quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Ablepsia

Ao olhar em redor, compreendo até que ponto pode um homem interpretar em certas ocasiões os sentimentos colectivos. Por uma vez na vida, os políticos querem dar-se ao luxo de terem um preso seu, um preso para mostrar à justiça.
A mim já não me interessa a politica. De modo geral, começo a alhear-me desta liberdade de gritos insensatos, de favores pagos, de indolências trágicas, de suficiências grotescas. Embora não deixe de me surpreender e magoar este mundo que me é dado a ver ultimamente e que os meus olhos envelhecidos quase não reconhecem.
De tudo o que tive de fazer hoje, o mais fácil foi convencer-me das razões que justificam estes tempos. Aceito-as sem grandes objecções. Acho que o faço porque não me sinto muito à vontade no papel de homem que se vê obrigado a cumprir a sua cegueira.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Ele aí está...

Motivando e estimulando o funcionamento zeloso de uma corte de indivíduos dedicados à cegueira da oportunidade. Ele aí está. Eles aí estão. Suspensos do olho frio e do sorriso breve daquele homem que durante trinta anos nunca se enganara e raramente tivera dúvidas e que sempre convocara Deus como sua testemunha abonatória. 

Valha-nos o Senhor dos Santos Passos

sábado, 15 de outubro de 2022

Café Central

É engraçado, a partir da esplanada, observar os homens do café. À primeira vista, parece que a liberdade é passar o dia no café. Olhando com mais atenção, os homens do café parecem presos, amarrados às cadeiras onde se sentam e às mesas diante das quais bebem ou comem ou falam. Apesar de ser ainda relativamente cedo, é evidente que não falta quem beba aguardente a esta hora. Os que o fazem tão cedo bebem-na em chávenas de café, de forma que tudo se faz de acordo com as mais severas exigências da moralidade pública. Contudo, a maioria dos clientes bebe café em chávenas pequenas que fumegam ao longe, no nevoeiro, como chaminés de barcos de brincar.

As horas passam depressa nos cafés. Porém, a fisionomia deste estabelecimento não muda com a passagem das horas. Também não muda o barulho, que é sempre a mesma sucessão de sons sincronizados no volume da estridência popular. Não fosse porque, indubitavelmente, alguns homens se levantam e vão embora, podia dizer-se que a humanidade incrustada no café é apenas uma, porque é sempre a mesma.

No café os homens olham para a televisão, olham para os tanques, olham para o carros de assalto, olham para a guerra. Não há duvida que aquele aparelho de opressão lhes diz muito. Voltam a olhar para a televisão, escrevem algumas palavras no telemóvel, levantam-se e vão telefonar, regressam aos seus lugares. Continuam a beber café, numa tentativa de darem aos seus nervos o estimulo que não obtêm pelo simples facto de parecerem homens livres.

As mulheres, parece que não foram admitidas neste antro de ócio. A falta de qualquer manifestação de ternura feminina dá ao café um carácter acertadamente misógino. Para além disso torna o estabelecimento ainda mais sombrio. As mulheres passam na rua sem olharem para o café. De imediato um horizonte de pescoços ávidos, quais pescoços de bonecos ventríloquos, estica-se em direcção à rua e começa a farejar no ar a essência efémera do perfume que passa, abrindo espaço, entre o peito e as costas, para o próximo café.

Da esplanada, os homens do café parecem muito tristes. Vivem de pequenos excessos de preguiça e de ilusão. Murmuram e falam de coisas que não sabem, como a guerra e a politica. Subjugam e dominam as mulheres que não têm. Quando não estão a caluniar, gritam e queixam-se dos impostos. Embalsamados no cheiro do café, estas múmias da liberdade dão uma ideia muito pobre da liberdade. De vez em quando levantam-se e compram uma raspadinha. Oferecem aos seus olhos semicerrados uma visão da esperança numerada. Num instante raspam a cautela da sorte grande, a fatia de ilusão, como se estivessem a subscrever um seguro de vida contra o trabalho. 
Contemplo também essa caricatura cómica do génio grego: alguns homens do café lêem jornais e dão a essa leitura a importância dos grandes eventos culturais. Ao lerem o jornal, sentem-se cidadãos de Atenas. Sentem-se felizes por se sentirem atenienses lendo jornais no café.

Agora, enquanto tomo o café já frio, há que reconhecer que de vez em quando, um homem passa ao largo da porta do café. No entanto, esse homem excepcional tem ar de quem vem de outro café.

Na esplanada do Café Central uma chávena de café frio, num dia nublado, custa um euro e dez cêntimos. A cusquice paga-se caro.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Sob(re) a sotaina

Ler isto, isto e isto, faz-me pensar que uma das características universais da injustiça é que todos os homens a reconhecem, apesar de todos contribuírem incessantemente para ela.

Que escabrosidade!

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Altíssimo

Por ora dás por ti a assobiar para o lado. Mas quando fechas o bico, as palavras amontoam-se-te na boca como cachos de uvas, não podem sair porque, para lá do alto dessa tua janela está a vida em bruto, a vida que nunca viveste e que intuis maravilhosa, com pássaros e árvores que roçam as nuvens, com rios que se arrastam espumosos, com ruas de pedras inundadas de sol, com gente que se passeia ao vento, por isso fechas as pálpebras, por isso suspiras pelos inocentes que lá em baixo vivem as suas vidas, formosos e apertados, com a pele bruta mas luzidia, e ficas com os sentidos a trabalhar rente ao chão, selvagens e ferozes, e anseias por descer e acolhe-los na sotaina, toca-los com as tuas mãos impolutas.

sábado, 1 de outubro de 2022

Anexação

Não pude resistir àqueles olhos tristes, de olhar sereno, trespassando os meus. Sentir a sua voz de veludo acariciar-me por dentro e não saber o que dizer. Somente inspirar o suave perfume que exalava do seu corpo e inundava o ar ainda quente deste Outono tímido. Trouxe esse aroma gravado na memória e incrustado nas entranhas. Só receio não conseguir conservar o sabor daqueles lábios sedentos.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Óh Partigianos!

A civilização destes tempos, embora se refira constantemente a ideais de progresso, à razão e à liberdade, embora proclame que é iluminada pelo sublime objectivo de se libertar, sustentar e elevar-se ao seu expoente máximo, no fundo escraviza-se, engana-se, instiga-se e algema-se. Apesar do incrível desenvolvimento do pensamento, da evolução da ciência, do avanço da comunicação, da instrução e da melhoria das condições de vida, o homem parece não se sentir feliz nestas novas condições. Impede-o a alienação, o complexo de inferioridade, a frustração, a religião, o fanatismo e os banhos que toma de politica oca. Está embasbacado. É artificial. Profundamente inautêntico. Iludido, corre atrás do vento seja em Roma, em Kiev, em Moscovo, ou em qualquer outro lugar do universo. O Mundo está abafado. Precisa de uma purga. Rápido.

Oh partigianos!

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Eixo do mal

Esta época não é propícia ao entendimento dos mais rudimentares valores da humanidade nem à vital aceitação das soberanias e das liberdades individuais. É uma época que manifesta repetidas vezes que, em certas ocasiões, um homem que ataca outro homem é um tirano, e, em outras, é um cruzado - embora nenhuma guerra seja santa ou cavalheiresca.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Viúva

Sentada a observar o rio, os últimos raios do sol a tocarem no estuário e a estenderem-se docemente pelo grande canal de água até à foz; rabelos vogam, barbos pululam acima da linha de espuma deixada pela popa dos barcos, uma harmonia discreta e singela envolve a mulher solitária e grave. Talvez devesse tomar um destino novo e procurar - o quê? Enfraquecem-lhe os ímpetos e uma grande tristeza nasce-lhe no olhar quando, depois, se lhe sobrepõe a imagem dele, um homem que se matara a si mesmo continuando, no entanto, vivo. 

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Sessão da Meia-Noite


"Une femme est une femme"  - Jean-Luc Godard, 1961

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

O pássaro

Salto da cama e quando mal acabo de abrir os olhos e de levantar a persiana da janela, noto a azafama assídua e conhecida. Olho para a rua, que à força de tantas manhãs e de tantas vezes abrir a janela acabou por perder o seu brilho original.  Mas ali está o pássaro.
A letargia estupida do encerramento nocturno quebra-se momentaneamente com a perspectiva luminosa do milagre. O pássaro representa para mim a porta da poesia, a promessa da liberdade, o elogio do sonho, o escape, enfim, para tudo aquilo que o encerramento na noite me roubou.
Isto repete-se todas as manhãs. Acordo e, como se o acto de abandonar o sono, abrir as janelas, comunicasse com o pássaro por meio de uma antena invisível e o pássaro começa a voar automaticamente.
Durante algum tempo, não consegui parar de pensar que por trás de todo o homem há sempre um pássaro que salta e que voa. E de facto na zoologia social eu e o pássaro somos muito parecidos, temos um vinculo oculto, somos da raça dos que saem de manhã e voltam à noite.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Liberdade


Estamos aqui três perfeitos desconhecidos a olhar este final de tarde magnifico de fim de Agosto. Cada um de nós formou um conceito próprio de liberdade, feito à medida das suas inclinações ou das suas conveniências. Cada um bebe com lábios diferentes a tisana da liberdade. Para ela, a vagabunda que pinta quadros, a liberdade é um pincel em forma de telemóvel. Para ele, o aventureiro de mochila às costas que colecciona bilhetes postais, a liberdade reduz-se a um passaporte internacional. Para mim, que sou um deslumbrado, mas que, sobretudo, sou um fugitivo, a liberdade é outra coisa.
Para cada homem ou para cada mulher, a liberdade é algo diferente. Caminho, escolha, acaso, sonho. Fugindo das servidões do dia-a-dia, todo o homem procura a liberdade, persegue-a, alcança-a, compreende-a, usufrui dela à sua maneira. 
O drama começa quando há duas pessoas, porque duas pessoas não conseguem pôr-se de acordo para falar disso. A liberdade não é nada, porque a liberdade é tudo. A liberdade é um enigma ao alcance dos olhos.

sábado, 27 de agosto de 2022

Nódoas na consciência


No princípio, a saudade é apenas um som delirante: um som esquecido pelo nosso coração. Ao tocar no corpo e examinar a alma, encontramos apenas as protuberâncias remanescentes da distância. A distância despojou-nos de tudo, menos de uma convicção: ainda posso parecer-me com um homem livre. Depois, com o passar do tempo, a saudade toma a forma de uma brisa cuja caricia nos vai arrebatando. Até que um dia a saudade explode e deslumbra-nos, como se entre as nossas mãos acabasse de cair uma bola de sol. Os nossos olhos, angustiados de cobardia e escuridão, ficam por um instante cegos de saudade. Então, a saudade, ar e luz dos fugitivos começa a palpitar no nosso sangue. A saudade está connosco e por isso fugimos cada vez para mais perto. Não temos pernas para mais.

terça-feira, 23 de agosto de 2022

11:17



Onze horas e dezassete minutos da manhã. Trinta e quatro graus centígrados. Acordei no inferno. Primeiro tentei escapar ao fogo na cama, depois ao fogo no chão e depois ao fogo no ar. Até correr para a varanda não percebi: o fogo não sou só eu, o fogo não sou só eu. Hoje, mesmo fugindo de mim próprio, não sei se conseguirei escapar a esta fornalha intrincada. 

sábado, 13 de agosto de 2022

Nubentes

O corpo dela é um cálice, um cibório, um nicho de sombras. O seu vestido branco de seda selvagem dobrada com um acordeão em volta das ancas, o medo agarrado em cada prega do tecido, uma viagem de infinitos desvios. Do pescoço, um fio obliquo cai-lhe sobre o peito. Os lábios pintados de carmesim encobrem a boca seca. Debaixo do rímel negro das pestanas, os olhos em fuga.
Carrega todas as sensações correspondentes da infância: o desamparo atormentado, o abandono primitivo, a angustia de se encontrar à completa mercê dos outros.
A sensação de fragilidade é tão forte que se assustou com a aparição à sua direita de um corpo que caminhava a par com ela. Olhou de soslaio o seu perfil e sentiu-se confortada pela sua altura e pelo seu sorriso suave. Também estava vestido de branco, também caminhava para o  cadafalso.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Cinderela

Vejo que não conheces o teu poder. Consomes-te em amor e dádiva e desconheces os milagres que daí resultam. Senti isso a noite passada ao ver-te representar a Cinderela, que eras tu, qualquer que fosse o papel que estavas a representar, que tocaste nesse ponto em que a arte e a vida se fundem e em que apenas se existe. Senti a tua fome e os teus sonhos, os teus desejos ao mesmo tempo que despertavas os meus. Senti que não estavas a representar mas a sonhar; senti que eu - o espectador - podia sair do teatro e, sem transição, passar por artes magicas para outro baile, para outra tempestade, para outro amor, para outro sonho. Diante dos meus olhos eras consumida pelo desejo e pelo sonho da entrega. A chama dos teus olhos, dos teus gestos, eram uma fogueira de fé e dissolução. Tu tens o poder. Representar, em ti, é uma revelação. Aquilo que tantas vezes a alma não consegue exprimir pelo meio do corpo porque o corpo não é suficientemente subtil, tu consegues exprimi-lo. Geralmente o corpo atraiçoa a alma. Tu tens o poder do contágio, de transmitir a emoção por meio dos infinitos cambiantes dos teus movimentos, das variações dos traços da tua boca, das palpitações macias das tuas pestanas. E a tua voz, a tua voz ligada à respiração, a ausência do sopro da sensação, de tal modo que me arrebataste a respiração e me levaste para o reino inspirado do silêncio. Que imenso poder tu tens!

Imagino, lá nessa tua vida de representação, o choque ao perceberes que no final o público continua por transformar. A dor que essa quebra do sonho provocará em ti. 
Deviam levar-te imediatamente para fora do palco, para que não sentisses a mudança de nível do palco para a rua, e da rua para casa, e dali para outra festa, para outro amor, para outra cama, para outra tempestade, para outro par de sapatos dourados.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Sessão da Meia-Noite


"Faca na água" - Roman Polanski, 1962

sábado, 16 de julho de 2022

Benevides d'Almeida


Na esplanada, enquanto me enxovalha o saco do Expresso, Benevides d`Almeida vai-me dizendo que um homem na casa dos cinquenta anos só usa bermudas quando já abdicou de ter sex appeal. 
Fiodor rosnou debaixo da mesa.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Palomar


O Senhor Impontual, nas suas múltiplas peregrinações, foi aprendendo a reconhecer os ecos dos amores e dos desejos maiores. Aprendeu que os grandes amores, em especial se não tiverem perecido de morte natural, nunca morrem completamente e deixam reverberações. Uma vez interrompidos, quebrados artificialmente ou acidentalmente sufocados, eles continuam a existir em fragmentos distintos e infinitos ecos menores.
Uma vaga semelhança física, uma boca quase igual, uma voz levemente parecida, alguma partícula do carácter, de repente, imigra para outra pessoa que se reconhece imediatamente na multidão ou numa festa, pela ressonância erótica que isso desperta.
Os ecos impressionam primeiro através da misteriosa instrumentalização dos sentidos que retêm as sensações tal como os instrumentos retêm um som depois de tocados. O corpo permanece vulnerável a certas repetições muito tempo depois do espirito julgar que procedera a um rompimento claro e final.

Por estes dias de mar ao fundo, o espirito do Senhor Impontual teima em acolher a ideia de que o amor pode perfeitamente ser como as ondas: cada recuo é um novo ponto de partida.
O amor! Que invenção cansativa!

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Insónias em carvão


Sendo esta, por natureza, a época do ano em que há mais emoções e momentos para evocar, concentrados que estão na zona escarpada das recordações, ali onde o fole da memoria se enche com mais frequência e menos vazios há a registar, não era preciso uma brasa destas. Só complica.