quinta-feira, 13 de outubro de 2016

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Persianas.

As pessoas adormecem boquiabertas. Gosto de assistir impávido a esse momento de agonia em que toda a gente se retorce e evoca. Evoca o passado, vão-se fechando as janelinhas, umas atrás das outras, a escuridão entra-lhes pela pele, uma tinta espessa sela-lhes a vista, e ali fica a sua vida congelada à espera do dia seguinte. Depois deixo-me ali, silencioso, a mitigar sobre o seu despertar. Certamente uns dias levantam-se do abrigo atormentados por visões e espíritos, outros deslumbrados por uma música interior. A vida parece ser isto. Adormecer, despertar. Despertar, adormecer...

Ao cuidado dos Senhores da Academia.


Deixem-se lá de geopolítiquices e outras coisas que tal, está bem?

O Homem que contempla

©Chiahru Shiota

Vejo que as tempestades vêm aí
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,
batem nas minhas janelas assustadas
e ouço as distâncias dizerem coisas...

__R.M. Rilke, "O Livro das Imagens"

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Resolução 66/170, da Assembleia Geral das Nações Unidas

Reparei que olhava bem de frente, que não abanava as nádegas, que era uma rapariga de poucas curvas, aparentemente pouco sexy, mas com um sorriso, um sorriso que escancarava o mundo, e que a acendia toda e a deixava a transbordar sabe-se lá de quê!

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Isósceles

Estou aqui às voltas, como de resto a maior parte das pessoas, no espaço entre a vida a dois para sempre e a libertinagem, vou passando algum tempo a pesar opções. Por acaso até me apetecia falar em triângulos, mas normalmente as pessoas ficam todas eriçadas quando se lhes fala em triângulos - pensam automaticamente em traição, rivalidade, vencedores com sorrisinhos de satisfação e vencidos amargurados de testa enrugada - mas como não tenho a certeza de dispor de um vocabulário suficientemente rico em nuances para discutir triângulos neste momento, aguardo então por um ambiente mais distendido.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Vizinhança(s).

Já o do lado esquerdo, pensa retirar-se do amor como quem se despede do palco. Cansado de representar sempre o mesmo papel. Apenas o cenário muda. Sempre o mesmo papel: terno e inocente no prólogo, mortífero e mortificado quando o pano cai. Uma autêntica tragédia redigida por um autor desconhecido e cujos textos recita como um aluno de conservatório, aplicado e esforçado.

(Agora que o sol baixou, que sensual, que caprichoso, que magnifico é o efeito da sombra da sebe sobre o relvado: abraça, na sua forma sinuosa, os meus melhores sonhos, os meus desejos impossíveis. Só gostava que vissem. Estou tão constipado!)

Vizinhança.

Ela já não é nova, mas foi-o. Ele, nasceu velho. Nunca está contente. Nunca está aborrecido. É um homem alto, seco, louro. Ela é pálida e sem viço.

(Eu sou o vizinho engripado que, retido em casa, veio ao jardim apanhar um pouco de ar, mas que já volta para dentro.)

Chã de folha de laranjeira, rum, Borges, a voz desgraçada de Shane MacGowan, pingo no nariz e... uma insónia demorada.


terça-feira, 4 de outubro de 2016

Duplo mortal invertido com saída à retaguarda.

Nada em redor, a não ser o ar na plenitude do seu movimento e um reconforto absoluto. Os pensamentos flutuam lentos e retorcem-se grotescamente como uma mosca à procura de uma janela aberta. O mundo apresenta-se repleto de telhados e pontes que oferecem essa garantia. Podia simplesmente inclinar o corpo para a frente, suportar o minuto difícil da queda. Mas, e depois? inquiriu-se.
Um dia vê-se e não se sente, outro sente-se sem se ver, eis a eterna condição. Às vezes continua-se a ser já sem que se exista.

sábado, 1 de outubro de 2016

Chacota.

Eu se fosse americano estaria agora numa profunda reflexão do tipo: nós que fomos os primeiros a ir à lua, nós que inventamos a Internet, nós que mostramos ao mundo a bomba atómica, nós que descobrirmos a coca-cola, levamos à mesa os hambúrgueres, nós que preparamos o melhor atleta olímpico de sempre, nós que dominamos e marcamos a cadência do universo, não podemos continuar a ser gozados até Novembro. Mas como sou português, calo-me bem calado

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Fim de Setembro.

Apertámo-nos de novo um contra o outro, desejávamos engolir-nos. Estávamos despojados de tudo; da família, do mundo, do tempo, da claridade. Eu queria que ela, apertada contra o meu peito, aí penetrasse. Ela, por si, abafou os ombros na curva do meu braço, colocou a minha outra mão no rego entre os seus seios e disse: o amor é uma invenção esgotante. E assim foi.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Oxímetro.

Este mundo está muito previsível. Situações tão repetitivas. As pessoas vão, vêm, entram, saem, as portas batem, os amantes saltam dos armários.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Bolsa de valores.

Hoje, as pessoas encaixam com extrema facilidade -  com um certo ânimo até -  que a vida humana é algo sempre sem sentido e que acaba sempre mal, e que por isso temos de estar em paz com ela. Regular o chip para valores de alcance intermédio e prosseguir no melhor índice possível. Se os raios de luz são raros, ou apenas uma miragem, pois que se espere tranquilamente que eles surjam. Se a felicidade durável escapa, pois que nos resignemos e aproveitemos os momentos mais felizes. Se a paixão ardente se muda no caleidoscópio para outra coisa mais lenta, mais madura e menos temperamental, que se aceite de boa mente aquecermo-nos ao calor dessa chama mais suave. Mas se o amor, quando tentam prendê-lo nas suas mãos ou simplesmente nos seus corações, se esquiva ao seu enlace como a água por entre os dedos, porque na realidade não há ali ninguém, já não há viv'alma que consiga reconciliar-se com a ideia de amar o que encontra. O amor nunca basta. Deveria bastar. Afinal é só aquilo. É o que se tem. E cada um tem o que tem. Mas não, não há viv'alma. O amor é um papel fraco.

sábado, 24 de setembro de 2016

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Membrana

E depois a transformação do meu olhar não foi assim tão assustadora. Não creio, aliás, no significado dos olhares. Não creio que uma membrana, por mais fina e transparente que seja, possa reflectir o pensamento. Desagrada-me esta ideia (muito feminina) que cola o pensamento à mascara do rosto. É tão fácil manipular o paradoxo. Só uma mente de mulher pode imaginar que o pensamento influencia a carne. Mas é capaz...

Inconjurável.

Que adianta teres decidido esta noite que era tempo de não mais amar? Eliminar, uma a uma, todas as fotos. Apagar cada uma das conversas compartilhadas, palavra por palavra, letra por letra. Encaixotar, um a um, todos os beijos, todos os abraços, todos os sorrisos, lágrimas, caricias e olhares. Fechar tudo na arca funda da melancolia. Selar todas as palavras que não disseste e que ainda tens atravessadas na garganta e deixares-te adormecer... se não tarda vais acordar?

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Recado


(...)
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me...

__ Al Berto, Horto de incêndio - Assírio & Alvim, 1997

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Mortágua

Eles estão por toda a parte. Ocupam tudo. Na televisão, nos jornais, nos debates, nos congressos, nas sessões da assembleia. Nas decisões. De fato e gravata, pavoneiam-se, explicam e refazem o mundo que se obstinam em devastar, em pôr a saque para melhor o explorar. Por vezes, no meio deles, surge uma mulher ali plantada como uma hortênsia e... é isto. Este empenho comum, esta indignação partilhada.