segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Pintar Fevereiro

Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma segunda-feira. Estamos em Fevereiro. Avançou sozinha, com os braços um pouco afastados do corpo, à espera. Não pelo seu parceiro, que estava a olhar para ela, absorto. Não pelo acordeonista, que ainda não tinha começado a tocar. Não de que outro casal se juntasse à dança. Ela estava à espera de ser arrebatada pelas forças dentro dela. Ela estava à espera de que essas forças viessem à tona. Calmamente, com os tacões ligeiramente no ar, o rosto aberto, as palmas das mãos viradas para cima, como que a ver se estava a chover. Quando sentisse o primeiro pingo, ela ia mexer-se.
Os pingos vieram! Rodou duas vezes sobre si, fazendo mais de vinte passos, e o seu parceiro, com as mãos esborratadas de tinta, juntou-se a ela.
Ela era indelével como o tom do corante. No entanto não era ela que tinha aquela cor, era o seu desejo - uma massa emaranhada de cores em todo o seu esplendor. Como se tivesse sido pintada ontem. Corante, magenta, laranja, vermelho-romã, escarlate, limão, verde-pistácio. Alvitrei, num sfumato fora do meu alcance, esbater a graduação, suavizar a transição de luz. Mas não. Quedei-me pela aplicação uniforme e levíssima da resina de Damar. Todas as cores acabarão por desbotar, mas por agora estão esplendorosas.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Lei de base

A abertura de espírito e da natureza - essas palavras tão gastas - de Marcelo Rebelo de Sousa são tais que me sinto completamente à vontade para, com todas as letras, o mandar lavar o rabo com água de malvas.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Sessão da Meia-Noite


"Nunca deixes de olhar" Florian Henckel von Donnersmarck , 2018

Com a ~CC~

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Megadiversidade

Lá está, os pobres são colectivamente inabarcáveis. Eles não são apenas a maioria do planeta, eles estão por toda a parte e o mais pequeno dos eventos diz-lhes sempre respeito de alguma maneira. Consequentemente, a actividade dos ricos é a construção de muros - muros de betão, vigilância electrónica, barreiras, fronteiras armadas, informações erradas aos media e por último o muro do dinheiro para separar a especulação financeira da produtividade, do sacrifício. 

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Pudicícia

Na prateleira dos velhos encontrei um livro sobre arquitectura de interiores. Estava entre volumes há muito abandonados. Devo tê-lo enfiado ali para tapar o vento norte. Tirei-o de lá agora, porque fui à procura de um outro volume que subitamente precisei. Está em francês e pertence à colecção "Que sais-je". O nome da colecção fez-me sorrir. Nós sabemos tudo o que precisamos saber, mas isso muitas vezes não se põe por palavras. Aquilo que nós não sabemos e nunca vamos saber é o que vai acontecer a seguir.
Ao pegar no livro ele caiu-me ao chão e ficou aberto numa página em branco com um desenho vectorial de uma cama. Por baixo do desenho a legendagem de componentes com letra minha. E subitamente percebo que estou a olhar para um poema de amor! Moteur de increment et excitatrice --> generatrice --> valve de combustion --> turbine.
Um poema de amor! É isto que o recato prolongado faz à imaginação.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Alienígenas

Há uma diferença muito grande entre esperança e espera. De princípio toda a gente acredita que é uma questão de duração, que a esperança é esperar qualquer coisa futura. Estão enganados. A espera pertence ao corpo, enquanto a esperança pertence à alma. A diferença é essa. Elas conversam e consolam-se uma à outra, mas o sonho de cada uma é  bem distinto.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Termómetro


@ Ruth Bernhard
Esta mulher é formosa
como uma flor da montanha,
mas é fria, fria, e é fria
como a margem de neve
onde fria floresce.

_Herberto Helder, Bebedor Nocturno

Alfabetização

Há umas décadas atrás não era grave que as pessoas não soubessem ler ou mesmo escrever porque as pessoas discutiam tudo o que importava, mas hoje muita coisa acontece em silêncio e é preciso que sejam capazes de ler para saberem o que o mundo e as suas pessoas estão a decidir. E é óbvio que o mundo está a decidir que as pessoas estão loucas e obsoletas!

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Siglas

A linguagem limitada deles, enquanto as suas acções reprimem o mundo.

domingo, 20 de janeiro de 2019

Calendário lunar

Há sempre um desespero frustrante em ser-se homem debaixo desta luz. Não fazia ideia de quão baixo se pode ser forçado a descer - que podemos prometer-nos uma coisa tão desnaturada, largar mãos da nossa própria carne num acordo frio com os espíritos da nossa mente. Mesmo quando há um brilho, um brilho fortemente vibrante, um chamamento da abóbada celeste. Nunca teria acreditado que um homem ao passar por um trauma semelhante, podia ter pulmões para uivar desta maneira.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Gafe

O efémero não é o oposto do eterno. O oposto do eterno é o esquecido. Alguns alegam que o esquecido e o eterno são, lá bem no fundo, a mesma coisa. Mas estão enganados.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Montenegro

Desapontado com a sua própria carne e com os da sua carne, para onde é que um homem desiludido se pode ainda voltar para se fortalecer a si próprio senão para o poder, ou pelo menos aproximar-se do poder? Todos sabemos que o poder e o desejo ligam bem um com o outro, sem esforço.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Indigetes

Estava agora aqui a dar ouvidos alternadamente a duas magnificas árias, nas vozes de Anna Netrebko e Cecilia Bartoli e, de facto, nenhuma é perfeita. Mas também a perfeição é sempre algo detestável. Aquilo que nós adoramos, mesmo, são os defeitos. E de todas as falhas e defeitos, aquele que apreciamos em especial é o que nos é dito devagar, quase omitido, quase em silêncio, para que possamos aprecia-lo durante a longa noite. Não é assim?

AZ1732 - Seat 24A e B


Sabes assobiar na perfeição o Sole Mio..."o sole mio sta nfronte a te". Mas quando fechas o bico, as palavras amontoam-se-te na boca como cachos de uvas, não podem sair porque, para lá dessa janela está a vida em bruto, a vida que nunca viveste e que intuis maravilhosa, com pássaros e árvores que roçam as nuvens, com rios que se arrastam espumosos, com ruas de pedras inundadas de sol, com gente que se passeia ao vento, por isso fechas as pálpebras, por isso suspiras, pelas mulheres que lá em baixo voltam das suas vidas, formosas e apertadas, com a pele bruta mas luzidia, e ficas com os sentidos a trabalhar rente ao chão, selvagens e ferozes e gostarias de descer e apalpa-las, toca-las com as tuas mãos impolutas.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Ai Casoni



Um homem deita-se na cama de um quarto destes e o tecto, em vez de estar por cima dele, vem pôr-se ao seu lado, adapta-se ao seu corpo, deita-se na sua tarimba. Uma das coisas bizarras que um homem pode oferecer a uma mulher, e que lhe agradaria sobremaneira, é um telhado curvo.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Anjos da guarda

Estes homens e estas mulheres, mensageiros de outros homens e de outras mulheres, falam e comunicam, nomeiam as estrelas e as figuras do céu, dizem aos outros homens e às outras mulheres, amamos-vos e ensinar-vos-emos a viver ensinando-vos como curar as maleitas, escutando e transcrevendo o que dizem os vossos gritos e as vossas falas. Ensinar-vos-emos a tornar-vos amigos do mundo para não serdes estrangeiros nele, a sonhá-lo, a sulcá-lo, a usá-lo. Estes homens e estas mulheres derramam a palavra, como um pólen abandonado ao vento, para transmitirem as histórias apreendidas com o refluxo do mar e com o fluxo da névoa, as histórias e lendas do mundo e da vida quando a noite distribui por cada um a sua solidão, o medo e o susto, e redobra o sentimento que todos conhecem - a inquietude.
Estes homens e estas mulheres são uns anjos. Uns anjos da guarda. Com o consentimento dos céus.

Resolução de ano novo

Deixar as portas escancaradas.
Pois nem todos perceberam que, quando fechadas, era uma questão de bater mais forte, chamar mais alto.

sábado, 29 de dezembro de 2018

Balanço do ano civil

Todas as manhãs, na altura em que acordava, o sono pesava fortemente sobre si, quase como uma força física a prende-lo à cama, mas teve de libertar-se dele como de um atacante, e arrastar-se até à casa de banho. A feiura dos dias manifestou-se repetidamente através das janelas, uma fealdade opressiva, a exigir de si uma espécie de resignação, e a deixá-lo com uma vaga sensação de culpa. 
Às vezes era sábado. 

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Balanço do ano religioso

Queixou-se todas as noites e sabe Deus que tinha bastantes razões para isso. Nas suas lamentações nocturnas todos os infortúnios se tornaram iguais, por isso conseguiu entrelaçá-los a todos como fios da mesma oração contínua, a pedir a Deus que lhe perdoasse e que tivesse misericórdia, amén.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Epicurismo


Parou de chover, acolhe-me a noite serena. Uma quietude hospitaleira, sem pensamentos, sem sobressaltos, apenas a noite calada e fria. O presente, ou seja, aqui e agora. Um lume que me aquece triunfalmente, e eu, por mim, ávido do livro que aguarda os meus olhos e as minhas silenciosas questiúnculas, não me quero implicado em contrariar minimamente esta efémera felicidade que o mundo vive por estes dias. Nem sequer do mundo que está aqui mesmo ao meu lado.