Pareceu-me ser uma jovem atraente que combinara encontrar-se com o amante e chegara cedo. Mal tocara no aperitivo que pedira. Olhava atenta e firmemente para quem passava diante da sua mesa. Olhava em seu redor calmamente, avaliando o que via, mas sem o esforço óbvio de chamar a atenção. Era discreta e contida. Estava à espera. Eu também estava à espera. Cumprimentou-me com cordialidade como se tratasse de um amigo, mas raparei que ficou agitada. A sua voz era mais arrebatadora do que o seu sorriso: tinha bom timbre, era ligeiramente grave e um pouco rouca. Era a voz de uma mulher que se sente feliz por estar viva, que se entrega aos desejos, que é descuidada e modesta e que fará tudo para preservar o fragmento de liberdade que possui. Era a voz de uma mulher que dá, que consome: apelava mais ao diagrama que ao coração. O seu corpo era pesado, terreno. Parecia um Renoir. Mas os sons que lhe saiam da garganta eram como notas cristalinas de um violino.
terça-feira, 9 de novembro de 2021
quinta-feira, 4 de novembro de 2021
Gambito de Rei
segunda-feira, 1 de novembro de 2021
Fiéis defuntos
quarta-feira, 27 de outubro de 2021
terça-feira, 26 de outubro de 2021
Pitagorismo
sexta-feira, 22 de outubro de 2021
Quem quer casar com o agricultor
terça-feira, 19 de outubro de 2021
Pina
segunda-feira, 18 de outubro de 2021
Povoléu
É lamentável que hoje o Povoléu ainda misture dois sentimentos tão diversos: o ressentimento, a insatisfação e a névoa que toda a infância convoca. É lamentável, como o é que o erro se tenha perpetuado. O que se passou a seguir, ou seja hoje, não podia ter corrido bem porque estava construído sobre alicerces muito frágeis. Volvidos cinquenta anos, democraticamente, agora mais do que nunca, o Povoléu reduz-se a uma espécie de massa acrítica, destinada unicamente a regular a cotação do petróleo, fazer a vénia e desembolsar todos os prejuízos colaterais.
A unanimidade da derrota previamente anunciada confirma-se a cada dia que passa.
quarta-feira, 13 de outubro de 2021
Outubro
quinta-feira, 7 de outubro de 2021
Squid Game
quarta-feira, 6 de outubro de 2021
Olá, bom dia
Como estão? Cansadinhos do fim-de-semana prolongado, não é? Foi muito caso Rendeiro, muito Pandora Papers, muita pedofilia de sotaina, muito Globos de ouro, pouco Benfica, pouquíssima rede. Pois eu, apesar de tal como tantas outras pessoas que vivem este extraordinário momento da história da humanidade, não tenho, de forma alguma, a certeza do que está correcto e do que está errado. Por isso, se aqui e acolá vos parecer um pouco lento a compreender as dimensões politicas, tecnológicas, morais e sociais do que se está a passar, receio ter de vos pedir que tenham paciência comigo. Peço desculpa. É uma idade cada vez mais difícil.
sábado, 2 de outubro de 2021
Noite da libertação
Depois de lutarmos toda a noite, as sombras, escravas dos nossos corpos, fingem-se hostis. A manhã chegou depressa. O vento sopra em rajadas, a chuva bate nos pavimentos que o farol ilumina intermitentemente, o mar está agitado, parece reclamar cadáveres. Conservamo-nos no calor artificial da casa, na luz amarela, entre paredes que nos protegem, na intimidade reencontrada, reconquistada. Olho-me no reflexo da vidraça da janela. Tenho a fadiga estampada no rosto, mas é uma fadiga serena, confiante, uma prostração pacífica. Deixo-me tombar sobre o colchão ainda quente. Observo os sinais dos seus ombros. Sei que já nada mudará de ora em diante.
Partiremos no primeiro ferry.
segunda-feira, 27 de setembro de 2021
Sermão aos peixes
Vou tentar fazer chegar esta missiva aos vossos olhos e peço que a leiam. Mas não alimento qualquer esperança de que estas palavras penetrem nos vossos corações. Sei que desperdiço a minha tinta e o meu tempo.