terça-feira, 11 de outubro de 2022

Sob(re) a sotaina

Ler isto, isto e isto, faz-me pensar que uma das características universais da injustiça é que todos os homens a reconhecem, apesar de todos contribuírem incessantemente para ela.

Que escabrosidade!

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Altíssimo

Por ora dás por ti a assobiar para o lado. Mas quando fechas o bico, as palavras amontoam-se-te na boca como cachos de uvas, não podem sair porque, para lá do alto dessa tua janela está a vida em bruto, a vida que nunca viveste e que intuis maravilhosa, com pássaros e árvores que roçam as nuvens, com rios que se arrastam espumosos, com ruas de pedras inundadas de sol, com gente que se passeia ao vento, por isso fechas as pálpebras, por isso suspiras pelos inocentes que lá em baixo vivem as suas vidas, formosos e apertados, com a pele bruta mas luzidia, e ficas com os sentidos a trabalhar rente ao chão, selvagens e ferozes, e anseias por descer e acolhe-los na sotaina, toca-los com as tuas mãos impolutas.

sábado, 1 de outubro de 2022

Anexação

Não pude resistir àqueles olhos tristes, de olhar sereno, trespassando os meus. Sentir a sua voz de veludo acariciar-me por dentro e não saber o que dizer. Somente inspirar o suave perfume que exalava do seu corpo e inundava o ar ainda quente deste Outono tímido. Trouxe esse aroma gravado na memória e incrustado nas entranhas. Só receio não conseguir conservar o sabor daqueles lábios sedentos.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Óh Partigianos!

A civilização destes tempos, embora se refira constantemente a ideais de progresso, à razão e à liberdade, embora proclame que é iluminada pelo sublime objectivo de se libertar, sustentar e elevar-se ao seu expoente máximo, no fundo escraviza-se, engana-se, instiga-se e algema-se. Apesar do incrível desenvolvimento do pensamento, da evolução da ciência, do avanço da comunicação, da instrução e da melhoria das condições de vida, o homem parece não se sentir feliz nestas novas condições. Impede-o a alienação, o complexo de inferioridade, a frustração, a religião, o fanatismo e os banhos que toma de politica oca. Está embasbacado. É artificial. Profundamente inautêntico. Iludido, corre atrás do vento seja em Roma, em Kiev, em Moscovo, ou em qualquer outro lugar do universo. O Mundo está abafado. Precisa de uma purga. Rápido.

Oh partigianos!

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Eixo do mal

Esta época não é propícia ao entendimento dos mais rudimentares valores da humanidade nem à vital aceitação das soberanias e das liberdades individuais. É uma época que manifesta repetidas vezes que, em certas ocasiões, um homem que ataca outro homem é um tirano, e, em outras, é um cruzado - embora nenhuma guerra seja santa ou cavalheiresca.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Viúva

Sentada a observar o rio, os últimos raios do sol a tocarem no estuário e a estenderem-se docemente pelo grande canal de água até à foz; rabelos vogam, barbos pululam acima da linha de espuma deixada pela popa dos barcos, uma harmonia discreta e singela envolve a mulher solitária e grave. Talvez devesse tomar um destino novo e procurar - o quê? Enfraquecem-lhe os ímpetos e uma grande tristeza nasce-lhe no olhar quando, depois, se lhe sobrepõe a imagem dele, um homem que se matara a si mesmo continuando, no entanto, vivo. 

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Sessão da Meia-Noite


"Une femme est une femme"  - Jean-Luc Godard, 1961

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

O pássaro

Salto da cama e quando mal acabo de abrir os olhos e de levantar a persiana da janela, noto a azafama assídua e conhecida. Olho para a rua, que à força de tantas manhãs e de tantas vezes abrir a janela acabou por perder o seu brilho original.  Mas ali está o pássaro.
A letargia estupida do encerramento nocturno quebra-se momentaneamente com a perspectiva luminosa do milagre. O pássaro representa para mim a porta da poesia, a promessa da liberdade, o elogio do sonho, o escape, enfim, para tudo aquilo que o encerramento na noite me roubou.
Isto repete-se todas as manhãs. Acordo e, como se o acto de abandonar o sono, abrir as janelas, comunicasse com o pássaro por meio de uma antena invisível e o pássaro começa a voar automaticamente.
Durante algum tempo, não consegui parar de pensar que por trás de todo o homem há sempre um pássaro que salta e que voa. E de facto na zoologia social eu e o pássaro somos muito parecidos, temos um vinculo oculto, somos da raça dos que saem de manhã e voltam à noite.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Liberdade


Estamos aqui três perfeitos desconhecidos a olhar este final de tarde magnifico de fim de Agosto. Cada um de nós formou um conceito próprio de liberdade, feito à medida das suas inclinações ou das suas conveniências. Cada um bebe com lábios diferentes a tisana da liberdade. Para ela, a vagabunda que pinta quadros, a liberdade é um pincel em forma de telemóvel. Para ele, o aventureiro de mochila às costas que colecciona bilhetes postais, a liberdade reduz-se a um passaporte internacional. Para mim, que sou um deslumbrado, mas que, sobretudo, sou um fugitivo, a liberdade é outra coisa.
Para cada homem ou para cada mulher, a liberdade é algo diferente. Caminho, escolha, acaso, sonho. Fugindo das servidões do dia-a-dia, todo o homem procura a liberdade, persegue-a, alcança-a, compreende-a, usufrui dela à sua maneira. 
O drama começa quando há duas pessoas, porque duas pessoas não conseguem pôr-se de acordo para falar disso. A liberdade não é nada, porque a liberdade é tudo. A liberdade é um enigma ao alcance dos olhos.

sábado, 27 de agosto de 2022

Nódoas na consciência


No princípio, a saudade é apenas um som delirante: um som esquecido pelo nosso coração. Ao tocar no corpo e examinar a alma, encontramos apenas as protuberâncias remanescentes da distância. A distância despojou-nos de tudo, menos de uma convicção: ainda posso parecer-me com um homem livre. Depois, com o passar do tempo, a saudade toma a forma de uma brisa cuja caricia nos vai arrebatando. Até que um dia a saudade explode e deslumbra-nos, como se entre as nossas mãos acabasse de cair uma bola de sol. Os nossos olhos, angustiados de cobardia e escuridão, ficam por um instante cegos de saudade. Então, a saudade, ar e luz dos fugitivos começa a palpitar no nosso sangue. A saudade está connosco e por isso fugimos cada vez para mais perto. Não temos pernas para mais.

terça-feira, 23 de agosto de 2022

11:17



Onze horas e dezassete minutos da manhã. Trinta e quatro graus centígrados. Acordei no inferno. Primeiro tentei escapar ao fogo na cama, depois ao fogo no chão e depois ao fogo no ar. Até correr para a varanda não percebi: o fogo não sou só eu, o fogo não sou só eu. Hoje, mesmo fugindo de mim próprio, não sei se conseguirei escapar a esta fornalha intrincada. 

sábado, 13 de agosto de 2022

Nubentes

O corpo dela é um cálice, um cibório, um nicho de sombras. O seu vestido branco de seda selvagem dobrada com um acordeão em volta das ancas, o medo agarrado em cada prega do tecido, uma viagem de infinitos desvios. Do pescoço, um fio obliquo cai-lhe sobre o peito. Os lábios pintados de carmesim encobrem a boca seca. Debaixo do rímel negro das pestanas, os olhos em fuga.
Carrega todas as sensações correspondentes da infância: o desamparo atormentado, o abandono primitivo, a angustia de se encontrar à completa mercê dos outros.
A sensação de fragilidade é tão forte que se assustou com a aparição à sua direita de um corpo que caminhava a par com ela. Olhou de soslaio o seu perfil e sentiu-se confortada pela sua altura e pelo seu sorriso suave. Também estava vestido de branco, também caminhava para o  cadafalso.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Cinderela

Vejo que não conheces o teu poder. Consomes-te em amor e dádiva e desconheces os milagres que daí resultam. Senti isso a noite passada ao ver-te representar a Cinderela, que eras tu, qualquer que fosse o papel que estavas a representar, que tocaste nesse ponto em que a arte e a vida se fundem e em que apenas se existe. Senti a tua fome e os teus sonhos, os teus desejos ao mesmo tempo que despertavas os meus. Senti que não estavas a representar mas a sonhar; senti que eu - o espectador - podia sair do teatro e, sem transição, passar por artes magicas para outro baile, para outra tempestade, para outro amor, para outro sonho. Diante dos meus olhos eras consumida pelo desejo e pelo sonho da entrega. A chama dos teus olhos, dos teus gestos, eram uma fogueira de fé e dissolução. Tu tens o poder. Representar, em ti, é uma revelação. Aquilo que tantas vezes a alma não consegue exprimir pelo meio do corpo porque o corpo não é suficientemente subtil, tu consegues exprimi-lo. Geralmente o corpo atraiçoa a alma. Tu tens o poder do contágio, de transmitir a emoção por meio dos infinitos cambiantes dos teus movimentos, das variações dos traços da tua boca, das palpitações macias das tuas pestanas. E a tua voz, a tua voz ligada à respiração, a ausência do sopro da sensação, de tal modo que me arrebataste a respiração e me levaste para o reino inspirado do silêncio. Que imenso poder tu tens!

Imagino, lá nessa tua vida de representação, o choque ao perceberes que no final o público continua por transformar. A dor que essa quebra do sonho provocará em ti. 
Deviam levar-te imediatamente para fora do palco, para que não sentisses a mudança de nível do palco para a rua, e da rua para casa, e dali para outra festa, para outro amor, para outra cama, para outra tempestade, para outro par de sapatos dourados.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Sessão da Meia-Noite


"Faca na água" - Roman Polanski, 1962

sábado, 16 de julho de 2022

Benevides d'Almeida


Na esplanada, enquanto me enxovalha o saco do Expresso, Benevides d`Almeida vai-me dizendo que um homem na casa dos cinquenta anos só usa bermudas quando já abdicou de ter sex appeal. 
Fiodor rosnou debaixo da mesa.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Palomar


O Senhor Impontual, nas suas múltiplas peregrinações, foi aprendendo a reconhecer os ecos dos amores e dos desejos maiores. Aprendeu que os grandes amores, em especial se não tiverem perecido de morte natural, nunca morrem completamente e deixam reverberações. Uma vez interrompidos, quebrados artificialmente ou acidentalmente sufocados, eles continuam a existir em fragmentos distintos e infinitos ecos menores.
Uma vaga semelhança física, uma boca quase igual, uma voz levemente parecida, alguma partícula do carácter, de repente, imigra para outra pessoa que se reconhece imediatamente na multidão ou numa festa, pela ressonância erótica que isso desperta.
Os ecos impressionam primeiro através da misteriosa instrumentalização dos sentidos que retêm as sensações tal como os instrumentos retêm um som depois de tocados. O corpo permanece vulnerável a certas repetições muito tempo depois do espirito julgar que procedera a um rompimento claro e final.

Por estes dias de mar ao fundo, o espirito do Senhor Impontual teima em acolher a ideia de que o amor pode perfeitamente ser como as ondas: cada recuo é um novo ponto de partida.
O amor! Que invenção cansativa!

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Insónias em carvão


Sendo esta, por natureza, a época do ano em que há mais emoções e momentos para evocar, concentrados que estão na zona escarpada das recordações, ali onde o fole da memoria se enche com mais frequência e menos vazios há a registar, não era preciso uma brasa destas. Só complica.

terça-feira, 5 de julho de 2022

Hendrick´s Neptunia

A cada inspiração, os seus mamilos pressionavam o fino tecido de algodão da camisa de dormir. Os seu lábios sorridentes brilhavam sobre o feixe de luz do candeeiro na mesa de cabeceira. Não havia dúvida. O meu coração ribombava como se estivesse preso numa armadilha. A minha coragem, porém, não conseguiu ir além do gesto de passar os dedos pelos meus próprio lábios. Secos. Foi então que ela abriu os olhos e o seu olhar caiu pesadamente na minha boca. O seu corpo, contrariamente ao meu, não parecia ocultar-se atrás dos pensamentos. Levantou-se e beijou-me os lábios. O gin tê-la-ia posto num estado onírico? Até aí ignorara que o horror e o deleite pudessem ser tão doces. Inclinou-se para trás e apagou a luz. Senti os braços dela puxarem-me para o seu peito e, depois, a respiração quente do seu suspiro queimou-me a testa. Por um instante imaginei outra coisa: não havia fogo algum, a casa não estava a arder. Pensei em correr para a janela para deixar entrar o ar marinho e lavar os meus pulmões. Porém quedei-me indolente e solicito nos seus braços até que o momento passasse e o sono se apoderasse de mim.

Quando voltei à realidade, descobri que a noite nos envolveu ainda mais, pousara a coxa dela, nua, em volta da minha cintura e colocara a minha coxa entre as suas pernas. Quais ramos de uma árvore, cada galho encontrara o seu caminho naturalmente. Embora a minha vergonha fosse poderosa, manteve-se afastada de mim. Aproximei-me e ela acompanhou-me no movimento. Deve ter sido uma noite nublada porque a luz amarela vinda do lado do mar fazia ricochete no céu e entrava pelo quarto dentro. Vi-lhe os olhos pestanejar na fraca luz sépia.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Arquitectura da fuga

Há um ínfimo momento naquela música do Jorge Palma, “Quem és tu de novo", em que o desejo assume um novo contorno, ganha uma nova forma, um novo odor, uma nova voz e uma vida própria. Há um trecho de história que acontecesse ali naquele instante, naquela fracção de segundo e que eu sei perfeitamente qual é porque apanho-o num voo planado, capto-o num movimento pendular e porque dele me fui escapando numa estúpida, por vezes absurda, diria mesmo irracional miscelânea de amarga e doce saudade. 

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Fly into the sun

A sua pele vibrou ao contacto do primeiro raio de sol, que foi deslizando pelo pescoço abaixo, que lhe contornou um mamilo e depois outro, disparando descargas de corrente eléctrica que a invadiram por completo. À lenta e dolorosa distensão do ventre, seguiu-se a sensação de humidade no côncavo acetinado do intervalo das coxas. Sentiu o calor que irradiava dele a espalhar-se dentro de si, e ficou agitada, baloiçou-se para a frente e para trás, precipitando-se desenfreada numa sucessão de ondas que se foram desfazendo. O bater de asas tornou-se mais rápido, num crescendo que passou a rugido, e ela foi completamente revirada por um forte impacto de calor. Um fluido leitoso e quente correu de dentro para fora e veio perder-se por entre as suas pernas.

Mas achando-se que foi mais o "Walk on the wild side" ou mesmo o" Perfect day", aceita-se sem qualquer contestação.