sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Palomar

Desta mesma janela edénica onde o Senhor Impontual já tinha aprendido a pandemia, de onde já tinha aprendido as doenças da liberdade e da falta dela, de onde aceitou a honra do exílio. Observador atento, o Senhor Impontual, perscruta agora o céu, o horizonte vazio, a lenta cronologia das horas, os rabiscos gigantes das nuvens. Na sua cabeça, palco dilatado, pairam agora frases sarcásticas sobre guerras e politicas de massas que não devem ser pronunciadas com ligeireza. Em combate, sempre os mesmos. O cataclismo deu-se, estamos entre os escombros, desatamos a construir novos pequenos abrigos, a alimentar novas esperançazinhas. Estás vivo, diz de si para si mesmo, no presente vivo, e não no passado vivo. Parou de chover, a tarde serena acolhe o Senhor Impontual. Uma quietude hospitaleira, sem pensamentos nem perguntas, apenas a magnificência do dia cinzento. Ao fundo Zucchero interpreta majestosamente Miserere (Allegri). Uma espécie de banda sonora do tempo paradoO presente, ou seja, aqui e agora.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Outra de coisa nenhuma

Hoje, mais a frio e a destempo, eu que gosto de Lobo Antunes e de livros, facilmente percebo que há memórias mais extensas que outras e que o ritmo e a intensidade desta sequência dependem grandemente da taxa de hormonas, do humor das moléculas, da rapidez das sinapses, de um espírito obnubilado, de um ventrículo palpitante e, por vezes, de um membro sexual inquieto. Já Borges me tinha ensinado algo parecido. O que não deslustra Lobo Antunes.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Ainda hoje é Dia de Reis

E um ano inteiro já lá fora. Um ano todo a pensar que a felicidade consiste em abrir janelas ao amanhecer, em esperar, em supor que apenas com o abrir de portas e janelas algo acabará por entrar, algo eterno que haverá de os transformar e acabará por ser seu. Só seu. Um ano todo a ver passar as coisas, e as coisas ali imóveis, caladas, mudas, surdas, cálidas e enchendo-se das cores da tarde uma e outra vez, tristes e amarelas, até à brancura de um novo amanhecer sem saber realmente que não é suficiente abrir...abrir... abrir. E que tudo é tão fugidio, tão morredouro. Um ano inteiro... já lá fora.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Pelé

Discordo em absoluto desta imortalidade que se quer, à força, dar às coisas e às pessoas em todas as suas formas. O fim é requisito de qualquer existência. Da nossa existência, que é fugaz por definição e por necessidade. As coisas que realmente valem a pena terminam. A sua finitude é condição fundamental da sua importância e... da sua beleza.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Resoluções de Ano Novo

Esperar pelo sol, lidar com a factura, patinar no silêncio, chegar a tempo.
Ir a Beja comer uma sericaia.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Questiúncula

Gente empenhada no bem comum, portadores da indignação partilhada, que estais ali entre os brandos agitadores de rua e a pequena burguesia estabelecida, sofredores em silêncio, amortecedores da nação, donos dos votos oscilantes... estais preparados?

sábado, 24 de dezembro de 2022

Outra vez Natal

Um decantador, um copo de balão e um terraço voltado para o mundo onde, ainda antes da azafama natalícia, passar algum tempo sentado a ouvir o cair do dia, a agitação da chegada das aves nocturnas contra um céu cinzento, cada vez mais escuro. Uma certa solidão imposta e alguma paz é o que se precisa para reflectir. Impressões dispersas, pedaços de conversa, observações e opiniões meio formadas atravessam-me a mente, e uma sensação de tranquilo bem-estar instala-se, devolve-me a mim próprio e fico com maior consciência do prazer da própria companhia. Reclino-me na cadeira de palhinha que faz baloiço, beberico calmamente o vinho, e percebo que sou um terrível juiz de carácter que, com efeito, se vai enganando um pouco em quase tudo. Mas que, sozinho, debaixo deste cenário romanesco, esforçando-me por aceitar esta nova visão de mim mesmo que me permite entre outras liberdades nunca imaginadas, a de admitir que ainda há uma série de beijos e abraços por dar. E que isso, de entre todos os rigores das reflexões profundas, ainda é o que me sossega.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Obelisco de Buenos Aires

Vejo os seus olhos, uns olhos felizes a fixarem-se no firmamento, uns olhos dispostos a fugirem para outro universo. As pernas pendem do seu tronco ajaponesado, enfiadas numas botas de futebol enrugadas, umas botas de joelhos inflamados e tendões torcidos. Aquele homem já nem se contenta com ser anão. Também é gigante e disforme. Parece um personagem de Goya pintada por Picasso.
Empunha o troféu. Neste momento, eu não teria conseguido compreende-lo, se não o tivesse visto com uma bola colada no pé. A mim esse homem de taça ao alto não me aterroriza. O que me aterroriza é a parca possibilidade de um dia outro homem colar a bola no pé e, por conseguinte, parecer-se com ele.

sábado, 17 de dezembro de 2022

1997

Ouvi um ligeiro grito, em seguida o meu nome pronunciado a meia voz, depois, mais nada...e senti os lábios queridos colarem-se aos meus. Tive a impressão de que a alma me fugia! 
E fugiu. Para longe.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Cristiano Ronaldo

Nos momentos de depressão, a pátria é o lugar onde somos livres de falar mal dos outros. Contudo, de vez em quando também chegam rajadas de solidariedade. Quando isso acontece, compreende-se a dor do desterro, porque fica-se a compreender o que é a pátria. A pátria é não estar sozinho. Na ascensão e na queda.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Santíssima Trindade

Três senhoras de idade avançada chegam à minha porta e tocam a campainha. Uma delas traz vários folhetos na mão. Outra traz um caderno e um lápis. Da terceira apenas pode ver-se à flor da pele a transcendência que emana da sua autoridade pessoal. As três parecem papagaios dissecados, pássaros sem vida mas ainda com cores. A recomendação silenciosa da minha consciência não era necessária, porque estas senhoras são o tipo de mulheres que só produz nos homens recções cavalheirescas.

__ Bom dia Cavalheiro - dizem as três em coro.

__ Bom dia -  retribuo.

__Somos de um movimento católico com mais de 50 anos. Focolares, conhece?

__ Peço desculpa mas não estou interessado. Nem sequer sou católico. Sou ateu.

__Ah, não se preocupe. Deus é democrata. Não reserva o poder para si, mas distribui-o por uma trindade ministerial benevolente. Pai, Filho, Espirito Santo que nos dá pão, liberdade e justiça. Não lute contra Deus. Deus é três pessoas diferentes. A luta é desigual.

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Reticências

Não conheço hipocrisia e estupidez maior que a dos que escrevem a palavra puta só com a inicial e três pontinhos. Esses moralistas imorais ficam com o pecado e sem o género. Esta é a época da decadência não só da língua, mas também do espirito. A época em que os escrivas resolveram cortar à palavra as últimas três letras. A época em que a filho-da-putice (em toda a sua abrangência) é nada mais nada menos do que um ónus que envergonha não apenas os escolhidos.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Questiúncula

Marcar uma greve para uma sexta-feira e, ao invés de se manterem no local de trabalho em defesa da causa, irem para casa descansados gozar o fim de semana prolongado por conta da nobre iniciativa, que poder confere à classe?

Já ninguém acredita nos políticos, mas eles sabem bem o povo que têm.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Opinion Makers

Vim cá só para informar que estou muito feliz por não ter opinião fundamentada sobre o caso Cristiano Ronaldo ao qual não dediquei um minuto do meu tempo. E dizer ainda que devíamos todos experimentar mais vezes esta coisa tão aprazível que é não ter opinião sobre tudo e mais um par de chancas. Estou fã. Experimentem.

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Ablepsia

Ao olhar em redor, compreendo até que ponto pode um homem interpretar em certas ocasiões os sentimentos colectivos. Por uma vez na vida, os políticos querem dar-se ao luxo de terem um preso seu, um preso para mostrar à justiça.
A mim já não me interessa a politica. De modo geral, começo a alhear-me desta liberdade de gritos insensatos, de favores pagos, de indolências trágicas, de suficiências grotescas. Embora não deixe de me surpreender e magoar este mundo que me é dado a ver ultimamente e que os meus olhos envelhecidos quase não reconhecem.
De tudo o que tive de fazer hoje, o mais fácil foi convencer-me das razões que justificam estes tempos. Aceito-as sem grandes objecções. Acho que o faço porque não me sinto muito à vontade no papel de homem que se vê obrigado a cumprir a sua cegueira.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Ele aí está...

Motivando e estimulando o funcionamento zeloso de uma corte de indivíduos dedicados à cegueira da oportunidade. Ele aí está. Eles aí estão. Suspensos do olho frio e do sorriso breve daquele homem que durante trinta anos nunca se enganara e raramente tivera dúvidas e que sempre convocara Deus como sua testemunha abonatória. 

Valha-nos o Senhor dos Santos Passos

sábado, 15 de outubro de 2022

Café Central

É engraçado, a partir da esplanada, observar os homens do café. À primeira vista, parece que a liberdade é passar o dia no café. Olhando com mais atenção, os homens do café parecem presos, amarrados às cadeiras onde se sentam e às mesas diante das quais bebem ou comem ou falam. Apesar de ser ainda relativamente cedo, é evidente que não falta quem beba aguardente a esta hora. Os que o fazem tão cedo bebem-na em chávenas de café, de forma que tudo se faz de acordo com as mais severas exigências da moralidade pública. Contudo, a maioria dos clientes bebe café em chávenas pequenas que fumegam ao longe, no nevoeiro, como chaminés de barcos de brincar.

As horas passam depressa nos cafés. Porém, a fisionomia deste estabelecimento não muda com a passagem das horas. Também não muda o barulho, que é sempre a mesma sucessão de sons sincronizados no volume da estridência popular. Não fosse porque, indubitavelmente, alguns homens se levantam e vão embora, podia dizer-se que a humanidade incrustada no café é apenas uma, porque é sempre a mesma.

No café os homens olham para a televisão, olham para os tanques, olham para o carros de assalto, olham para a guerra. Não há duvida que aquele aparelho de opressão lhes diz muito. Voltam a olhar para a televisão, escrevem algumas palavras no telemóvel, levantam-se e vão telefonar, regressam aos seus lugares. Continuam a beber café, numa tentativa de darem aos seus nervos o estimulo que não obtêm pelo simples facto de parecerem homens livres.

As mulheres, parece que não foram admitidas neste antro de ócio. A falta de qualquer manifestação de ternura feminina dá ao café um carácter acertadamente misógino. Para além disso torna o estabelecimento ainda mais sombrio. As mulheres passam na rua sem olharem para o café. De imediato um horizonte de pescoços ávidos, quais pescoços de bonecos ventríloquos, estica-se em direcção à rua e começa a farejar no ar a essência efémera do perfume que passa, abrindo espaço, entre o peito e as costas, para o próximo café.

Da esplanada, os homens do café parecem muito tristes. Vivem de pequenos excessos de preguiça e de ilusão. Murmuram e falam de coisas que não sabem, como a guerra e a politica. Subjugam e dominam as mulheres que não têm. Quando não estão a caluniar, gritam e queixam-se dos impostos. Embalsamados no cheiro do café, estas múmias da liberdade dão uma ideia muito pobre da liberdade. De vez em quando levantam-se e compram uma raspadinha. Oferecem aos seus olhos semicerrados uma visão da esperança numerada. Num instante raspam a cautela da sorte grande, a fatia de ilusão, como se estivessem a subscrever um seguro de vida contra o trabalho. 
Contemplo também essa caricatura cómica do génio grego: alguns homens do café lêem jornais e dão a essa leitura a importância dos grandes eventos culturais. Ao lerem o jornal, sentem-se cidadãos de Atenas. Sentem-se felizes por se sentirem atenienses lendo jornais no café.

Agora, enquanto tomo o café já frio, há que reconhecer que de vez em quando, um homem passa ao largo da porta do café. No entanto, esse homem excepcional tem ar de quem vem de outro café.

Na esplanada do Café Central uma chávena de café frio, num dia nublado, custa um euro e dez cêntimos. A cusquice paga-se caro.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Sob(re) a sotaina

Ler isto, isto e isto, faz-me pensar que uma das características universais da injustiça é que todos os homens a reconhecem, apesar de todos contribuírem incessantemente para ela.

Que escabrosidade!

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Altíssimo

Por ora dás por ti a assobiar para o lado. Mas quando fechas o bico, as palavras amontoam-se-te na boca como cachos de uvas, não podem sair porque, para lá do alto dessa tua janela está a vida em bruto, a vida que nunca viveste e que intuis maravilhosa, com pássaros e árvores que roçam as nuvens, com rios que se arrastam espumosos, com ruas de pedras inundadas de sol, com gente que se passeia ao vento, por isso fechas as pálpebras, por isso suspiras pelos inocentes que lá em baixo vivem as suas vidas, formosos e apertados, com a pele bruta mas luzidia, e ficas com os sentidos a trabalhar rente ao chão, selvagens e ferozes, e anseias por descer e acolhe-los na sotaina, toca-los com as tuas mãos impolutas.