não te queixes. Quem se queixa está a empurrar os seus problemas para os demais. Vai chatear outro!

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Dickinson

Há quem seja fútil de propósito. 
E profundo por mero acaso.

(reconheço-me, mas não me sossega.)

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Marginal



Neste belo fim de tarde de Agosto adivinha-se, embora vagamente, que estes passeios contristados são uma facilidade enfadonha e debilitante para banir sôfregas solidões; fazer uma outra medição do tempo, um outro sentido do lugar. Os caminheiros parecem sobreviventes. Mas impõe-se-lhes a dolorosa ideia de que sobreviveram a algo pouco definido: passaram de lado pela vida, afinal não a sorveram, não a absorveram, não aceitaram os seus riscos, as suas ciladas, os seus perigos, o carácter persuasório dos seus encantos. Sobreviventes de quê, afinal? De um tempo que recusaram, anulando-se? E agora, é a remissão, passeiam-se com voracidade, como quem quer beber o mar, engolir as ruas, comer o mundo que deles se afasta progressivamente.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Um homem...

... que é um vigoroso animal insatisfeito, que pressente que a consciência dos outros homens está adormecida, reclusa numa passividade que não lhes permite, de momento, intentar ideias claras sobre a sua própria singularidade e identidade. Um homem que sabe que todo o ser humano é uma criatura única, irrepetivel e preciosa, com crescente predisposição para o espanto, mas que, todavia, nem sequer resolve a sua própria individualidade, vai agora atentar na insidiosa escalada populista que floresce a céu aberto... é um homem perigoso. Não é? 

sábado, 15 de agosto de 2020

Deusa


Veja-o subir a rua com o pescoço resoluto, a cabeça erguida, embora o tronco ligeiramente curvado; o movimento dos braços dessincronizado, as mãos abertas, à defesa. Vejo-a e parece uma deusa a subir a calçada. Mas, repare-se, uma deusa também altiva e sobranceira, talvez irada com o que em seu redor ocorre, a ira encoberta porém, o olhar apertado, os músculos faciais tensos e compridos, a boca desdenhosa, passos firmes cujo ruído, o silêncio circundante logo absorve. Uma deusa mas occasionatus. Limitada como eu, claro.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Palomar


O Senhor Impontual andou pelo mundo ou por aquilo que se considera ser o mundo, e sabe não haver qualquer tipo de engano: tudo é um curso ininterrupto de sentimentos e de acções consequenciais. O lugar onde o Senhor Impontual se encontra agora - em casa - constituiu alguma excepção, mas não deixa de agudizar inquietações. Como é possível nascermos, vivermos (e morrermos) num mundo assim feito, frágil e instável? Mas nada existe de estoicamente definitivo; obscuros clarões de uma ambígua esperança surgem em grandes paradas citadinas, em ajuntamentos de rua onde se fala de um Estado empenhado na sanidade e nas liberdades individuais dos cidadãos, de estabilidade no trabalho e de tranquilidade nas consciências, quando na realidade o que se vê é um desfile de pessoas num movimento pendular entre a fuga e a nostalgia, como se cada um e todos tivessem o corpo e a alma desgovernados.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

GPS (VIII) - A caminho de casa

Beber um copo onde ninguém conhece ninguém, mas onde todos examinam as estaturas com muda apreensão e indiscreta curiosidade. Retomar a marcha. Avançar pela estreita faixa entre as esplanadas e o rio, aproveitar a sombra proporcionada pela correnteza de prédios antigos, palacetes e velhos solares. Comer melancia e melão. Observar as vendedoras ambulantes ajoujadas sob o peso das bancas amovíveis. Marginal acima, passo corrido, tronco dançante, cada uma delas possuindo uma maneira de andar, seios e nádegas soltos, voluptuosas. Às vezes param e miram com velada tristeza as vielas outrora pejadas de gente. Observar as subtis rotações das coisas, os relativos destinos,a reverberação do sol nos vidros das janelas, o voejar de pombos em bandos, os murmúrios imperceptíveis, o amargo da dúvida, a explosão das certezas, o chiar dos eléctricos nos carris, os pregões, tudo para esvaziar a terrível sensação gelada de um mundo adormecido, aquiescente.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

GPS (VII)



Os dias rumam, consomem-se, remontam e impõem a força indistinta do que tem de ser. Os dias correm, cobertos de demora, de memória, e a sua aparente harmonia parece nascer de um pudor secretamente doloroso e melancólico. J&B, chamemos-lhe assim, meus ocasionais companheiros de viagem, dissipam suavemente os dias, desperdiçando as horas, o tempo, num árido afastamento um do outro. E nenhum deles faz um mínimo esforço para derrubar essa parede de indiferença. Lêem jornais e livros, trocam frases curtas, quase monossílabos, e essas relações concisas exprimem não só um orgulho acossado mas também um desafio escondido. De certa forma, sabem como utilizar o silêncio ou os frágeis factos de somenos para se irritar surdamente um ao outro. São pessoas que têm a ver com o mundo, com as estradas, com os rios - esses caminhos líquidos. E são igualmente pessoas que têm a ver com uma espécie compacta de solidão, a solidão dos diferentes. Talvez seja isso que os torna indiferentes.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

GPS (VI)



Agradarmo-nos de uma sombria calma, deixarmo-nos envolver pela plácida sucessão dos dias que ninguém atravessa, que não dá qualquer sentido a cada encontro, que nos faz esquecer o gosto das antecipações, que nos liberta de promessas, que nos impele a mansas displicências, que nos envia os sentimentos da indolência e da letargia, deixar de lado os deveres que a consciência - esse território pantanoso - nos recomenda, não é viver na solidão. É gostar dela para fazer algumas coisas. É, por vezes, lutar contra moinhos de vento.

sábado, 1 de agosto de 2020

sexta-feira, 31 de julho de 2020

GPS (IV)

        Gorbea Parque Natural

O problema dos homens é que não lhes podemos oferecer sempre a emoção da caça, aquelas cócegas no estômago e a certeza-incerteza de saberem se a presa será ou não sua. Isso só pode acontecer uma vez com cada mulher. E eu, naturalmente, já joguei esse torneio.

Isto assim dito em basco, garanto eu, tem exactamente o mesmo impacto que dito em russo. Talvez soe de outra forma em português. Mas já bebi uma dose generosa de txakoli. Aquilo é fraquinho, mas nunca se sabe...

terça-feira, 28 de julho de 2020

GPS (III)

Voltamos à grande cidade, na tarde. Alex conduziu o automóvel com a desenvoltura de um rapaz. Pelo caminho foi observando o voo baixo das gaivotas novas. O seu belo rosto enrugado reflecte imensa serenidade. Cumprimentou pessoas pelo caminho, na tarde. Agora, já noite cerrada, à mesa da sua sala, perante o meu entusiasmo com a região, conta-me que a beleza tem o poder de opor resistência à agressão - é certo, mas tempos houve em que não havia dias incomparáveis, requebrados, mansos e absolutamente ternos. Diz-me que aqui todos os dias possuíam no seu bojo uma crueldade latente que frequentemente explodia. Era um reino de silêncio, mas de frias cumplicidades. Um reino de alaridos calados e também de mudas catástrofes. Aqui as pessoas não se preparavam para a felicidade. Brindamos, com patxaran, a longos anos de vida. Dos quais, trinta, passados aqui.

GPS (II)


É uma manhã de fim de Julho e todas as gaivotas levantaram voo para deixar a praia limpa como um lençol. Ao fundo, no mar, cresce todo o ruido cinzento do mundo. À medida que o dia vai transcorrendo, diminui a expectativa e cresce o silêncio, até que a expectativa se esgoste na totaliidade.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

GPS

O Senhor Impontual está a fazer uma viagem grande ao volante do seu automóvel. São quilómetros e quilómetros. É incrível como todas as estradas acabam noutras estradas. E essas estradas acabam em aldeias, vilas e cidades. De lá, sai-se para outras estradas, que vão dar a outros países, onde as estradas recomeçam. Em todos os lugares onde o Senhor Impontual tem parado, as pessoas parecem apaziguadas e felizes. Vozes ocultas de comando devem ordenar-lhes que amem em exclusivo, que renunciem ao medo porque o medo torna tudo inseguro. Mas, quando as pessoas se livram de um medo em particular, procuram encontrar a segurança criando outros medos, sem deles darem conta. É assim em todo o lado onde vá dar uma estrada. Os homens nunca sabem muito bem o que querem e muito menos onde vão parar. Os homens* são passageiros de passos perdidos. 
O carro de alta cilindrada do Senhor Impontual tem GPS, mas está desligado.

*(Quem diz os homens diz as mulheres, claro está.)

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Sessão da Meia-Noite


"Laranja Mecânica" -  Stanley Kubrick, 1971

Com Maria (sem rosto) que, por instinto, gosta de olhares fragmentados e consequentes leituras dissonantes.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Memento

Observo o interlocutor e sei que tudo aquilo que diz já ocorreu há muito tempo. Eu, como ele, sempre alimentei uma espantosa faculdade de esquecimento. Ambos tomamos notas avulsas para resguardar o passado e alimentar a memória futura.

sábado, 11 de julho de 2020

Palomar

Calções às riscas, camisa de linho branca totalmente desabotoada, cabelo puxado para trás, óculos aviator encaixados no nariz, o Senhor Impontual desliza pelo areal como uma pena. A água salgada, fria, desfaz-se a seus pés num vai-e-vem que nasce e morre na areia saibrosa. O Senhor Impontual vai andando e vai pensado, como é seu timbre: a maturidade de um homem está directamente ligada à perda da sua inocência; à desilusão, ao desencanto. Muda-se-lhe tudo: a maneira de olhar e de examinar as coisas, que se tornam mais distantes; os movimentos mais pausados e calculados; a própria voz que se torna mais grave, menos cristalina e menos feliz. O Senhor Impontual não sabe o que pensar destes desfiles de jovens, desta violência, deste desvario pela captura do momento perfeito, fugaz e inverosímil. Desta gente que não entende que a felicidade e a liberdade são coisas inseguras e instáveis e por isso mesmo belas. Que têm de ser vividas e não apenas fotografadas e difundidas.
Lançam-se num mundo e num tempo hostis e insociaveis - submetem-se a essa domesticação; ignorantes, afáveis e disciplinados. Longe de imaginar que, logo logo, tudo será nocturno e reiteradamente silencioso. As bandeiras penderão murchas, na noite e no silêncio. Logo logo haverá uma parte deles que anda mais devagar.
Sabem agora um pouco de tudo e muito de nada. Saberão mais à frente, sobretudo, que os homens não suportam muita realidade.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Banda sonora

A noite está tropical. Caminho em passo lento. Da rua oiço a voz de um violino. "Pas de deux", Tchaikovsky. A voz do violino sai de uma janela aberta. A janela aberta pertence a um prédio de estilo colonial. Mãos delicadas removem as cortinas e uns olhos brilhantes de um rosto esbatido de obscuridade sobrepõem-se à escuridão por escassos segundos. A música e o prédio de estilo colonial harmonizam-se como um todo perfeito, apenas interrompido por nova e repentina aparição dos olhos brilhantes - um ser imponderável, uma imagem somente imaginada. 
A fantasia nunca foi ordenada, concisa e exacta, mas tem sempre uma banda sonora. Ou poderá um homem apaixonar-se pela voz de um violino?

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Quarta fase de desconfinamento

Nem sabia muito bem porque aceitara o convite. Na verdade, admitiu, fora para mitigar a intensidade do desejo que sentia por ela. Toda a noite enquanto fazia conversa de circunstância, não parara de pensar em leva-la para a cama e fode-la com força e poucas palavras. O desejo, adormecido até aí, tomara-o de novo de assalto com rudeza. Enquanto ela falava, estivera sentado com um pau inquieto dentro das calças, a imaginar que lho punha na boca, que lhe beliscava os mamilos, que lhe mordia o lóbulo da orelha, que a encostava à parede, que lhe enfiava os dedos, que se servia daquela carne de todas as maneiras e feitios durante toda a noite, até se libertar daquela estranha atracção, e depois refugiar-se-ia novamente no confortável vazio que até então não tivera vontade alguma de quebrar.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Palomar


O Senhor Impontual perscruta o horizonte e pensa: se calhar, outrora, tudo se fazia de acordo com as estações, e as pessoas apresentavam-se duas vezes por dia para verem aparecer e desaparecer o astro-rei. Qualquer homem era todos os homens: uma vontade livre, um dever coordenado pelo seu entendimento do bem e do mal. Hoje, as coisas extinguem-se ou transformam-se rapidamente, apenas persiste a luzinha da lamparina, que derrama um pouco de quê?, um pouco de vida, talvez, ou um sinal oscilante e trémulo. Hoje entre presságios e riscos ouvem-se profetas benévolos, piedosos, demoníacos, coléricos e soberbos que afirmam ter sido o nosso destino selado na terra tal qual a vemos. O homem é o rei de todos os deuses. Os olhos e a voz são a sua força. Às vezes acontece ao Senhor Impontual rir como se estivesse só: um riso retraído.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Fadário

Estou sentado junto ao que resta da igreja matriz, de cujo interior, segundo consta, saíam em tempos cânticos hinários, entoados em idiomas bíblicos. Gaivotas circulam baixo e, por vezes, cautelosamente, poisam, em bandos estridentes. O tempo flui e nascem trevas que logo se dissipam. Ou foram apenas brumas procedentes das marés. Agora a largos intervalos tombam gotas nos telhados de zinco gasto, provocando tristes ressonâncias. Mas não chove. Ou, se chove, de onde cai a chuva? Do céu não é, esse está aberto numa claridade primitiva, os aromas são subtis mas profundos. O marulhar da água é ameno. Os raios de sol são paralelos ao atingirem o mar. Aliás tudo no Universo é paralelo. Contemplo o mar, como se o mar fosse uma estrada ou um ligeiro presságio mordido e rendilhado pelo bater das ondas.
Ocorre-me que é isto que nos impede de morrer: andarmos surpreendidos desde que começou o fadário. Tenho muita sorte com a minha profissão que, entre outras agruras, me permite construir destinos. Ou reconstruir, vá lá.

Mas... e o que é o destino?
 - Talvez seja isto mesmo: construir para permitir a destruição.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Disto de escrever nos blogs - esse instrumento de sopro.

Inspiramo-nos no escuro, de uma maneira ou de outra. E a fraqueza tem vários nomes: igualdade, generosidade, benevolência, justiça. Todavia, é ainda no escuro que determinamos que nas relações com os outros é preciso saber mandar, pelo menos uma vez por outra; saber exercer uma certa violência mansa, um discreto terror enleante na discordância e... alimentar um certo, e por vezes acentuado, poder de exclusão. Claro que para qualquer um de nós viver é: olhar, sentir, cheirar, caminhar de cabeça erguida e regista-lo com palavras rutilantes. Quando só exprimimos os sentimentos mais profundos - assobiando.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Do verbo açaimar

Um dia, e esse dia já esteve mais longe, pacientemente, aprenderemos a viver com o mau-estar, com a medonha presença da outra figura. Para aí chegar, revestiremos tudo de silêncio. Será dispendioso. Não estaremos, sem dúvida, em condições de reencontrar a quietude senão ao preço alto desse mutismo. Ignoraremos por que razão uma tal confiança se forjou e instalou tão rapidamente. Saberemos apenas que isso aconteceu. Insinuou-se e existe agora entre nós. Uma coisa sólida e simples. Com uma certeza porém, indiscutível, que no entanto, sem dúvida alguma, debaixo da máscara cirúrgica, jamais invocaremos: ambos somos estrépitos.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Impontual with an P



Vocês não sei, mas eu de repente estou a sentir-me repleto de possibilidades. 

terça-feira, 9 de junho de 2020

Asdrúbal

Colocou os óculos de parte, depôs as mãos sobre o colo, abandonando aí os braços com suavidade. Coisa alguma o prende àquele lugar, não retém qualquer saudade daqueles sítios que somente conservam o cenário já de si nublado do reencontro com Almerinda.
Não é novo nem é velho: chegou à idade indefinida em que um homem vai ficar até ao fim da vida com a cara que fez por merecer e com as recordações do que recusou e aceitou: espectros cada dia mais vivos e agressões cada vez mais insolentes. Todavia, aprendera há muito tempo que para esquecer é preciso recordar. E se poucas coisas deseja recordar talvez seja porque é um homem dividido nas suas lealdades. O importante, porém, não é esquecer ou recordar, mas deixar que surja, alternadamente, uma coisa e outra. Às vezes fala com os céus. Mas os céus também já não são os mesmos - as estrelas estão separadas por espaços infinitos.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Acervo de letras

De repente, um dia sentirás que a tinta passa por dentro do teu corpo antes de chegar ao papel e, quando tiveres essa sensação, já nada nem ninguém poderá instigar-te ao que quer que seja. Tudo dependerá, não direi da tua inspiração, mas da forma como suspiras. Até lá, deixa o subconsciente gritar. Sem reservas.

 (a partir de uma cisma do  meu Caro, e saudoso, Miguel Bondurant)

sábado, 6 de junho de 2020

Beatriz

Lá fora o ar flutua quente e em tons acinzentados. Do lado de dentro da noite, o inferno entranhado nas paredes e nos poros. Dorme nua. Espalhado sobre a almofada, o cabelo está intacto, cheio de um furor bestial, como se fosse uma crina. De repente uma visão turva. Sorriu melancolicamente, a seguir fez o gesto de quem espanta um mau pensamento, uma obscura e risível tentação. Há muito que a intimidade chegara a um ponto inatingível. 

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Lei da Insurreição

Eu até gostava de dizer algo sobre a situação na América, mas não sei se o faça. 
Não tarda acende-se de novo o fascínio do mundo pré-moderno, subdesenvolvido e desfavorecido por uma mesma América que dele se tem continuamente afastado e continuará a afastar-se, apesar das suas próprias misérias e sofrimentos, mas que permanecerá sempre pronta a mostrar que está ali para ajudar os oprimidos de toda a parte, como se pagasse, assim, todos os seus pecados e privilégios. 
Mas que aquilo é uma vergonha, lá isso é.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

domingo, 31 de maio de 2020

Palomar

A tarde vai cinza, quente e preguiçosa. Pela janela escancarada o Senhor Impontual vê telhados e telhados e, para lá deles, mesmo no limite, um manto de água chamado Atlântico. Pensa nas pessoas que passaram pela sua vida, mais um monólogo em voz alta do que outra coisa. Pensa nas pessoas e procura uma definição moral para cada uma delas. Sabe, o Senhor Impontual, que mesmo persistindo em nós próprios, mesmo dando um sentido individual à nossa vida, tornamo-nos pessoalmente responsáveis por muitos outros seres humanos que connosco se cruzam. E é isso: devemos persistir em dar um enredo individual, uma trama singular à nossa vida. Assim, delega-se nas ilusões a parte mais rica da nossa existência conferindo-lhe uma qualidade febril, inquietante, e uma considerável força de interrogação nos que tentam descortinar, no crepúsculo tardio, para lá do horizonte visual, a marca invisível que todo o homem traz em si, como um estigma que pertence ao destino. E que os destinos extraordinários são, por vezes, inseparáveis da ausência de destino.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Maio maduro Maio

Ergueu-se da cadeira de baloiço que já pertencera à sua avó, tirou água da torneira para o reservatório da máquina de café e fez-lhe um expresso espesso e aromático. Só ele bebeu; ela, não: tira-lhe o sono. Sentem conforto em terem-se um ao outro. Mas nada recordam em voz alta. Tudo o que foram é uma sombra. E esse conforto interiormente experimentado fá-los pressentir que, se algo for dito, tudo será considerado incómodo, e logo os vivos sentimentos de sossego e de paz se alterariam. Eles próprios vagamente percebem que são escombros de uma época naufragada, sem pertencerem, embora, a uma raça particular de pessoas. Nada de sumptuoso ou de magnifico há a recordar. Tudo o que se lhes refere é mediano, dissimulado e convencional. Apenas se tinham ajudado a construir uma teia de estradas que, a seu tempo foram elas também alteradas, substituidas por outras ou submersas pela força insubmissa de inesperados cataclismos. Durante os longos periodos de silêncio foram-se dando conta de que as pessoas, mesmo quando vivem em comum, estão muito mais separadas do que relacionadas entre si.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Sobre isso de adormecer com música

Pois comigo é ao contrário. Acordar com música sempre foi para mim uma verdadeira aflição. A música tem vida, tem histórias, tem peripécias em todos os seus recantos e gosta de se me imiscuir nas entranhas, de me revolver o tempo passado e presente, de me precipitar o futuro, de me infectar as veias, de me afectar, de me deixar ali morto por fora mas muito vivo por dentro. Então há momentos, como naquela estrofe "When it's summer in Siam and the moon is full of rainbows", que são como um fragmento de história que acontece ali naquele segundo, precisamente naquele instante e que por vezes não identifico qual é, porque ali, naquela fracção mínima de tempo, cabem dias e noites, meses e anos, conversas imaginadas, corpos tombados, desejos incontornáveis. E depois fica tarde, muito tarde... e já não há margem para mais atrasos. Que magnifico dia está hoje!

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Ferreira de Castro

Abordou-me com fingido desprendimento e muito para além da distância de segurança. Quis falar-me da sua nova companheira, evocou tempos não muito idos, encontros passageiros, que haviam rido muito com as tolices, as maliciosas alusões, as ternas lembranças. Falou com convicção, detendo-se nos pormenores, na explicação dos diálogos, sublinhando as frases com gestos e entoações. Andou de um lado para o outro, como um sonâmbulo subitamente acordado que manifesta grande surpresa e, ao mesmo tempo, uma espécie de excitante encantamento. A mulher que procurava retratar-me não era desejadamente saída de um qualquer milagre ou de qualquer fábula. Alta e morena, branca e submissa, ou loira e de cabeça erguida, fosse como fosse que a contava, a imaginava, a inventava, disse-a sempre cândida e doce, clara e segura, como se anunciasse a substância da própria felicidade. 
Há muito tempo que não via Ferreira de Castro. Ferreira de Castro não tem afinidade nenhuma com o cão, nem jeito para o passear, mas é uma tarefa sua. Foi um prazer.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Maria Eduarda

Surgiu e de repente tudo ficou silencioso e estático. Esboçou uma furtiva caricia, prendeu-lhe o rosto entre as mãos, afagou-lhe os cabelos, beijou-lhe os olhos e a boca ao de leve, abriu as pernas e num instante vertiginoso fê-lo encaixar-se na superfície levemente abobadada do seu ventre... e ali descansar. Depois ergueu-se, compôs o vestido, restituiu às faces a distante arrogância, sua defesa invisivel, caminhou com dignidade para a porta, embrenhou-se nas sombras da noite. "Sê feliz por ti mesmo", disse-lhe sentenciosamente.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Trovoada

Vem do lado do mar um sopro morno de vento e o eco da distante trovoada seca. Quando o vento é morno e as trovoadas são secas, correm pelos telhados e descem pelas ruas odores estonteantes que perturbam as pessoas e as fazem andar mais apressadas, silenciosas e sós. Os rostos tornam-se fechados e indiferentes. As portas e as janelas são cerradas como se a atmosfera estivesse carregada de inumeras ameaças e apenas no interior das casas as pessoas, sem coragem nem paciência, conseguissem preservar-se e defender-se desses perigos indistintos.
Ou então, apetece-lhes falar com os seus espíritos; ouvi-los. E, até o estrondo se extinguir, pouco a pouco, sobe-lhes à memória mil pequenas coisas que lhes sucederam e às quais atrubuem alguma importância derivada. Devem ser coisas emudecidas pelo tempo: factos, rostos, gritos, gestos, vozes sem nome, que talvez nestas alturas lhes impõem os seus mistériosos impulsos. Ou talvez esse momento possa ser uma forma de  solidariedade e de equilibrio para com os seus fantasmas. Sei lá. 

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Capitão-de-mar-e-guerra

A negridão no fim do horizonte é ameaçadora, mas recomponho-me fitando o mar com o extremado carinho de quem encontrou a coisa amada. Abdico (provisóriamente?) de gestos e palavras trazidos comigo de outras paragens. Detenho-me agora a adivinhar o poder misterioso das correntes, as rugosidades da água, a sua flora talvez secular, o desenho delicado e firme das ondas, o pulsar secreto da sua vida submersa. Invento até episódios e façanhas em que sou protagonista - um autêntico lobo do mar. Como se a acumulação de vivências tivesse quebrado o selo da ausência. Sorrio com sóbria gravidade, olhos cravados no interior da imensidão do nada: a correria dos pensamentos, das imagens, das recordações. A maresia a circular nas veias.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Simbiose


@Alexander Grinberg

“Estava iluminada por dentro, 
e a noite ia e vinha sobre os arcos e os tanques e as frestas."

_Herberto Helder

segunda-feira, 4 de maio de 2020

A obra

Nada é feito à imagem e semelhança do criador. E bem desejariam os homens que a obra fosse rigorosamente como eles. Assim o têm tentado, com obstinada aplicação: criações que levem a sua dedada particular, o seu apetite de harmonia e beleza, os seus pulsares e respirações. Mas as obras são produtos que os homens fazem para se sacrificar, mais tarde ou instantaneamente, às suas exigências mais cruéis. Assim como nenhuma casa é o homem que a construiu, assim como nada que o homem cria ou edifica lhe pertence como fiel imagem devolvida. Nem as mães - o mais superlativo dos criadores - o conseguem com os seus filhos.
Talvez haja quem pense: o homem nasceu infeliz por nada conseguir criar que seja seu. 

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Palomar

O Senhor Impontual, homem grisalho, observador treinado de oficio, de sobejo experimentado na avaliação de outras figuras, pensa à distância regulamentar: a postura, o modo de estar sentada, o rosto oblongo, os olhos biselados, os beiços húmidos de luxuria, os pés inquietos com calcanhares sobressaídos, as mãos vividas, dedos longos e arredondados nas pontas, as unhas pintadas a sangue-de-boi, o pescoço arrogante, a expressão estulta, o trejeito desdenhoso a vogar para distâncias infinitas, a deslizar por estradas já desaparecidas, mas fiel na lembrança; certamente uma evocação fabulosa e gigantesca, uma cadência longínqua. Já fora outra pessoa e, ao pensar nisso, a imagem devolvida agrada-lhe imensamente. Certas mágoas, por antigas, perderam a força de a atingir. A vida, apesar de tudo o que contém de inamistoso, nunca é importuna e ninguém vive o suficiente. Há um vago e insidioso erotismo no olhar. Um indefinível apelo a um prazer derradeiro, consentido.
 O Senhor Impontual, homem moderado e incapaz de uma desobediência, coagita com os seus botões que talvez pudesse ter sido um mau rapaz. Mas não.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Medo-20

No meio de toda esta convulsão sanitária e de todo um já mais que notório descalabro económico e social, não tardará a aparecer pelas mão de biólogos, químicos, físicos, médicos e cientistas a invenção de um medicamento capaz de disparar um míssil sobre o vírus. A verdade é que tanto se pode sofrer de não encontrar como de perder. Há pessoas que jamais conseguirão reencontrar o conforto, o amor, a beleza, o prazer, a fé, um ideal. Reencontrar o tempo em que viviam serenas. Apaziguar os corpos e tornar as almas mais leves. O medo, que começou por ser uma vantagem competiva, apresentar-se-à agora como a doença universal que corroi os viventes. Mas não antes da passagem pelo outro polo: a euforia do cão que esteve preso.

sábado, 25 de abril de 2020

Capitães d'Abril, Maio, Junho e de todos os outros meses

Que haja o céu descoberto, por vezes o odor salgado dos ventos marinhos, a claridade estonteante dos intermináveis dias de Primavera, a riqueza sombria da solidão consentida, a corajosa sensação da suficiência, o gozo da confusa liberdade, o raro prazer de conduzir os destinos - tudo o que, sem humilhação nem afronta, permita vencer os confrontos do dia-a-dia sem a impaciência aviltante de aguardar o incerto mês seguinte. 

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Guimarães Rosa


Eu estou só. O cão de pelo pardo está só. O mar está só. O sol está só. Mas não o só da solidão: o só da concomitância. Ou da solistência, como diria o escriba.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Diário da quarentena

Aprendi que todo o homem transporta na sua alma uma rua, um bairro, uma cidade, um mar, um rio, um jardim, uma árvore, uma montanha ou um planalto, uma mulher, um amigo, uma criança, uma procissão de infinitos desencontros. São as suas pátrias portáteis e intimas, os seus modestos e pequenos mundos azuis, no interior do outro grande Mundo azul onde se desenrola o drama da espécie vivente.
Aprendi, ainda, em frente a um espelho, que o mesmo aparelho que apara a barba também corta o cabelo. Descobri que aos dez cabelos brancos que já vinham do tempo da gripe espanhola se juntaram mais dez. São agora vinte. Sou hoje um homem grisalho.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Trecento

Estamos no meio de Abril. A natureza retoma o seu fôlego e sussurra. A cidade, o campo, o sol, o mar, a ondulação, as árvores, tudo ramalha e excita a pele dos vivos para que eles se deixem invadir pela aventura do tempo. O tempo vindouro, uma aposta, aquela que desculpará o tempo passado, o tempo parado, o tempo perdido ou o transformará. O ar recheado de partículas que penetram no nariz, nos ouvidos, os odores do rio e dos jardins, a natureza a exportar os seus indícios. E nós aqui, com os linhos guardados em cómodas bafientas, à espera de sabermos se o Mundo nos aceita de novo.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Amor em tempo de pandemia

Entre a palidez e o rubor dos seus rostos perpassa uma tímida procura e um atenuado desejo. Mas logo se beijam mais e com fúria. Ele mexe-lhe nos seios, acaricia-lhe as coxas macias. Deitam-se ao lado dos juncos na margem do rio. Dolente, vagarosa, ela tira as ligas, as meias, as cuecas; mostra-lhe o sexo, ele afaga-o, as pontas dos dedos tocam-no de mansinho, docemente percorre os pêlos espessos negros e abundantes que o confinamento criou: é atraído por uma inquietação nova e muito viva, beija-o, trémulo e feliz; ela suspira, um bulir suave, estremece, solta um grito rouco quando o pénis dele a penetra, sente-se rasgada por dentro, envolve-lhe os rins com as pernas, os movimentos de ambos aceleram-se, as respirações tornam-se opressas, gemem e gritam unânimes, cálidos e majestosos: a móvel felicidade. 
Depois, uma espessa bruma subiu do rio e inundou os ecrãs. Riram-se, cada um do seu lado.

domingo, 12 de abril de 2020

Vantagem competitiva

O que está a ser admirável nisto do confinamento é a capacidade de as pessoas se persuadirem, serem honestas consigo mesmas. E quando isso acontece, elas obtém uma vantagem - o medo. Uma vantagem táctica incomparável em qualquer insurreição. As mentiras que contamos as nós mesmos é que nos tornam inconscientes. As pequenas coisas é que nos assustam. As grandes coisas tornam-nos mais fortes. A ver vamos.
Parece que foram, para aí, detidos uma centena e tal de mentirosos.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Linha da frente

Alberto é um homem alto, seco, solene e nobre. Andará um pouco acima dos oitenta anos de idade. A arca do peito é convexa e ainda imponente. Está deitado na maca como uma estátua caída, marcado por uma remotissima serenidade. Um ser maiúsculo, se assim se pode dizer. Mas os olhos... os seus olhos revertem para outras paragens, os pensamentos mergulham no caudal do tempo e o tempo também tem compartimentos, e ele sabe que à medida que o tempo passou, as trevas foram-se acumulando em seu redor.
Diz para quem o acompanha no corredor do infortúnio:
-- Chegamos à linha da frente. Um de nós vai morrer. Mas não os dois. Também eu fiz sempre o que era necessário, nem sempre o que estava certo.

terça-feira, 7 de abril de 2020

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Saida precária

O vírus caiu sobre a cidade. Pousou os seus tentáculos e impõs o ditame da rareza. Como se porventura se tramasse uma indelicadeza no mundo, os citadinos caminham mais rígidos, ombros direitos, passo rectilíneos, carregam agora o peso de uma fatalidade impensável. As guitarras eléctricas calaram-se e deram lugar a Mozart e é agora a sua perfeição silenciosa e tensa que povoa as ruas. O vírus é uma névoa que emite um som abaixo do macadame. As horas invadiram a atmosfera para aí se desfiarem mais lentamente, espessam-se e pousam as suas volutas de segundos sobre as pedras frias da calçada. Gargantas secas. Gestos comedidos. Respirações contidas. Vive-se em poupança. Crânios abrasados, mãos suadas cobertas, amolentados os desejos, os pensamentos revestem-se de desinfectante e de sabonária rosa, cada qual segue como um ladrão à procura de uma nesga de terreno onde se refugiar na espera de uma nesga dois metros mais adiante. Há uma chapa absoluta que tampona o território, o vírus abre valas no asfalto. Quem não for rápido e expedito será estraçalhado.
Em casa, na televisão, o cenário é o mesmo. Mas deixem-se estar, que pelo menos tendes onde vos sentardes a uma distância de relativa segurança.

domingo, 5 de abril de 2020

Domingo de Ramos

Quando Jesus voltou a Jerusalém montado num burro, o que francamente não foi um acto de grande astúcia da sua parte.

terça-feira, 31 de março de 2020

Adenda à homilia do Papa Francisco desta tarde

O tempo é de pandemia. Brevemente estaremos em plena crise económica e social. Como sempre, estamos todos no mesmo barco. 
Uns de colete salva-vidas outros não.

domingo, 29 de março de 2020

Itália

Itália - digo eu. Mas não o digo, dez dias depois, como se convocasse uma provisão de sentidos ou fizesse emergir uma submersa reserva de memórias e frustrações. Digo: Itália em voz suave, como se ao eco da palavra em si apenas solicitasse a recíproca tolerância. 
Estou ocioso e só: unos sentimentos de segurança e de agasalho aquecem-me a alma. Sou agora um homem de céu sereno e vida mansa. Já não procuro distinguir o justo do injusto: acato as coisas sem reservas, tal como são; admito-as resignado e calmo; calo a ira e a frustração com disciplina. Sentado na varanda do alpendre virado para para o mundo, com Fiodor dormitando a meus pés, tomo um copo de Serra Mãe reserva 2015 e contemplo o virar dos dias no morrer das tardes, e sei que ninguém vê duas vezes o mesmo rio. Agora há uma parte de mim mesmo que anda mais devagar e por isso prefiro ficar só: não quero atrasar os outros, que já pouco andam.
Ciao. Avanti, amici. Torno subito.

(aquilo de um post por dia até ao fim do Corona ainda está a rolar?)

sexta-feira, 27 de março de 2020

Palomar

Há gente que sabe escrever, desenhar, aplicar tinta e que consegue fazer dela o que quer. Tem olhos para captar e pintar as coisas simples e belas da vida: a luz matinal, a superfície de um espelho, o som de uma música erudita, a casca de uma maçã, a pele arrepiada, os olhos cintilantes, os ombros brancos e esculturais, peitos proeminentes. O Senhor Impontual, observador inveterado, espírito em ebulição permanente, gostava muito de ser dotado dessas habilidades. O Senhor Impontual gostava muito de pincelar, já, um retrato do Mundo daqui por três meses. Pintar Junho. Nem que fosse em tons pastel.

terça-feira, 24 de março de 2020

Desterro

Não há nada que falte no paraíso: comida, roupa limpa, jornais, colchões , guarda-chuvas, computadores, ecrãs de parede, ecrãs de bolso, sapatos, gravatas, vinhos, bijutarias, flores, óculos de sol, discos, candeeiros, velas, cães, pássaros canoros e peixes coloridos. 
E tintas, rolos, lixas e outros polidores, moveis desirmanados, antigos, antigos - verdadeiras telas em branco. E livros. E a Lady Day na grafonola interpretando majestosamente "solitude". E todas as outras figuras e línguas e alturas e pesos que povoam a manhã inverosímil em que o ( sobre)vivente celebra o terceiro dia de cárcere - essa vida nova, esse mundo novo. Esse tempo morto.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Passe-Partout

Há alturas em que a ausência é tão pesada como uma criança sentada sobre o meu peito. Noutras alturas, mal consigo recordar os traços exactos da fisionomia de quem me falta e tenho de ir buscar fotos que guardo em envelopes velhos dentro dos gavetões das cómodas. Os piores dias são aqueles em que, sem os procurar, os encontro nos sítios mais improváveis.
O tempo não cura nada, só fabrica cicatrizes... com uma habilidade sublime.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Marinheiros de água doce


Águas sombrias, rotas que se bifurcam, imagens contraditórias, o porvir, o tempo parado como se aguardássemos algo alheio que tudo mude, o vento soprando com mais força por cima da cabeça e a vela recolhida no mastro, confiados na corrente. Esperar, esperar, esperar com a esperança de que não venha uma enxurrada que nos abalroe ou que, se chegar, nos permita avançar pelas margens, protegidos dos remoinhos e dos perigosos rápidos, sem que os troncos e os destroços que arrasta nos levem na frente. Esperar, esperar, como se não existisse outra palavra, como se não houvesse outro tempo, como se não houvesse horizonte. Como mestres da impotência.

#giorno1