Em dias como o de hoje em que me permito regressar bem mais cedo do que é habitual e ainda debaixo da luz do dia, gosto de encontrar a casa vazia, fria, triste, escura. Acender a lareira lentamente e ficar ali a ouvir os primeiros estalidos da lenha a queimar. Depois, quando o lume pega completamente, os pedaços de lenha começam a brilhar e uma chama tremulante, regular, começa a dançar por toda a sala, fico por ali uns momentos de pé, como que a contemplar as chamas bruxuleando na vulnerabilidade da tarde caída. Até que me sento na poltrona de orelhas, alumiado apenas pela incandescência da lenha, acendo um Arturo Fuentes, dou umas baforadas generosas e deixo-me invadir pelas ondas sonoras do sistema nervoso que tentam impelir-me para tempos idos.
Não me permito olhar para trás. Se bem que as atribulações do mundo nos levem a superarmo-nos em lugares onde a vida podia ter dependido de um mero olhar. Os mundos de ontem, incessantemente revisitados, magnificados, auto-embelezam-se para se converterem em sonhos que nunca existiram. Não revitalizo firmamentos de azul celeste. Não recordo amabilidades, sorrisos de boas-vindas, langores outonais. Não recordo beatitudes, tempos de espírito sereno, de calma e de saciedade. Foi tudo difícil, arrancado a ferros. E saber que, noutras plataformas com vidas em cima, o sofrimento quase sempre leva a melhor sobre a felicidade, como a mágoa, como a incerteza das coisas, dos seres, como a falta de amor, como os telefones mudos, como a chuva, as frieiras, como o medo, as tormentas da ausência, a insónia, os suores nocturnos, despertares ancilosados, a ansiedade de uma partida, a ansiedade de um regresso, projecta-me o olhar num único sentido. Sim foi tudo difícil, o mundo de ontem não suscita arrependimento, nem nostalgia, cada instante foi vivido à saída de um desafio. Apenas ficaram uns abraços por dar.
Tantos abraços para dar. Abraços.
Tantos abraços para dar. Abraços.