terça-feira, 21 de março de 2023

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!

Tu és melhor -- muito melhor!
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

sábado, 11 de março de 2023

Observatório

Desde os campos de cultivo às prateleiras dos hipermercados, passando pelos carregadores, os camionistas, os descarregadores e os açambarcadores, o preço dos produtos agrícolas aumentaram cerca de sessenta por cento. Depois de pagarem os impostos, a hipoteca, a contribuição agraria, os manda-chuva, os dízimos e primícias, os camponeses que os cultivam, trabalhando de sol a sol, recebem apenas dezasseis por cento do valor total do produto. O suficiente para, juntamente com o usuário particular, morrerem de fome. Mas sob o império da lei e da graça dos Senhores.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Interpretando Courbet

@Jean-Baptiste Mondino

 

Entrar nesse edifício e passear por esse labirinto de corredores infinitos, desde a cave ao piso mais alto, é passear pela tragédia humana. Às vezes pela comédia divina. Gosto de ir aí. De me perder. De te encontrar.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Palomar

Um homem está parado no areal. O Senhor Impontual caminha, lesto, junto à água lado a lado com o sol poente. Uma mulher está ao cimo, de pé, olhando a praia. O mar está baixo, calmo, a estação indefinida, o tempo lento. A mulher está em cima de um estrado de madeira, ao longo da praia. Veste roupas largas e sombrias. Tem um rosto distinto. Os seus olhos são grandes. Não se mexe: olha o mar, a praia, as poças, as superfícies isoladas de água morta. Depois caminha, afasta-se e volta, torna a partir, a voltar, num caminhar longo, monótono. O Senhor Impontual que já estava a perder-se no horizonte dourado, trava, inverte a marcha, e retorna ao local de partida. O triângulo fecha-se com a mulher de olhos cerrados, sentada contra o muro que separa a praia do fim da cidade. O mar e o céu ocupam o espaço. Ao longe o mar está já oxidado pela luz obscura. E o céu também. O homem, que esteve imóvel durante todo este longo hiato de tempo, inicia a marcha de saída do areal. O triangulo oscila. Desfaz-se. São agora duas pessoas sob o intenso crepúsculo. O dia morre. 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

É curioso, mas é um fenómeno do nosso tempo

Apesar de mais educado e de melhor sociedade, o Senhor Impontual é, à sua maneira, mais provinciano e mais tímido do que aquilo que possa parecer. Sente-se à vontade no seu pequeno "grande mundo", isto é, com a aristocracia da terra, mas tímido e nervoso perante esse outro grande mundo que consiste nas hordas das colonizadas classes média e alta. Para dizer a verdade, o Senhor Impontual tem um pouco de receio da insanidade dessas classes que não pertencem à sua classe. O Senhor Impontual está consciente da sua impossibilidade de defesa, embora possua a defesa do privilégio de ser um provinciano. 
É curioso, mas é um fenómeno do nosso tempo.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Entrolhos

Ultrapassada que está a grande marca que Salazar deixou em Portugal - a mordaça - eis que surge a psique colectiva dos entrolhos. A mentalidade de, com os olhos tapados, criar celeuma, dar tiros no escuro, forçar o avanço da solução de reserva mesmo que esta seja inconsistente ou simplesmente não exista. É difícil fazer avançar um país com este intelecto. Com este vinculo K. Com esta estupidificação maligna.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Palomar

Desta mesma janela edénica onde o Senhor Impontual já tinha aprendido a pandemia, de onde já tinha aprendido as doenças da liberdade e da falta dela, de onde aceitou a honra do exílio. Observador atento, o Senhor Impontual, perscruta agora o céu, o horizonte vazio, a lenta cronologia das horas, os rabiscos gigantes das nuvens. Na sua cabeça, palco dilatado, pairam agora frases sarcásticas sobre guerras e politicas de massas que não devem ser pronunciadas com ligeireza. Em combate, sempre os mesmos. O cataclismo deu-se, estamos entre os escombros, desatamos a construir novos pequenos abrigos, a alimentar novas esperançazinhas. Estás vivo, diz de si para si mesmo, no presente vivo, e não no passado vivo. Parou de chover, a tarde serena acolhe o Senhor Impontual. Uma quietude hospitaleira, sem pensamentos nem perguntas, apenas a magnificência do dia cinzento. Ao fundo Zucchero interpreta majestosamente Miserere (Allegri). Uma espécie de banda sonora do tempo paradoO presente, ou seja, aqui e agora.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Outra de coisa nenhuma

Hoje, mais a frio e a destempo, eu que gosto de Lobo Antunes e de livros, facilmente percebo que há memórias mais extensas que outras e que o ritmo e a intensidade desta sequência dependem grandemente da taxa de hormonas, do humor das moléculas, da rapidez das sinapses, de um espírito obnubilado, de um ventrículo palpitante e, por vezes, de um membro sexual inquieto. Já Borges me tinha ensinado algo parecido. O que não deslustra Lobo Antunes.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Ainda hoje é Dia de Reis

E um ano inteiro já lá fora. Um ano todo a pensar que a felicidade consiste em abrir janelas ao amanhecer, em esperar, em supor que apenas com o abrir de portas e janelas algo acabará por entrar, algo eterno que haverá de os transformar e acabará por ser seu. Só seu. Um ano todo a ver passar as coisas, e as coisas ali imóveis, caladas, mudas, surdas, cálidas e enchendo-se das cores da tarde uma e outra vez, tristes e amarelas, até à brancura de um novo amanhecer sem saber realmente que não é suficiente abrir...abrir... abrir. E que tudo é tão fugidio, tão morredouro. Um ano inteiro... já lá fora.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Pelé

Discordo em absoluto desta imortalidade que se quer, à força, dar às coisas e às pessoas em todas as suas formas. O fim é requisito de qualquer existência. Da nossa existência, que é fugaz por definição e por necessidade. As coisas que realmente valem a pena terminam. A sua finitude é condição fundamental da sua importância e... da sua beleza.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Resoluções de Ano Novo

Esperar pelo sol, lidar com a factura, patinar no silêncio, chegar a tempo.
Ir a Beja comer uma sericaia.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Questiúncula

Gente empenhada no bem comum, portadores da indignação partilhada, que estais ali entre os brandos agitadores de rua e a pequena burguesia estabelecida, sofredores em silêncio, amortecedores da nação, donos dos votos oscilantes... estais preparados?

sábado, 24 de dezembro de 2022

Outra vez Natal

Um decantador, um copo de balão e um terraço voltado para o mundo onde, ainda antes da azafama natalícia, passar algum tempo sentado a ouvir o cair do dia, a agitação da chegada das aves nocturnas contra um céu cinzento, cada vez mais escuro. Uma certa solidão imposta e alguma paz é o que se precisa para reflectir. Impressões dispersas, pedaços de conversa, observações e opiniões meio formadas atravessam-me a mente, e uma sensação de tranquilo bem-estar instala-se, devolve-me a mim próprio e fico com maior consciência do prazer da própria companhia. Reclino-me na cadeira de palhinha que faz baloiço, beberico calmamente o vinho, e percebo que sou um terrível juiz de carácter que, com efeito, se vai enganando um pouco em quase tudo. Mas que, sozinho, debaixo deste cenário romanesco, esforçando-me por aceitar esta nova visão de mim mesmo que me permite entre outras liberdades nunca imaginadas, a de admitir que ainda há uma série de beijos e abraços por dar. E que isso, de entre todos os rigores das reflexões profundas, ainda é o que me sossega.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Obelisco de Buenos Aires

Vejo os seus olhos, uns olhos felizes a fixarem-se no firmamento, uns olhos dispostos a fugirem para outro universo. As pernas pendem do seu tronco ajaponesado, enfiadas numas botas de futebol enrugadas, umas botas de joelhos inflamados e tendões torcidos. Aquele homem já nem se contenta com ser anão. Também é gigante e disforme. Parece um personagem de Goya pintada por Picasso.
Empunha o troféu. Neste momento, eu não teria conseguido compreende-lo, se não o tivesse visto com uma bola colada no pé. A mim esse homem de taça ao alto não me aterroriza. O que me aterroriza é a parca possibilidade de um dia outro homem colar a bola no pé e, por conseguinte, parecer-se com ele.

sábado, 17 de dezembro de 2022

1997

Ouvi um ligeiro grito, em seguida o meu nome pronunciado a meia voz, depois, mais nada...e senti os lábios queridos colarem-se aos meus. Tive a impressão de que a alma me fugia! 
E fugiu. Para longe.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Cristiano Ronaldo

Nos momentos de depressão, a pátria é o lugar onde somos livres de falar mal dos outros. Contudo, de vez em quando também chegam rajadas de solidariedade. Quando isso acontece, compreende-se a dor do desterro, porque fica-se a compreender o que é a pátria. A pátria é não estar sozinho. Na ascensão e na queda.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Santíssima Trindade

Três senhoras de idade avançada chegam à minha porta e tocam a campainha. Uma delas traz vários folhetos na mão. Outra traz um caderno e um lápis. Da terceira apenas pode ver-se à flor da pele a transcendência que emana da sua autoridade pessoal. As três parecem papagaios dissecados, pássaros sem vida mas ainda com cores. A recomendação silenciosa da minha consciência não era necessária, porque estas senhoras são o tipo de mulheres que só produz nos homens recções cavalheirescas.

__ Bom dia Cavalheiro - dizem as três em coro.

__ Bom dia -  retribuo.

__Somos de um movimento católico com mais de 50 anos. Focolares, conhece?

__ Peço desculpa mas não estou interessado. Nem sequer sou católico. Sou ateu.

__Ah, não se preocupe. Deus é democrata. Não reserva o poder para si, mas distribui-o por uma trindade ministerial benevolente. Pai, Filho, Espirito Santo que nos dá pão, liberdade e justiça. Não lute contra Deus. Deus é três pessoas diferentes. A luta é desigual.

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Reticências

Não conheço hipocrisia e estupidez maior que a dos que escrevem a palavra puta só com a inicial e três pontinhos. Esses moralistas imorais ficam com o pecado e sem o género. Esta é a época da decadência não só da língua, mas também do espirito. A época em que os escrivas resolveram cortar à palavra as últimas três letras. A época em que a filho-da-putice (em toda a sua abrangência) é nada mais nada menos do que um ónus que envergonha não apenas os escolhidos.