quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Hipócrates

Um senhor, um homem vulgar, mais fraco que superdotado, a caminho da meia-idade, acorda cedo, à sua hora do costume. O ruído do despertador irrita-o, senta-se um instante na borda da cama, adverte que não é ninguém, ou quase ninguém; gostava das imagens do sonho interrompido que velozmente se vão apagando da memoria. Quer voltar para a cama. Mas não deve fazê-lo. Lembra-se do dia da semana, da hora. Não é uma estreia. Está há vários anos a representar a mesma personagem, embora, como nas séries de televisão, as cenas vão sofrendo algumas alterações. 
Hoje tem de discutir o relatório que há dias o director lhe entregou. Tentará seguir a corrente. Beija com amor e rotina a sua mulher. Quase mecanicamente, sem entrar na situação, troca umas palavras com as crianças e começa a colocar a máscara: barbeia-se, toma duche esfrega-se energicamente, não veste o roupão - já velho, que lhe ofereceu a esposa e com o qual se sente tão bem - nem as calças de ganga, mas o seu fato completo de empregado de escritório. Os do departamento de design e publicidade podem ir vestidos como lhes der na gana, mas ele não. Toma o pequeno-almoço que considera adequado. Põe os óculos que, de acordo com a moça da óptica, vincam a sua personalidade.
Hoje tem de estar firme para discutir o relatório e, embora com firmeza, alegre para receber o espirituoso director. Se durante esta temporada agir bem, talvez para o próximo ano lhe dêem um papel de executivo. E se tiver algum cuidado com o vestuário, mostrar-se afável e ao mesmo tempo seguro de si próprio, talvez Alice, a nova recepcionista, lhe deixe representar um papel de amante, que são os mais bonitos.
Já pôs a mascara, a pessoa. O duche, as fricções no corpo, as palavras trocadas com os filhos, o café desembaraçaram-no e estimularam-no. Uma vez convertido num perfeito hipócrita, lança-se à rua, ao palco. E a palavra hipócrita não contém aqui nada de pejorativo, uma vez que hipócritas chamavam os gregos aos actores. 

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Despertador

Podia ter sido do género ópera, cançoneta ou peça de jazz, Händel, Piaf ou Mingus. Mas não foi. Foi Fausto. "Como um sonho acordado".
Foi música que me entrou pela cabeça dentro, igual a uma recordação, como um veneno que se instala até suplantar o desassossego e profanar-me o espírito. 
Abram-se as portas do inferno. 

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Palomar


De todo o movimento do Sol na esfera celeste, há um momento que o Senhor Impontual gosta de apreciar com particular delicadeza - que é aquele momento ínfimo em que o Sol diz para a Lua: vem.
O Senhor Impontual gosta de acreditar que um dia a Terra travará de súbito naquele preciso momento e por ali ficará, estática, durante um instante mais alongado. 
Ainda não foi hoje.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Douro

Na encosta, subindo para nascente, onde as nuvens crescem a cada passo, paro pela segunda vez e pela segunda vez lanço um olhar demorado para o vale que, ao fundo, parece de todo abandonado, tão silencioso e imóvel está.
À minha volta a luz acinzentada parece consumir o próprio ar que se respira. Bastou-me olhar para as vinhas que se estendem pela encosta até à margem do rio para sentir, como se fosse um bicho faminto sob a frescura daquele ar, o cheiro acre, saboroso, das videiras banhando-se primeiro do orvalho e depois do sol manso da manhã. Nesta altura já não se percebe se são arbustos vivos, se empedernidos por décadas e décadas de orvalhos, de chuvas, de geadas e de sol. Plantas imóveis, agarradas à terra, parecem esqueletos calcinados à espera de um vento mais forte que as arranque dali.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Questiúncula

Quão intelectual e emocionalmente transviado é preciso uma pessoa ser para ver na novela Rubiales uma degeneração civilizacional que ameaça o pilar essencial da essência humana - que é ímpeto?

sábado, 16 de setembro de 2023

Palomar

 

Nesta manhã de meio de Setembro com céu incerto, o Senhor Impontual veio até ao observatório.
A apreciação unilateral é sempre ruinosa.
A imperfeição completa e a perfeição integral não coabitam o mesmo ponto de mira.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Aposto

Aposto que também tu és uma teimosa e que gostas de escolher o teu caminho, que preferes falhar sendo tu do que acertar sem que o resultado venha de ti, das tuas premências, dos teus anseios, da tua profunda inquietação, da tua loucura também. Aposto.

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Acontece sempre nos primeiros dias de Setembro

Começa com um fervilhar de rins ao inicio da tarde, uma substância amorfa que se instala nas entranhas como um incómodo parasita, um veneno adocicado que tem a cor opaca do vazio e a espessura remota da névoa, um desejo inconsciente que embriaga a lucidez, uma chama, um acorde indefinido, uma sonolência mais pesada, a repulsa e simultaneamente a fascinação.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Bosquejo da Jornada

Findas as jornadas, um forte viva ao Papa Francisco. 
Eu, ateu, me confesso: gosto da sua atitude agregadora, do seu radicalismo ideológico, da sua posição de ruptura dentro da própria instituição. Todo o estado de graça que se viveu em Portugal nos últimos quatro dias deve-se exclusivamente a Francisco e não à Santa Madre Igreja. 
Por cá, a Sotaina retrograda, abusadora e impune continuará em funções. Deus queira que Deus exista, porque se não existir, não sei o que há-de ser desta juventude afogada no seu catolicismo herdado e meramente cultural.

Mas...ainda assim... "não tenham medo".

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Adosinda

Barcelona. Ramblas. Quarto 600. Sexto piso. Adosinda já entrou. Antigamente devia fazer parte do sótão do prédio. Tem o tecto inclinado. O ambiente é de um luxo acolhedor. As paredes, os cortinados e até o edredão da cama são de um branco muito espesso. Adosinda está numa nuvem.
À direita há um quadro cinzento, uma aguarela do jardim e da fachada do hotel que lhe recorda o efeito do seu primeiro ataque de ansiedade: a tinta diluída. 
Em cima da mesa do pequeno almoço está um livro "Universo Dali". À esquerda há uma escrivaninha com um prospecto " Museu Picasso". E claro, há as janelas. Foi por isso que veio. Duas janelas discretas que dão para uma varanda de balaustrada muito baixa e perigosa. 
Ao fundo está o mar. Manso. Esverdeado. O ar está abafado. A luz, azulada, fraca, deixa antever a chegada da noite. Apagou as luzes do interior, abriu um pouco as cortinas e aproximou um cadeirão da varanda já iluminada por dois apliques na parede com uma luz difusa, morna.
Demorou cerca de vinte minutos a sair. Tem o cabelo molhado, acabou de tomar banho. Tem uma blusa de seda com renda que parece uma camisa de dormir e que lhe dá um ar de repouso sedutor. 
Distendeu-se na poltrona. Numa cadência de movimentos suaves e lentos, afaga o peito, sente a tristeza na sua pele branca, alguma excitação, o seu próprio cheiro, o suor e os sons interiores. A alma a perder as rédeas. O lume dentro de si. Um lume brando, mas em que não se podia tocar.
Adosinda nasceu para  tocar, não para ser tocada. Para observar, não para ser observada. 

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Projecto de Alvenaria

Ó bom-gosto dos homens, quem seria capaz de te fundar sobre o raciocínio? Quem ousaria usar-te somente conforme os princípios da lógica? Tu existes e não existes. Tu és e não és. Partes sempre de matéria díspar.
Não queiras inventar um palácio onde tudo seja perfeito. O bom-gosto é virtude de curador de museu. Se fores a desprezar o mau-gosto, não terás nem pintura, nem dança, nem palácio, nem jardins... nem salário.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Rui Rio

 É odiosa até mais não se poder a ironia, que não faz parte do homem, mas sim do cancro.

Morreste-me

Fiquei insustentavelmente mais pobre, apesar de toda a riqueza que me deixou.

quarta-feira, 12 de julho de 2023

O outro

Usam um léxico especial, feito de carinhos e palavras imbuídas de brandas melodias, gestos e hábitos muito próprios a conotar a relação proibida, rituais imperceptíveis que, certamente, precedem calorosos encontros carnais, uma espécie de sociedade secreta onde não entra quem quer que seja. Um dia chegará o latido repentino, a sensação que jaz silenciosa, o choque emocional, a queda da pedra basilar -  a consciência da condição. Ainda haverão de tentar fazer tábua rasa, alienar-se, ou escapar à angústia que trazem dentro de si, afundarem-se, desaparecer, desligar todos os sentidos para não perceberem aquilo que vão apreendendo, ou que receiam apreender, no ambiente circundante, adormecer para só despertar quando o pesadelo da perda já se tiver desvanecido. Mas o cálice amargo da culpa não admitirá meias medidas e será esvaziado até ao fundo, transformando "templos" de amor em "infernos" de má consciência.

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Moscatel quente

É que não foram assim tão poucas como isso as vezes que o Senhor Impontual viu o virtuosismo enganar as pessoas. O Senhor Impontual, que tenta governar-se por si próprio, aprendeu a sondar a profundidade dos corações virtuosos, para só ao objecto digno de estima dispensar a sua admiração. Mais não faz do que negar essa veleidade às feridas de exibição que empolgam algumas almas virtuosas. Assim como também a nega aos labiosos, e além disso aos muito labiosos.
E o Senhor Impontual sabe muito bem porquê.

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Alípio

Chama-se Alípio. Tem cinquenta e três anos, uma idade embaraçosa que hesita entre duas perspectivas da existência, dois mundos contraditórios. Os traços do seu rosto ganham todos os dias mais uma delgada camada de idade. Consume regularmente fosfato de disopiramida, cloridrato de propanolol e, como toda a gente, deixou de fumar. Vive sozinho, janta sozinho, envelhece sozinho, embora se esforce por manter o contacto com os seus dois filhos e o seu neto. De resto, o tempo encarregar-se-á de piorar o que já estava ruim. 
Ainda bem que é um dia de cada vez. Com este calor, dois... Alípio não aguentaria

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Questiúncula

Aquilo que a Senhora Loira que usa aqueles vestidos, sapatos e malas caras queria dizer lá naquilo de Sintra, era que o aumento da inflação ocorreu por causa dos lucros astronómicos das empresas, mas que os salários não podem acompanhar a inflação, caso contrário as empresas vão aumentar ainda mais os preços para manter as margens dos lucros que levaram ao início da inflação. Foi isso, não foi? 

sábado, 17 de junho de 2023

Comissão de Inquérito

Costa, na verdade, vai experimentando ao longo do seu percurso a cólera, a amargura, o ódio e a sede de vingança dos opositores. Nos dias das batalhas perdidas e das rebeliões, à hora do crepúsculo, quando os opositores se veem impotentes e como que fechados em si próprios, por não poderem agir à vontade sobre as tropas em debandada que as suas palavras já não atingem, nem sobre os generais sediciosos que se fizeram passar por imperadores, nem sobre os profetas dementes que de cachos de fieis fizeram punhados de cegos, chegam a sentir a tentação dos homens coléricos.
 
Costa mantem a passada. A comissão, quando atina com a decisão feliz, já é tarde de mais. Recomeça a dar o passo que os teria salvo, mas que, como a hora deles já passou, participam da podridão do sonho. Há efectivamente um general que, segundo os seus cálculos, os aconselhou a atacar a oeste. A comissão reinventa a história. Escamoteia aquele que lhe deu conselhos. Resolve atacar a norte. A mesmíssima coisa que se tentasse abrir uma estrada soprando contra os penedos da montanha.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Chamamento


Quando se pode prescindir de palavras e contrapostas palavras, e a essa alegria se mistura o sentimento do chamamento, acontece sempre um momento superior. A verdade é que o silêncio das pessoas, dos objectos ou mesmo da paisagem podem facilmente tocar-nos sem nos impor nada. Eu, por exemplo, não exijo nada da paisagem e muito menos das pessoas. Aceito-as como são. Embora, às vezes, a inconsequência não me comova menos que um acto de fraqueza.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Quitéria

Acabou de chegar aos cinquenta. Trabalha, paga a sua casa, os seus impostos, vai ao cinema sozinha, faz férias com alguns amigos, passa o Natal com a família. Janta num tabuleiro em frente ao televisor, deita-se, lê um pouco e para adormecer, acaricia-se, tranquila, na sua cama, fecha os olhos e conta a si própria uma história, sempre a mesma, a sua fantasia preferida. Depois dorme como uma criança.