quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Aposto

Aposto que também tu és uma teimosa e que gostas de escolher o teu caminho, que preferes falhar sendo tu do que acertar sem que o resultado venha de ti, das tuas premências, dos teus anseios, da tua profunda inquietação, da tua loucura também. Aposto.

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Acontece sempre nos primeiros dias de Setembro

Começa com um fervilhar de rins ao inicio da tarde, uma substância amorfa que se instala nas entranhas como um incómodo parasita, um veneno adocicado que tem a cor opaca do vazio e a espessura remota da névoa, um desejo inconsciente que embriaga a lucidez, uma chama, um acorde indefinido, uma sonolência mais pesada, a repulsa e simultaneamente a fascinação.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Bosquejo da Jornada

Findas as jornadas, um forte viva ao Papa Francisco. 
Eu, ateu, me confesso: gosto da sua atitude agregadora, do seu radicalismo ideológico, da sua posição de ruptura dentro da própria instituição. Todo o estado de graça que se viveu em Portugal nos últimos quatro dias deve-se exclusivamente a Francisco e não à Santa Madre Igreja. 
Por cá, a Sotaina retrograda, abusadora e impune continuará em funções. Deus queira que Deus exista, porque se não existir, não sei o que há-de ser desta juventude afogada no seu catolicismo herdado e meramente cultural.

Mas...ainda assim... "não tenham medo".

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Adosinda

Barcelona. Ramblas. Quarto 600. Sexto piso. Adosinda já entrou. Antigamente devia fazer parte do sótão do prédio. Tem o tecto inclinado. O ambiente é de um luxo acolhedor. As paredes, os cortinados e até o edredão da cama são de um branco muito espesso. Adosinda está numa nuvem.
À direita há um quadro cinzento, uma aguarela do jardim e da fachada do hotel que lhe recorda o efeito do seu primeiro ataque de ansiedade: a tinta diluída. 
Em cima da mesa do pequeno almoço está um livro "Universo Dali". À esquerda há uma escrivaninha com um prospecto " Museu Picasso". E claro, há as janelas. Foi por isso que veio. Duas janelas discretas que dão para uma varanda de balaustrada muito baixa e perigosa. 
Ao fundo está o mar. Manso. Esverdeado. O ar está abafado. A luz, azulada, fraca, deixa antever a chegada da noite. Apagou as luzes do interior, abriu um pouco as cortinas e aproximou um cadeirão da varanda já iluminada por dois apliques na parede com uma luz difusa, morna.
Demorou cerca de vinte minutos a sair. Tem o cabelo molhado, acabou de tomar banho. Tem uma blusa de seda com renda que parece uma camisa de dormir e que lhe dá um ar de repouso sedutor. 
Distendeu-se na poltrona. Numa cadência de movimentos suaves e lentos, afaga o peito, sente a tristeza na sua pele branca, alguma excitação, o seu próprio cheiro, o suor e os sons interiores. A alma a perder as rédeas. O lume dentro de si. Um lume brando, mas em que não se podia tocar.
Adosinda nasceu para  tocar, não para ser tocada. Para observar, não para ser observada. 

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Projecto de Alvenaria

Ó bom-gosto dos homens, quem seria capaz de te fundar sobre o raciocínio? Quem ousaria usar-te somente conforme os princípios da lógica? Tu existes e não existes. Tu és e não és. Partes sempre de matéria díspar.
Não queiras inventar um palácio onde tudo seja perfeito. O bom-gosto é virtude de curador de museu. Se fores a desprezar o mau-gosto, não terás nem pintura, nem dança, nem palácio, nem jardins... nem salário.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Rui Rio

 É odiosa até mais não se poder a ironia, que não faz parte do homem, mas sim do cancro.

Morreste-me

Fiquei insustentavelmente mais pobre, apesar de toda a riqueza que me deixou.

quarta-feira, 12 de julho de 2023

O outro

Usam um léxico especial, feito de carinhos e palavras imbuídas de brandas melodias, gestos e hábitos muito próprios a conotar a relação proibida, rituais imperceptíveis que, certamente, precedem calorosos encontros carnais, uma espécie de sociedade secreta onde não entra quem quer que seja. Um dia chegará o latido repentino, a sensação que jaz silenciosa, o choque emocional, a queda da pedra basilar -  a consciência da condição. Ainda haverão de tentar fazer tábua rasa, alienar-se, ou escapar à angústia que trazem dentro de si, afundarem-se, desaparecer, desligar todos os sentidos para não perceberem aquilo que vão apreendendo, ou que receiam apreender, no ambiente circundante, adormecer para só despertar quando o pesadelo da perda já se tiver desvanecido. Mas o cálice amargo da culpa não admitirá meias medidas e será esvaziado até ao fundo, transformando "templos" de amor em "infernos" de má consciência.

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Moscatel quente

É que não foram assim tão poucas como isso as vezes que o Senhor Impontual viu o virtuosismo enganar as pessoas. O Senhor Impontual, que tenta governar-se por si próprio, aprendeu a sondar a profundidade dos corações virtuosos, para só ao objecto digno de estima dispensar a sua admiração. Mais não faz do que negar essa veleidade às feridas de exibição que empolgam algumas almas virtuosas. Assim como também a nega aos labiosos, e além disso aos muito labiosos.
E o Senhor Impontual sabe muito bem porquê.

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Alípio

Chama-se Alípio. Tem cinquenta e três anos, uma idade embaraçosa que hesita entre duas perspectivas da existência, dois mundos contraditórios. Os traços do seu rosto ganham todos os dias mais uma delgada camada de idade. Consume regularmente fosfato de disopiramida, cloridrato de propanolol e, como toda a gente, deixou de fumar. Vive sozinho, janta sozinho, envelhece sozinho, embora se esforce por manter o contacto com os seus dois filhos e o seu neto. De resto, o tempo encarregar-se-á de piorar o que já estava ruim. 
Ainda bem que é um dia de cada vez. Com este calor, dois... Alípio não aguentaria

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Questiúncula

Aquilo que a Senhora Loira que usa aqueles vestidos, sapatos e malas caras queria dizer lá naquilo de Sintra, era que o aumento da inflação ocorreu por causa dos lucros astronómicos das empresas, mas que os salários não podem acompanhar a inflação, caso contrário as empresas vão aumentar ainda mais os preços para manter as margens dos lucros que levaram ao início da inflação. Foi isso, não foi? 

sábado, 17 de junho de 2023

Comissão de Inquérito

Costa, na verdade, vai experimentando ao longo do seu percurso a cólera, a amargura, o ódio e a sede de vingança dos opositores. Nos dias das batalhas perdidas e das rebeliões, à hora do crepúsculo, quando os opositores se veem impotentes e como que fechados em si próprios, por não poderem agir à vontade sobre as tropas em debandada que as suas palavras já não atingem, nem sobre os generais sediciosos que se fizeram passar por imperadores, nem sobre os profetas dementes que de cachos de fieis fizeram punhados de cegos, chegam a sentir a tentação dos homens coléricos.
 
Costa mantem a passada. A comissão, quando atina com a decisão feliz, já é tarde de mais. Recomeça a dar o passo que os teria salvo, mas que, como a hora deles já passou, participam da podridão do sonho. Há efectivamente um general que, segundo os seus cálculos, os aconselhou a atacar a oeste. A comissão reinventa a história. Escamoteia aquele que lhe deu conselhos. Resolve atacar a norte. A mesmíssima coisa que se tentasse abrir uma estrada soprando contra os penedos da montanha.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Chamamento


Quando se pode prescindir de palavras e contrapostas palavras, e a essa alegria se mistura o sentimento do chamamento, acontece sempre um momento superior. A verdade é que o silêncio das pessoas, dos objectos ou mesmo da paisagem podem facilmente tocar-nos sem nos impor nada. Eu, por exemplo, não exijo nada da paisagem e muito menos das pessoas. Aceito-as como são. Embora, às vezes, a inconsequência não me comova menos que um acto de fraqueza.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Quitéria

Acabou de chegar aos cinquenta. Trabalha, paga a sua casa, os seus impostos, vai ao cinema sozinha, faz férias com alguns amigos, passa o Natal com a família. Janta num tabuleiro em frente ao televisor, deita-se, lê um pouco e para adormecer, acaricia-se, tranquila, na sua cama, fecha os olhos e conta a si própria uma história, sempre a mesma, a sua fantasia preferida. Depois dorme como uma criança. 

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Tio Lencastre

É o que vai acontecer contigo, meu rapaz. Os teus pais fizeram-te nascer, fizeram-te crescer, depois a vida encheu-te sucessivamente de desejos, de pesares, de alegrias e de sofrimentos, de cóleras e de perdões, até que te fez ingressar de novo nela. E, no entanto, tu nem és aquela criança, nem aquele estudante, nem aquele profissional, nem aquele esposo, nem aquele novo velho. Tu és aquele que se cumpriu. E, se sabes ver em ti um ramo que baloiça, mal pegado à árvore, hás-de nos teus movimentos gozar uns fogachos de eternidade. E tudo à tua volta se tornará momentaneamente eterno. A eterna frescura da manhã, a eterna escuridão da noite. Depois, o tempo deixará de ser uma ampulheta que vai gastando a areia, e far-te-á lembrar um ceifeiro que ata a gavela.

Parabéns, meu rapaz. Vai lá.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Maria Luísa

Maria Luísa não mente, não engana. É o que é. Pode parecer arrogante, mas é verdadeira. Ganha a vida a aparecer. Transforma facilmente vencimentos muito razoáveis em álcool e más decisões. É depressiva, analítica, estupidamente inteligente e sufoca com o compromisso.
Não é uma mulher normal, nem pretende ser. O seu objectivo é bem mais simples: ser um bocado feliz. Numa tentativa de auto-observação, com uma leve pitada de algofilia, começou no inicio desta semana a consultar um psiquiatra. Dia após dia viu-se forçada a falar sobre o João por quem é apaixonada, sobre o Pedro com quem vai para a cama e sobre o Filipe - o seu apoio emocional. Os três homens que arruinaram a sua vida e a quem é completamente devota.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Albertino

Nunca votou. Era um principio ao qual sempre esperou nunca ter de renunciar. Até agora, resistiu a todas as tentações, a todos os processos de culpabilização, de desestabilização, às pressões, às chantagens, às avalanches de argumentações fundamentadas ou de argúcias falaciosas, agarrando-se ao único cântico do seu modesto breviário, convicto de que, todos sabemos que as eleições são uma cilada para uma pouco invejável congregação. Modestamente esforçou-se, pois, por nunca fazer parte dela. Esta atitude pode parecer um tanto limitada, a certos espíritos subtis, mas a harmonia cristalina desta concisão sempre lhe agradou. Não é este o momento de desenvolver quais os motivos. Digamos simplesmente que, para além da intangibilidade deste intróito, nunca apareceu, ao longo da sua vida, um único candidato em busca de votos a quem confiasse as chaves do seu carro ou de sua casa, em suma, um tipo com quem gostasse de partilhar uns momentos de pesca à linha.

Esta manhã encontrei Albertino no café. No meio de um croissant e um Tutti Frutti, Albertino perguntou-me se já escolhi o molho com que quero ser comido na próxima legislatura.

terça-feira, 9 de maio de 2023

sábado, 6 de maio de 2023

Luzia

Lá em baixo, Luzia caminha para junto da água. Sentou-se sobre a areia quente, com os pés em frente ao mar. Sentiu as ondas a bater contra os tornozelos como um amante que lhe tocava nos dedos com beijos gelados.
Não há sol, mas algumas gaivotas esvoaçam no céu, pequenos pontos de esperança. Luzia sente-se como se estivesse a afastar-se do mundo real e a entrar noutro universo. Um lugar povoado de fantasias. Embora estivesse sentada junto ao mar, podia muito bem estar deitada, completamente nua, numa nuvem branca, espessa. Sentia uma pontinha de medo, porém não o suficiente para querer parar o pensamento. Estava a ficar igual aos demais: encontrara o seu outro eu.
Cá em cima, na esplanada, os efeitos do gin-tónico. A mente a dispersar-se em ramificações eufóricas de fim de tarde.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Menandros

Repete-se até à náusea que o mundo de hoje é um teatro. E isto é assim não porque a natureza tenha per si alguma semelhança com os cenários dos teatros, nem com os anfiteatros helénicos, nem com os múltiplos cenários suspensos de pano ou papel dos teatros à italiana, nem com a sala negra do velhíssimo teatro de vanguarda. São os políticos. Políticos como os nossos, que teimam em fazer das suas vidas quotidianas, dos seus perigosos relacionamentos, das suas insanas prestações sociais e politicas, do seu amor próprio e mesmo da sua solidão, embora a sua profissão não seja a de actor, autênticas peças de teatro. Prestando-se a papeis miseráveis e a representações medíocres como se nessa inevitável ficção, na borda do palco, a cortina nunca se levantasse. Mas levanta, e do outro lado está o publico. Um publico numeroso, um publico frágil, incompreensivelmente silencioso.