sábado, 27 de agosto de 2016

Room to Roam


O que eu queria dizer era justamente isso: não estou preocupado comigo. Está tudo bem. Tenho tomado banho, escovado os dentes, bebido água. Meu coração continua a bater - insolente - como sempre.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Vilar de Mouros.


E se eu voltasse a fumar um charro?
Nos últimos 20 anos, tal só me aconteceu muito, mas mesmo muito raramente, pois sou demasiado gélido para procurar refúgio noutro lugar que não as minhas convicções. Todavia, se fumasse, é certo que um terrível abalo me percorreria o corpo e nada permaneceria da minha frieza. Ficaria momentaneamente irreconhecível, de olhos parados, esgazeados, os lábios frementes, os gestos e as palavras a denotar uma cínica sensualidade. Tentaria escapar-me, em vão, invocando a razão de sempre. Os outros lançar-se-iam rapidamente na orgia fria, que me repugna, mas que observaria sempre com vivo interesse, mais não fosse para lhes relatar depois entre risadas. Enquanto uns deixariam cair as pálpebras, outros tossiriam às primeiras baforadas. Por vezes fico até assustado ao constatar que, neles, a droga produz efeitos diferentes dos que habitualmente se verificariam em mim. Neles, os sintomas são os de acordar: os gestos da repugnância, convulsivos ou lentos, do combate contra a náusea, enquanto em mim cai a confiança plena, uma semiconsciência encantadora. Um espectáculo assustador: o homem que desperta suavemente e que seduz. 
E se eu voltasse a fumar um charro?

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Sem pelicula.

Hoje sairei por aí, verei tudo e não registarei nada. Se quiser simplificar, direi apenas que hoje me faltará a memória, esquecendo assim tudo o que possa constituir a estória diária de um ser humano. Verei tudo como se o visse pela primeira vez. Todas as impressões recebidas serão uma novidade e manterão intacto todo o interesse que me possam despertar. Hoje serei uma espécie de máquina fotográfica sem rolo. Não me cansarei das impressões agradáveis e as más nunca chegarão a acumular-se de forma a desgostar-me. Por outro lado, esta espécie de alheamento relativamente a tudo também não será de todo incómoda. Distanciar-me-à daquilo que iria ocupar-me de forma mais obsessiva, e a sensação dai resultante será, inclusive, bastante agradável.


"Fotografar é colocar na mesma linha a cabeça, o olho e o coração."

__Henri Cartier-Bresson

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Silente.

A folha de papel assusta-me. Não a folha de papel em branco, mas a folha escrita até meio. Escrever sempre me apaixonou, porque sei que tudo o que se escreve é em parte mentira. Na verdade os que escrevem sofrem todo o tipo de mutilações. Eu, por exemplo, tenho um pensamento que tem forma nos equilíbrios e nos desequilíbrios, nos sons, nos silêncio, nas pedras, nas cores. Por vezes escrever enfraquece-me terrivelmente o pensamento, afasta-me o espírito da palavra, bem entendido, da ideia. E por isso, às vezes, calo-me. Mas calado também não estou bem...

sábado, 13 de agosto de 2016

Outros Agostos.


O que é o homem sem liberdade
O! Mariana diz-me
Diz-me como posso amar-te
Se eu não sou livre, diz-me
Como oferecer-te o meu coração
Se ele não é para mim,

*Lorca recita o seu último poema, mesmo antes da sua execução, durante a guerra civil de Espanha em Agosto de 1936, por um pelotão de fuzilamento fascista.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Cerimonial.


Está impressionante lá dentro. Mesmo impressionante! Mulheres bonitas, todas bem vestidas e a sorrir umas para as outras. É outro mundo.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Asno

Embora seja esse o motivo porque vou escrevendo este relato: porque às vezes tem laivos de alguma beleza, é elástico, é vivo e encontro por todo o lado o leitmotiv do meu deslumbramento: o vício, as loucas tentações, a reflexão ou a violência, o amor ou a indiferença, de tudo me sirvo para viver. Com excepção da malevolência, pois ela nunca me habitou. O ódio não cria, destrói. Estou acima disso. Repito, estou acima da malevolência. São o desejo, a paixão, o desprezo, a repugnância, o que anima a minha vida. Contudo reconheço, também, a força e a fecundidade da indiferença, embora, por regra, esta palavra nada signifique para quem quer que seja. Nem para mim, que às vezes me comporto como um verdadeiro asno.

Inaugurando então a época das monções.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Arroteamento.

Dela quer sempre tudo. Ver todos os seus rostos, todos os seus medos, todas as suas audácias, aquele sentimento novo que inventa de cada vez que a volta do avesso como quem vira uma luva e que faz surgir em si territórios desconhecidos, para onde se deixa arrastar aterrorizado, voluntário e seguro de se aproximar de uma luz que o cega, mas que lhe fala de amor, de identidade, de terra por desbravar. 

Ainda há quem trabalhe em Agosto!

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Ide, ide.



Ide para os Algarves. Ide para Punta Cana. Ide, esgotai e esgotai-vos. Ide-vos encher de mosquitos. Ide, ide.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Silly Season.


Sendo esta, por natureza, a época do ano em que há mais emoções e momentos para evocar, concentrados que estão na zona escarpada das recordações, ali onde o fole da memoria se enche com mais frequência e menos vazios há a registar, não era preciso uma brasa destas. Só complica.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Lobos solitários.

É estranho como as catástrofes podem levar-nos a procurar conforto em coisas pequenas e comuns como podar a sebe do jardim, jogar à bola no relvado com o cão, ler um livro velho, andar a pé (que noite magnifica!), conversar ao telefone com um amigo sobre coisa nenhuma. No fundo são, provavelmente, as coisas pequenas e não as grandes como as rupturas sísmicas da nossa própria história pessoal ou as epifanias que nos mudam a vida, que nos mantém à tona. Sempre foi um acto delicado de equilíbrio o de lidar ao jantar com os cataclismos do dia. Temos, por um lado, os atentados, a morte, o medo, os desastres das guerras civis que grassam nos extremos do mundo, os assassinatos, já sem falar no catálogo de desgraças menores como os manifestos para reestruturação da divida publica e as bancarrotas pessoais ou colectivas, enquanto, por outro lado, há a irritação do café a pingar no sofá e do açúcar a entornar-se para cima do tapete da sala, transformando o terrorismo em novelas palpitantes e o açúcar entornado num drama absorvente, esperando assim que o mundo nos possa parecer menos fora dos eixos. Mas não está fácil. Isto está feio. Muito feio.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Deixem o Éder ir de férias descansado.

Discordo em absoluto desta imortalidade que se quer, à força, dar às coisas e às pessoas em todas as suas formas. O fim é requisito de qualquer existência. Da nossa existência, que é fugaz por definição e por necessidade. As coisas que realmente valem a pena terminam. A sua finitude é condição fundamental da sua importância e... da sua beleza.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Áurea

©René Maltête

Faz algum tempo que aqueles encontros fugazes não satisfazem nenhum dos dois. Em cima, o outro, pairando.

terça-feira, 12 de julho de 2016

Enquanto dormias.

A luz traçava linhas descontínuas no teu corpo. As minhas mãos, acariciando-te, desenhavam palavras que possivelmente nunca te direi.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Je suis Portugal.

Estive por lá em dois jogos e bem vi, bem o senti de perto. Aquilo é a mesma virgem, a mesma fé, a mesma música, o mesmo calão, as mesmas alegrias, as mesmas tristezas. Quase a terra. Bem se sabe que cada país tem uma razão de ser -- a França tem uma fortíssima razão de ser --, há-os amáveis e caseiros, frios e calculistas, divertidos e irresponsáveis. Em todos eles se vendem planos de protecção para enfrentar as catástrofes da vida ou da própria natureza, mas nunca protecções contra a nostalgia que se instala em homens, mulheres e crianças aos quais, mesmo depois disto, restará o consolo de reinventar a pátria, noite após noite, num misero prato de bacalhau comida. Ninguém mais do que eles merece esta alegria incomensurável.

sábado, 9 de julho de 2016

Movimento "Queremos ouvir os bloggers a declamar poesia".

Respondendo com atraso, como de resto é apanágio cá da casa, ao magnífico movimento criado por Dom Pipoco Mais Salgado.


A tua vida é a tua vida
Não a deixes ser dividida em submissão fria.
Está atento
Há outros caminhos,
Há uma luz algures.
Pode não ser muita luz mas
vence a escuridão.
Está atento.
Os deuses oferecer-te-ão hipóteses.
Conhece-as.
Agarra-as.
Não podes vencer a morte mas
podes vencer a morte em vida, às vezes.
E quanto mais aprendes a fazê-lo,
mais luz haverá.
A tua vida é a tua vida.
Memoriza-o enquanto a tens.
És magnífico.
Os deuses esperam por se deliciarem
em ti.

__ Charles Bukowski - The Laughing Heart