sábado, 29 de outubro de 2016

Já em 1881 Machado de Assis ensaiava sobre a polémica problemática do exercício da parentalidade e o consequente processo de subjectivação da criança.

«Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semi-demência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.»

Machado de Assis in Memórias póstumas de Brás Cubas

2 comentários:

  1. ao ler este post, imediatamente me lembrei de um excerto que estaria numa página de canto dobrado, num dos livros da minha vida (que tem dezenas de páginas de cantos dobrados).

    encontrado o dito, aqui fica:

    «porque os filhos, tu é que nunca tiveste audácia para o saberes, os filhos, Mónica, são uma invenção da nossa fraqueza para compensar a morte, o modo mais barato de ser eterno. Um modo proletário de se ser Deus.»

    em nome da terra, VF

    um abraço.

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    1. Sem dúvida que às vezes os filhos, especialmente com a chegada da velhice dos pais, traduzem o esvaziamento de uma vida.
      E, como é óbvio, nem toda a gente tem a capacidade de, à medida que com a velhice o seu corpo se degenera a caminho do fim, fazer nascer um corpo (espiritual) que se escreve e se inscreve a partir das recordações do passado. A ficção que apontas do livro de Vergilio é muito real e presente. A realidade é, porém, bem pior.

      Gostei de exercitar esta perspectiva.

      Um abraço (apertado)

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