Um ano volvido, ao invés de aparecer para posar no local do costume, telefonou a sugerir que fosse a sua casa. Na falta sistemática do treino da fantasia, o proponente fica numa posição desvantajosa quando as picadas da saudade lhe estrangulam o gasganete. Então paga caro o desprezo pela ficção: é obrigado a fantasiar e não sabe como. A mim, apesar de só me ocorrerem cenas de péssima qualidade dramática, o simples exercício da recriação acaba por fascinar-me. A experiencia resulta excitante. Mas...algo mudou. Os vestidos dela riem, trocistas, no roupeiro. As almofadas cheiram a fêmea. A escova do cabelo tem forma fálica. Os champôs da banheira, os boiões de cremes, os frascos de fragrâncias leves, o gorro para o cabelo são cumplices mudos da mudança. As sandálias de camurça, caídas no corredor, não dizem em que pista dançaram na noite anterior. A madrugada fica mais funda. O uísque que sabe a chuva. O filme continua a rodar e os amantes bebem o molho do proibido. Amam-se sobre a alcatifa, sob o chuveiro. O proponente bate a porta. Assoma à janela, desvia levemente a cortina. Deixa-se cair na cama. Finge-se adormecida. À dor da partida junta-se a mágoa inconsolável de não ter imaginação.