sábado, 15 de outubro de 2022

Café Central

É engraçado, a partir da esplanada, observar os homens do café. À primeira vista, parece que a liberdade é passar o dia no café. Olhando com mais atenção, os homens do café parecem presos, amarrados às cadeiras onde se sentam e às mesas diante das quais bebem ou comem ou falam. Apesar de ser ainda relativamente cedo, é evidente que não falta quem beba aguardente a esta hora. Os que o fazem tão cedo bebem-na em chávenas de café, de forma que tudo se faz de acordo com as mais severas exigências da moralidade pública. Contudo, a maioria dos clientes bebe café em chávenas pequenas que fumegam ao longe, no nevoeiro, como chaminés de barcos de brincar.

As horas passam depressa nos cafés. Porém, a fisionomia deste estabelecimento não muda com a passagem das horas. Também não muda o barulho, que é sempre a mesma sucessão de sons sincronizados no volume da estridência popular. Não fosse porque, indubitavelmente, alguns homens se levantam e vão embora, podia dizer-se que a humanidade incrustada no café é apenas uma, porque é sempre a mesma.

No café os homens olham para a televisão, olham para os tanques, olham para o carros de assalto, olham para a guerra. Não há duvida que aquele aparelho de opressão lhes diz muito. Voltam a olhar para a televisão, escrevem algumas palavras no telemóvel, levantam-se e vão telefonar, regressam aos seus lugares. Continuam a beber café, numa tentativa de darem aos seus nervos o estimulo que não obtêm pelo simples facto de parecerem homens livres.

As mulheres, parece que não foram admitidas neste antro de ócio. A falta de qualquer manifestação de ternura feminina dá ao café um carácter acertadamente misógino. Para além disso torna o estabelecimento ainda mais sombrio. As mulheres passam na rua sem olharem para o café. De imediato um horizonte de pescoços ávidos, quais pescoços de bonecos ventríloquos, estica-se em direcção à rua e começa a farejar no ar a essência efémera do perfume que passa, abrindo espaço, entre o peito e as costas, para o próximo café.

Da esplanada, os homens do café parecem muito tristes. Vivem de pequenos excessos de preguiça e de ilusão. Murmuram e falam de coisas que não sabem, como a guerra e a politica. Subjugam e dominam as mulheres que não têm. Quando não estão a caluniar, gritam e queixam-se dos impostos. Embalsamados no cheiro do café, estas múmias da liberdade dão uma ideia muito pobre da liberdade. De vez em quando levantam-se e compram uma raspadinha. Oferecem aos seus olhos semicerrados uma visão da esperança numerada. Num instante raspam a cautela da sorte grande, a fatia de ilusão, como se estivessem a subscrever um seguro de vida contra o trabalho. 
Contemplo também essa caricatura cómica do génio grego: alguns homens do café lêem jornais e dão a essa leitura a importância dos grandes eventos culturais. Ao lerem o jornal, sentem-se cidadãos de Atenas. Sentem-se felizes por se sentirem atenienses lendo jornais no café.

Agora, enquanto tomo o café já frio, há que reconhecer que de vez em quando, um homem passa ao largo da porta do café. No entanto, esse homem excepcional tem ar de quem vem de outro café.

Na esplanada do Café Central uma chávena de café frio, num dia nublado, custa um euro e dez cêntimos. A cusquice paga-se caro.

4 comentários:

  1. Estimado amigo porque não bebeu primeiro o café e se dedicou à cusquice depois?
    Olhe que café frio faz mal.
    ;)

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    1. :))) é aquela coisa de um primeiro lugar o universo, depois o homem...

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    2. :) :) :)
      Olhe que não, olhe que não :) :) :)

      https://www.ihu.unisinos.br/600150-cristofascismo-a-uniao-entre-o-bolsonarismo-e-o-maquinario-politico-socio-religioso-entrevista-especial-com-fabio-py


      https://mafarricovermelho.blogspot.com/2010/06/eua-o-fascismo-cristao-esta-cada-vez.html?m=1

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  2. Para café central de terrinha (também gosto deles e às vezes atrevo-me não obstante esse ambiente masculino) está caro o preço.

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