terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Por aqui ainda não há pássaros

As coisas parecem prosseguir como se eu não estivesse aqui. O meu estado de absoluta indiferença não me assombra nem me entristece. O trabalho absorve-me. Mas o silêncio, agora, é pegajoso. Húmido. Um silêncio húmido que ninguém interrompe, como que por temor. Nem os pássaros arriscam um pio. Tombou o silêncio e o silêncio parece querer vigiar tudo e todos: os homens, as mulheres, as ruas, a sombra imponente dos prédios, os animais, as árvores, os barcos, o rio. Provavelmente, o silêncio é uma forma imperativa de esquecimento. E bem precisamos de obliterar o tempo presente. Mas ... e quando já não houver mais nada para esquecer?

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Isto já depois do concerto do Nick Cave em Copenhaga

Nao posso deixar de admirar esta gente toda que, por opção, mergulhou de forma vertiginosa e assustadora no poço mais profundo da hipocrisia politica e por lá se vai deixar ficar, de olhos bem abertos, num exame escuro do populismo, tempo suficiente para perceber o que vê, o que toca: o horror, a angustia e a permanente sensação primordial do medo de ser humano, de estar vivo, de ter que viver e dar vida. Mas que, ainda assim, há-de encontrar um feixe de luz para intuir que um dia gostaria de cuidar de fazer do preto, do branco e do cinza amigos de todas as cores do arco-íris. Que puta de gente!

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Portugueses de bem

Para o Senhor Impontual, que se alimenta de sensações e de verdades que troca quando o cansam, as recordações são meros acessórios. Não as exorciza quando surgem, mas não as procura. De qualquer forma, o Senhor Impontual jamais abdica do seu centro de gravidade - o tempo em progressão, o tempo fugidio.
A vivência do Senhor Impontual seria medíocre, desprezível, se lhe bastasse saber que o sol se levanta de manhã, que as aves acordam e as flores abrem. Há muito que estes instintos, só por si, se silenciaram no Senhor Impontual.
Contudo, não surpreende o Senhor Impontual que, depois de terem vivido outras horas, os homens possam retomar o quotidiano vulgar e repousante. O Senhor Impontual não teme os indícios de retrocesso, as mentiras-refrão, as falsas promessas de mudança, uma profecia demagógica ou uma revelação, mas teme, e muito, a capacidade que os homens têm de as esquecer (as horas vividas), a coragem que têm de voltar ao seu velho mar morto.

domingo, 10 de janeiro de 2021

Prognóstico


A tarde cai fria, o sol e as nuvens esmagam-se contra o rio. O olhar, as palavras interiores e a imaginação retorcem-se até criarem paisagens inóspitas, alamedas sombrias de densos arvoredos, bosques carregados de espinhos. Pouco a pouco vão ficando poucas coisas em que pousar os olhos. Entretanto chega a noite e consigo vem o desvelo. E logo: a dúvida. A culpa e os culpados. A responsabilidade e os irresponsáveis. Por último: a angustia. O áspero som do silêncio a perfurar o pensamento. O espectro a pairar sobre a cabeça.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Dia de Reis

Foi estranho o que aconteceu: celebrei a vitória sobre o sonho dilacerado, exaltei a alegria de voltar ao meu velho mundo pleno de nuvens e enormes árvores despidas, enquanto o meu corpo transformado em fonte exuberante e fresca matava a obscura sede daquela Rainha, que outrora me humilhara e ferira, ao querer-me. 
Esta mescla de afrontas, de selvajarias e caricias, esta fusão de sonho e de vigília, do inconsciente e da recordação, de emoções e rebeliões do corpo, transformaram-me no espaço de uma noite num ser incansável no amor, renovando o prazer de uma carne flácida e gasta sobre a qual a calma descia como o crepúsculo sobre a noite. Pese embora a manhã se tenha apresentado branca, indiferente e eterna no horizonte.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Princípio de religação

Não vou agora aqui contar o dia em que o amor se apresentou involuntariamente, direi apenas que fui seduzido pelas maravilhas expostas naquela sala. Quanto a ela, amava em mim a perturbação. Mas isso agora não importa nada.
Há momentos em que a massa viva se coloca mais profundamente do que ela julga e por muito mais tempo do que ela desejava sob a alçada do outro.
Na verdade, para alguns homens e mulheres, as longas paixões são meras obsessões da experiência suprema em que o domínio de um ou do outro imprime, como um pesado sinete colocado no centro de gravidade, arrebatadas permutas mentais e físicas a que por vezes se pode designar de subsistência da alma.