sábado, 13 de agosto de 2022
Nubentes
quarta-feira, 3 de agosto de 2022
Cinderela
Vejo que não conheces o teu poder. Consomes-te em amor e dádiva e desconheces os milagres que daí resultam. Senti isso a noite passada ao ver-te representar a Cinderela, que eras tu, qualquer que fosse o papel que estavas a representar, que tocaste nesse ponto em que a arte e a vida se fundem e em que apenas se existe. Senti a tua fome e os teus sonhos, os teus desejos ao mesmo tempo que despertavas os meus. Senti que não estavas a representar mas a sonhar; senti que eu - o espectador - podia sair do teatro e, sem transição, passar por artes magicas para outro baile, para outra tempestade, para outro amor, para outro sonho. Diante dos meus olhos eras consumida pelo desejo e pelo sonho da entrega. A chama dos teus olhos, dos teus gestos, eram uma fogueira de fé e dissolução. Tu tens o poder. Representar, em ti, é uma revelação. Aquilo que tantas vezes a alma não consegue exprimir pelo meio do corpo porque o corpo não é suficientemente subtil, tu consegues exprimi-lo. Geralmente o corpo atraiçoa a alma. Tu tens o poder do contágio, de transmitir a emoção por meio dos infinitos cambiantes dos teus movimentos, das variações dos traços da tua boca, das palpitações macias das tuas pestanas. E a tua voz, a tua voz ligada à respiração, a ausência do sopro da sensação, de tal modo que me arrebataste a respiração e me levaste para o reino inspirado do silêncio. Que imenso poder tu tens!
Deviam levar-te imediatamente para fora do palco, para que não sentisses a mudança de nível do palco para a rua, e da rua para casa, e dali para outra festa, para outro amor, para outra cama, para outra tempestade, para outro par de sapatos dourados.
quinta-feira, 28 de julho de 2022
sábado, 16 de julho de 2022
Benevides d'Almeida
sexta-feira, 15 de julho de 2022
Palomar
quarta-feira, 13 de julho de 2022
Insónias em carvão
terça-feira, 5 de julho de 2022
Hendrick´s Neptunia
A cada inspiração, os seus mamilos pressionavam o fino tecido de algodão da camisa de dormir. Os seu lábios sorridentes brilhavam sobre o feixe de luz do candeeiro na mesa de cabeceira. Não havia dúvida. O meu coração ribombava como se estivesse preso numa armadilha. A minha coragem, porém, não conseguiu ir além do gesto de passar os dedos pelos meus próprio lábios. Secos. Foi então que ela abriu os olhos e o seu olhar caiu pesadamente na minha boca. O seu corpo, contrariamente ao meu, não parecia ocultar-se atrás dos pensamentos. Levantou-se e beijou-me os lábios. O gin tê-la-ia posto num estado onírico? Até aí ignorara que o horror e o deleite pudessem ser tão doces. Inclinou-se para trás e apagou a luz. Senti os braços dela puxarem-me para o seu peito e, depois, a respiração quente do seu suspiro queimou-me a testa. Por um instante imaginei outra coisa: não havia fogo algum, a casa não estava a arder. Pensei em correr para a janela para deixar entrar o ar marinho e lavar os meus pulmões. Porém quedei-me indolente e solicito nos seus braços até que o momento passasse e o sono se apoderasse de mim.
Quando voltei à realidade, descobri que a noite nos envolveu ainda mais, pousara a coxa dela, nua, em volta da minha cintura e colocara a minha coxa entre as suas pernas. Quais ramos de uma árvore, cada galho encontrara o seu caminho naturalmente. Embora a minha vergonha fosse poderosa, manteve-se afastada de mim. Aproximei-me e ela acompanhou-me no movimento. Deve ter sido uma noite nublada porque a luz amarela vinda do lado do mar fazia ricochete no céu e entrava pelo quarto dentro. Vi-lhe os olhos pestanejar na fraca luz sépia.
terça-feira, 28 de junho de 2022
Arquitectura da fuga
Há um ínfimo momento naquela música do Jorge Palma, “Quem és tu de novo", em que o desejo assume um novo contorno, ganha uma nova forma, um novo odor, uma nova voz e uma vida própria. Há um trecho de história que acontecesse ali naquele instante, naquela fracção de segundo e que eu sei perfeitamente qual é porque apanho-o num voo planado, capto-o num movimento pendular e porque dele me fui escapando numa estúpida, por vezes absurda, diria mesmo irracional miscelânea de amarga e doce saudade.
quarta-feira, 22 de junho de 2022
Fly into the sun
A sua pele vibrou ao contacto do primeiro raio de sol, que foi deslizando pelo pescoço abaixo, que lhe contornou um mamilo e depois outro, disparando descargas de corrente eléctrica que a invadiram por completo. À lenta e dolorosa distensão do ventre, seguiu-se a sensação de humidade no côncavo acetinado do intervalo das coxas. Sentiu o calor que irradiava dele a espalhar-se dentro de si, e ficou agitada, baloiçou-se para a frente e para trás, precipitando-se desenfreada numa sucessão de ondas que se foram desfazendo. O bater de asas tornou-se mais rápido, num crescendo que passou a rugido, e ela foi completamente revirada por um forte impacto de calor. Um fluido leitoso e quente correu de dentro para fora e veio perder-se por entre as suas pernas.
terça-feira, 21 de junho de 2022
Godot
Eis que, dominado por uma sensação de invisibilidade, como se fosse o único espectador da sua aparição, da sua única aparição, sem que mais ninguém a identificasse no vazio do ali e do agora, me vi perante aquela figura simples, nívea, quase transparente, leve e despretensiosa que se aproximou vagarosamente, e de repente, num assalto de comiseração me surripiou a tristeza, sem a menor intenção de a restituir.
quarta-feira, 15 de junho de 2022
Roseta
segunda-feira, 13 de junho de 2022
Terra e Mar
Mas gradualmente, o seu cabelo alinhado, dourado e cheio de luz, tornou-se, de repente, demasiado familiar. O seu gosto tornou-se insipido, o seu corpo vazio e os olhos de Horácio desviaram-se para outra, tão sensual e com formas arredondadas que poderia ter sido esculpida na própria terra. Aquilo que ele queria, ela não lhe podia mais oferecer: uma carne que não cedesse, um abraço cheio de fricção e resistência. Horácio ansiava por mulheres da cor da terra, de pés descalços tão firmemente pousados no chão que o vento lhes percorria os cabelos como se corresse por entre as folhas. Mulheres que tivessem braços parecidos com ramos maciços, mulheres que criassem raízes num determinado lugar, à espera que ele chegasse para acariciar a casca delicada e achocolatada das suas pernas e as ramificações das suas coxas tão flexíveis. Uma vez e outra, foi à procura delas, ansiando pela terra.
quinta-feira, 9 de junho de 2022
Paula Rego
O que é admirável na extensíssima obra de Paula Rego é que a sua linguagem pictórica e figurativa não romantiza o ser humano. Por mais que o amor possa estar ali representado, é a denuncia das ilusões e da falsa moral, que sobressaem daquelas cenas mirabolantes de chocantes e dolorosas verdades.
Eu estou grato por esse banho de realidade.
quarta-feira, 8 de junho de 2022
O elo mais fraco
terça-feira, 7 de junho de 2022
Que estranha forma de impotência!
Os homens estão a matar a mulheres.
Já sinto vergonha... da vergonha.
Pintar Junho
Há largos meses que não aparecia. Entrou com a elegância de sempre. Sentou-se no canapé de palhinha com as costas direitas, entrelaçou os dedos das mãos e deixou-as cair sobre o regaço. Fez uma pausa. Ignorou-me com o olhar. Fixou-se absorta no vazio. Começo com um esboço do seu rosto. Na última vez que posou, favoreci-a na tela. Hoje serei implacável nos pormenores e registo cada ruga ou mudança de cor, ou sinal oblongo. Observo-lhe o busto. Um dilúvio de entusiasmo pela sua pele, aquela seiva provocante que anima os meus olhos, faz-me antever horas sublimes. Mas acabo por esquivar a minha própria rendição, prolongar o tempo em volta de um corpo nunca vazio, dar-lhe vontade de se mostrar nu, fazê-lo encontrar em si essa volúpia. Para que consiga deleitar-se com esse exercício é preciso que goste de si mesma, do seu corpo, mas também da personalidade que sofre dentro dele.
quarta-feira, 1 de junho de 2022
1972
Hoje, ao cabo de um momento, adivinhei tudo; um único minuto bastou para me revelar de repente, sem uma palavra de explicação, graças a um raio de luz irresistível, esta verdade fatal que milhares de factos, repetindo-se todos os dias à minha vista, durante longos anos, não haviam conseguido fazer-me suspeitar.
Ainda sou uma criança.
segunda-feira, 30 de maio de 2022
Banco Alimentar
sábado, 28 de maio de 2022
Linhares da Beira
A forma das casas baixas e sombrias pouco ou nada mudou de há cinco ou seis séculos a esta parte. Julguei sonhar quando vi através das magnificas janelas manuelinas, aqueles grupos de mulheres de olhar selvagem e linha escultural, que fiavam a sua rocada na sombra e conversavam entre si numa língua quase imperceptível. Parece que todos aqueles espectros pardacentos tinham acabado de quebrar a pedra do túmulo para executarem entre si uma cena de outra época, de que fui o único espectador vivo. A pouca vida das ruas da aldeia tem o mesmo caracter de estranheza e arcaísmo que parece fielmente copiado do modo de viver duma geração que já passou.
Não me importava nada de cá morar. Podia manter-me a papas de milho e pesto de urtigas.
quarta-feira, 25 de maio de 2022
Vista aérea
Lá em baixo, homens e mulheres, mensageiros dos deuses, nomeiam as estrelas e as figuras do céu, dizem aos outros homens e às outras mulheres, amamos-vos e ensinar-vos-emos a viver ensinando-vos como curar as maleitas, escutando e transcrevendo o que dizem os vossos gritos e as vossas falas. Ensinar-vos-emos a tornar-vos amigos do mundo para não serdes estrangeiros nele, a sonhá-lo, a sulcá-lo, a usá-lo. Lá em baixo, homens e mulheres derramam a palavra, como um pólen abandonado ao vento, para transmitirem as histórias apreendidas com o refluxo do mar e com o fluxo da névoa, as histórias e lendas do mundo e da vida. Cá de cima, não tarda, o que se verá é a noite a distribuir por cada um a sua solidão, o medo, o susto e a redobrar um sentimento que todos já conhecem - a inquietude da incerteza.
Sou tão telúrico!