Da vida escolhia sempre o que era palpável, caminhos seguros, corrimões onde se agarrar. Ia sempre direito ao alvo. Trilhava sempre caminhos que passassem longe da ribanceira imaginária de onde alguns - os cabeças-de-vento - se lançavam com a ilusão de aprenderem a voar na vertigem da descida. Preferia sempre ancorar em terra firme. As nuvens não foram feitas para se andar sobre elas. Ria-se dos poetas repentinos, desconfiava dos boémios, dos noctívagos, dos apaixonados. Propunha-se sempre, e que ninguém duvidasse que o conseguisse, a descobrir os truques do mágico: como saiu o coelho da cartola ou a artimanha do ilusionista ao serrar ao meio a voluptuosa assistente. Nunca fraquejava. Só que um dia as picadas do ciume, da mesquinhez e da vingança estrangularam-lhe o gasganete, pagou caro o desprezo pela ficção, viu-se obrigado a fantasiar e não sabia. Só lhe ocorriam cenas de péssima qualidade dramática. Deixou de se bastar a si próprio. Está agarrado ao arbusto no meio do precipício.
quarta-feira, 2 de novembro de 2016
segunda-feira, 31 de outubro de 2016
Bruxas.
Puxou-me para si, depois empurrou-me bruscamente para cima da cama larga, deitou-me ao atravessado sobre o edredão, quis levantar-me, apertar-me nos seus braços, fazer-me sair de um mundo onde não tinha vivido para me arremessar para um mundo onde não vivia ainda; os seus lábios entreabriram os meus, conspurcaram os meus dentes, que tinha apertado, a língua demasiado carnuda assustou-me, o sexo, estranho, não se moveu - esperava ausente e recolhido. Os seus lábios passearam sobre os meus lábios: umas pétalas que me varriam de lés-a-lés. O meu coração batia demasiado alto e eu queria escutar aquela doçura, aquele adejar novo. Beija-me, pensava eu. Ela traçou um circulo à volta dos meus lábios, rodeou a agitação, colocou um beijo fresco em cada canto, largou duas notas excitantes, regressou, hibernou. Os meus olhos estavam redondos de espanto debaixo das minhas pálpebras, o ruído das ondas nas rochas era vasto demais enquanto ela continuava: descia nó após nó, por uma noite para além da noite até largar um travo de mel na minha boca que me fez saber, então, que tinha estado privado dela antes de a conhecer. Pão por Deus.
Poliprion Americanus
Dostoiévski deveria ter isto em mente quando definiu o homem como uma criatura que se habitua às coisas.
Ressonâncias.
Às vezes a vida não lhes dá aquilo que desejam, e esperam. Esperam pacientemente, inventam desculpas para continuar à espera, e inventam esperanças com que se alimentam. E o tempo passa e passa, e querem que o dia de hoje não dê lugar ao dia de amanhã, que não seja a continuação do dia de ontem. Às vezes, têm a perfeita noção de que os deuses vão permanecer inactivos. Às vezes, ficam ali a tentar ser já sem que o tempo exista. A aprender que a expectativa é o presente do futuro e que a salvação, às vezes, vem em comboios muito atrasados. Às vezes, acontece...
sábado, 29 de outubro de 2016
Já em 1881 Machado de Assis ensaiava sobre a polémica problemática do exercício da parentalidade e o consequente processo de subjectivação da criança.
«Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semi-demência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.»
Machado de Assis in Memórias póstumas de Brás Cubas
Machado de Assis in Memórias póstumas de Brás Cubas
quarta-feira, 26 de outubro de 2016
Indiferença
Não sei como definir isto. Se é uma sensação ou um sentimento. Será possível que a ausência de sentimento seja um sentimento em si? Seja como for é um estado de ânimo que atordoa. A sua presença pressupõe a falta de tudo. Abre um vazio. Além de estranho pelo seu significado, é estranho pela sua natureza destrutiva. Indiferença! Que puta de sentimento sensação esta.
terça-feira, 25 de outubro de 2016
Russos.
Fiodor Dostoievsky - «O eterno marido»
Uma das coisas que se aprende com a leitura dos russos é que não há necessidade de nevoeiros e símbolos: qualquer realidade, quando é bem descrita, produz ela própria os símbolos e, com efeito, qualquer personagem ou objecto numa situação determinada, pode ser um símbolo.
segunda-feira, 24 de outubro de 2016
Fósforo
O amor é algo para ser merecido. O conhecimento íntimo é que estraga tudo. Entra-se primeiro naquela componente de amizade. Depois, da usurpação da identidade à luta pela exclusividade absoluta é um fósforo. Mas não é só no amor, no trabalho também.
(Fui comprar umas Caterpillar Kitson Safety. Que lindas são!)
(Fui comprar umas Caterpillar Kitson Safety. Que lindas são!)
quinta-feira, 20 de outubro de 2016
Sem abrigo.
Decidir, decidir, decidir. A vida não é mais que isso. E se não soubermos escolher, os factos escolhem-nos a nós. Sem uma palavra, sem uma queixa, só com o silêncio. É uma coisa horrível, perguntarmo-nos para que lado vamos dormir: é como estar expostos ao céu escuro e profundo, nus e indefesos por dentro, sem abrigo possível. Uma emoção negra. Uma unhada na alma.
quarta-feira, 19 de outubro de 2016
Do debate desta noite.
(Amanhã terei tempo para horrores. Hoje, não.)
terça-feira, 18 de outubro de 2016
Um outro ícone da cultura americana e mundial.
De joelhos, num gesto brusco que não deixa margem para protestos, os jeans puxados para baixo a prender as pernas e aquela sensação de estar preso, apenas esbracejar, contorcer-se e proferir um chorrilho de palavras vindas directamente das entranhas, sem passarem primeiro pelo cérebro, sem qualquer filtro. "Queres mesmo que eu pare?» O polegar que desliza ao de leve pelas partes molhadas onde a língua já estivera. Um longo arquear de costas a catapultar para a frente um «não» absolutamente rotundo.
segunda-feira, 17 de outubro de 2016
Em três dias...
...criei o esquecimento, mas também a recordação: um imenso território branco. Deve ser essa a cor da indiferença.
E então, já se decidiu se aquilo do Dylan é ou não literatura? A montanha já pariu o rato do imposto sobre os imóveis caros? Em que níveis estão o suspense e a vibração no caso do maluco de Aguiar da Beira?
E então, já se decidiu se aquilo do Dylan é ou não literatura? A montanha já pariu o rato do imposto sobre os imóveis caros? Em que níveis estão o suspense e a vibração no caso do maluco de Aguiar da Beira?
quinta-feira, 13 de outubro de 2016
Disgeusia.
Nos dias que correm, a gente da Rede gosta muito de travar batalhas -- e, melhor, de as ganhar -- sem sair do sofá, do computador ou do telemóvel inteligente. Barafusta, reclama, exulta, critica irónica e convictamente. Até regozija. Mas depois não consegue ler, ouvir, apreciar sem vertigem, sentir algum pasmo ou assomo. Estão, por assim dizer, moribundos, os seus olhos e ouvidos estão apagados. Mas a boca não. Questiono-me sempre absurdamente: que gosto lhes ficará na língua? Enxofre? Só se for.
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O grande Dylan lá ganhou o Nobel, não foi? Coitado, deve ter as orelhas arder.
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O grande Dylan lá ganhou o Nobel, não foi? Coitado, deve ter as orelhas arder.
quarta-feira, 12 de outubro de 2016
Persianas.
As pessoas adormecem boquiabertas. Gosto de assistir impávido a esse momento de agonia em que toda a gente se retorce e evoca. Evoca o passado, vão-se fechando as janelinhas, umas atrás das outras, a escuridão entra-lhes pela pele, uma tinta espessa sela-lhes a vista, e ali fica a sua vida congelada à espera do dia seguinte. Depois deixo-me ali, silencioso, a mitigar sobre o seu despertar. Certamente uns dias levantam-se do abrigo atormentados por visões e espíritos, outros deslumbrados por uma música interior. A vida parece ser isto. Adormecer, despertar. Despertar, adormecer...
O Homem que contempla
©Chiahru Shiota
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,
batem nas minhas janelas assustadas
e ouço as distâncias dizerem coisas...
__R.M. Rilke, "O Livro das Imagens"
terça-feira, 11 de outubro de 2016
Resolução 66/170, da Assembleia Geral das Nações Unidas
Reparei que olhava bem de frente, que não abanava as nádegas, que era uma rapariga de poucas curvas, aparentemente pouco sexy, mas com um sorriso, um sorriso que escancarava o mundo, e que a acendia toda e a deixava a transbordar sabe-se lá de quê!
segunda-feira, 10 de outubro de 2016
Isósceles
Estou aqui às voltas, como de resto a maior parte das pessoas, no espaço entre a vida a dois para sempre e a libertinagem, vou passando algum tempo a pesar opções. Por acaso até me apetecia falar em triângulos, mas normalmente as pessoas ficam todas eriçadas quando se lhes fala em triângulos - pensam automaticamente em traição, rivalidade, vencedores com sorrisinhos de satisfação e vencidos amargurados de testa enrugada - mas como não tenho a certeza de dispor de um vocabulário suficientemente rico em nuances para discutir triângulos neste momento, aguardo então por um ambiente mais distendido.
sexta-feira, 7 de outubro de 2016
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