terça-feira, 5 de julho de 2016

Pó na estante.

Devo ter lido demasiado cedo alguns dos "monstros" russos, como o meu pai - o mentor da empreitada - lhes chamava. Talvez naquela altura, tendo como base uma quase inexistente experiência em qualquer dos sectores da vida, não tenham exercido sobre mim o fascínio real que aquela riqueza de vocabulário utilizada a cada variação do desejo, da paixão, da frustração, da raiva, da mágoa ou da alegria é capaz de provocar. Cada carta, cada bilhete são exemplares obras de arte. Cada conversa um reflexo puro das consciências. Um jogo fascinante e subtil com a ordem e a desordem das palavras utilizadas. Os ritmos, os prefixos e os sufixos que vão transformando e sustentando sentimentos simples em grandiosidades imensuráveis. A mestria e a minúcia da linguagem que parece, em cada andamento, retirar-nos qualquer suspeita de que na realidade não fosse assim que duas pessoas reais falassem e escrevessem uma à outra. Pobre gente. Pobre de mim. Tanto pó na estante!



(embalado por um post da Uva Passa que, além de muito propositado, teve o condão de me deixar bastante descansado. Pois em matéria de leitura sempre achei que era um atrasado, um fora de tempo, um perdido dos tempos modernos, um abandonado ao fascínio real da velha literatura, da qual, tenho de confessar, não me consigo desprender e aos quais acabo sempre por voltar porque há sempre uma obra que me falhou no tempo exacto. Quem diz os russos, diz o franceses, os ingleses... pese embora uma ou outra incursão pelas Ferrantes desta vida.)

E vós?

E vós também, nojentos da Política
que explorais eleitos o Patriotismo!
Macrots da Pátria que vos pariu ingénuos
e vos amortalha infames!

E vós também, pindéricos jornalistas
que fazeis cócegas e outras coisas
à opinião pública!

E vós também, ó Gentes de Pensamento,
ó Personalidades, ó Homens!

**Almada Negreiros, Cena de ódio

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Gente

Gosto de gente. Gosto de gente com um sorriso simples na cara. Daqueles sorrisos que escondem coisas profundas. E que dos seus olhos fundos jorra um brilho complexo e penetrante. Gente que olha como se entrasse naquilo que olha. Gente que por baixo dos seus pés, tão somente a uns milímetros de profundidade, tem a borbulhar um inferno de magma em erupção. Deve ser essa consciência inconsciente que os suspende à vida. Deve ser essa vida suspensa que me liga a eles. Gosto de gente de sorriso simples na cara. Gosto de gente que deambula alegre pelos corredores das horas e dos dias perdidos. Gosto de gente que gosta de estar sentada na beira de um rio. Gosto da etérea voz de Lady Day ao fundo.

domingo, 3 de julho de 2016

Sábado à noite.

Homens e mulheres saem ao sábado à noite. Elas põem rímel nas pestanas, bâton nos lábios, base na cara, eles vestem pólos, calças de sarja, sapatos sem meias. Enviam beijos uns aos outros por cimas das entradas de ameijoas fumegantes. Exibem-se, beijam-se na boca em público, devoram escalopes de porco com molho de cogumelos e batatas fritas como glutões. Lançam olhares uns ao outros por cima das mesas para constatar que são belos, que são belas, mergulhando ainda mais fundo nos seus eus. Alguns misturam vinho com gin até perderem o juízo.

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Um amor morto.

Parece tão simples, digo a mim mesmo, tão simples. Não a conheço. Não lhe noto artifícios, não há grandes palavras a dar o ar importante, não há ideias gerais para dar ideia de que o autor é inteligente. Nada de poses, nada de maneiras. As palavras virtuais, que são as que eu conheço, de Carla Pinto Coelho parecem coincidir com ela, com aquilo que ela é, no fundo de si própria, no seu dia a dia. Uma rapariga simples. Parece ter pequenas molas que estão enraizadas no fundo do seu ventre, no seu coração, e que afloram sob a pele do leitor/seguidor que salta de umas para as outras sem parar.

Ide aqui conhecer a sua obra primeira e deixai o vosso contributo.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Aqua Luminae

musica daqui


Temos uma maneira diferente de ver o mundo: eu em voo de pássaro, mergulhando depois a pique. Tu observando o horizonte para que as imagens se depositem dentro de ti. Ambos gostamos do mar. Encontramo-nos no fim do sol?

Salvo-conduto.

Numa altura em que o ponto crucial seria ousar fazer a revolução maior: que é a mudança da sua mentalidade, o mundo -- esse lugar insalubre para o florescimento da experiência humana -- entretém-se ora a dizimar-se em pequenas prestações, ora a levantar muros de arame de farpado.
Ide pró caralho, pá.

terça-feira, 28 de junho de 2016

A desengulhar de Ferrante.


«E, no entanto, as mulheres - as boas mulheres - assustavam-me porque acabavam por querer a alma de um tipo, e a minha vontade era conservar o que sobrava da minha...»

segunda-feira, 27 de junho de 2016

«O que queria era estar pronta para abdicar, não de parte, mas de tudo.»

Mesmo sabendo e compreendendo que neste mundo há outras prisões sem grades de onde é muito difícil fugir: o cárcere da desconfiança, a ratoeira dos preconceitos, a cela da resignação, o calabouço da indiferença, a galé do desamor ou até a masmorra da solidão, foi. Ganhou. Nunca se espantou por perder o que quer que fosse.

Oui, c'est moi.

Uma estranha mistura que veio de Lisboa para Paris. Aprendeu a falar francês e aprendeu a conhecer-se. Adquiriu o hábito de dividir o mundo em dois: os que vivem para a sociedade e os que vivem da sociedade. O seu homem gosta de mulheres bonitas que enverguem vestidos bonitos. Ela detesta vestidos. Apertam-na nas costuras. Fazem dela uma mulher que não sabe andar. Na noite deste sábado, para lhe agradar, para lhe agradecer todo o bem-estar que lhe garante, meteu-se num vestido preto, em malha, apertado, que lhe marcava os seios, a cintura, o comprimento das pernas, tudo aquilo que ela gosta de esconder, todos os sinais que fazem de si mulher. Demarcou o contorno dos olhos, pôs baton vermelho nos lábios, soltou os cabelos.

Ele entra no quarto e exclama:
__ Minha puta! Que bonita que estás.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

terça-feira, 21 de junho de 2016

Saint-Exupéry.


«Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.»

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Principado.

No entanto, nunca conheci uma mulher que, em segredo, não esperasse pelo príncipe encantado. É por isso que ficam desiludidas. Sempre. As mulheres pedem aos homens que sejam perfeitos. Já os homens também esperam princesas encantadas, mas escondem-no bem.

Definição

Na verdade, e ao contrário do pregão vigente, o amor raramente se detém em pormenores. Amar só pode passar por acolher o outro na sua totalidade. Ninguém é perfeito. Muito menos para sempre.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Tríptico



Falso 9


Não consigo conceber uma equipa de futebol sem um verdadeiro número 9. Fui habituado, mesmo no tempo em que não tínhamos qualquer expressão futebolística além-fronteiras, a ver os números 9 fazer golos em catadupa. Rui Jordão, Manuel Fernandes, Fernando Gomes, Néné, Rui Águas, homens que sabiam aproveitar as oportunidades de golo, homens que se movimentavam na área sempre com os olhos na baliza. O golo acontecia naturalmente. Hoje, e reportando aos últimos 15 anos em que atingimos um certo estatuto no mundo do futebol, limitamo-nos a jogar com um falso 9. Um 9, mesmo que seja ocupado pelo (alegadamente) melhor jogador do mundo, não pode ser falso. Um 9 tem de ser verdadeiro, profícuo, incisivo, letal - nunca falso. Por isso lá estarei em Lyon no dia 22, não na posição 9 mas a ocupar a posição 12. E não serei um falso 12. Quiçá marco um golo num magnifico pontapé de moinho.

Cota alta.


A luz de poente empresta aos aposentos da cota mais alta da hospedaria uma atmosfera de intimidade absolutamente protectora. É quase nulo o ruído longínquo da rua que aqui penetra. Ou nem penetra. É um silêncio inebriante. Por vezes, basta subir alguns degraus, transpor a porta de entrada de um lugar desconhecido, para nos sentirmos aspirados por um mundo diferente, onde tudo o que nos pairava na mente, tudo o que desejávamos e acreditávamos momentos antes se encontra agora ali, a nu, virado do avesso. É aí que começa o preludio febril em que se anseia por começar uma história sem história nesse universo invertido, adúltero.

(do not disturb, please.)

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Também é dia de Santo António.

  Maria Helena Vieira da Silva -  Auto-retrato, 1931


Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, 
Não há nada mais simples 
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte. 
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus. 

Sou fácil de definir. 
Vi como um danado. 
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma. 
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei. 
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver. 
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras; 
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento. 
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais. 

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança. 
Fechei os olhos e dormi. 
Além disso, fui o único poeta da Natureza. 

__Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 
Heterónimo de Fernando Pessoa 

sábado, 11 de junho de 2016