terça-feira, 6 de junho de 2023

Quitéria

Acabou de chegar aos cinquenta. Trabalha, paga a sua casa, os seus impostos, vai ao cinema sozinha, faz férias com alguns amigos, passa o Natal com a família. Janta num tabuleiro em frente ao televisor, deita-se, lê um pouco e para adormecer, acaricia-se, tranquila, na sua cama, fecha os olhos e conta a si própria uma história, sempre a mesma, a sua fantasia preferida. Depois dorme como uma criança. 

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Tio Lencastre

É o que vai acontecer contigo, meu rapaz. Os teus pais fizeram-te nascer, fizeram-te crescer, depois a vida encheu-te sucessivamente de desejos, de pesares, de alegrias e de sofrimentos, de cóleras e de perdões, até que te fez ingressar de novo nela. E, no entanto, tu nem és aquela criança, nem aquele estudante, nem aquele profissional, nem aquele esposo, nem aquele novo velho. Tu és aquele que se cumpriu. E, se sabes ver em ti um ramo que baloiça, mal pegado à árvore, hás-de nos teus movimentos gozar uns fogachos de eternidade. E tudo à tua volta se tornará momentaneamente eterno. A eterna frescura da manhã, a eterna escuridão da noite. Depois, o tempo deixará de ser uma ampulheta que vai gastando a areia, e far-te-á lembrar um ceifeiro que ata a gavela.

Parabéns, meu rapaz. Vai lá.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Maria Luísa

Maria Luísa não mente, não engana. É o que é. Pode parecer arrogante, mas é verdadeira. Ganha a vida a aparecer. Transforma facilmente vencimentos muito razoáveis em álcool e más decisões. É depressiva, analítica, estupidamente inteligente e sufoca com o compromisso.
Não é uma mulher normal, nem pretende ser. O seu objectivo é bem mais simples: ser um bocado feliz. Numa tentativa de auto-observação, com uma leve pitada de algofilia, começou no inicio desta semana a consultar um psiquiatra. Dia após dia viu-se forçada a falar sobre o João por quem é apaixonada, sobre o Pedro com quem vai para a cama e sobre o Filipe - o seu apoio emocional. Os três homens que arruinaram a sua vida e a quem é completamente devota.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Albertino

Nunca votou. Era um principio ao qual sempre esperou nunca ter de renunciar. Até agora, resistiu a todas as tentações, a todos os processos de culpabilização, de desestabilização, às pressões, às chantagens, às avalanches de argumentações fundamentadas ou de argúcias falaciosas, agarrando-se ao único cântico do seu modesto breviário, convicto de que, todos sabemos que as eleições são uma cilada para uma pouco invejável congregação. Modestamente esforçou-se, pois, por nunca fazer parte dela. Esta atitude pode parecer um tanto limitada, a certos espíritos subtis, mas a harmonia cristalina desta concisão sempre lhe agradou. Não é este o momento de desenvolver quais os motivos. Digamos simplesmente que, para além da intangibilidade deste intróito, nunca apareceu, ao longo da sua vida, um único candidato em busca de votos a quem confiasse as chaves do seu carro ou de sua casa, em suma, um tipo com quem gostasse de partilhar uns momentos de pesca à linha.

Esta manhã encontrei Albertino no café. No meio de um croissant e um Tutti Frutti, Albertino perguntou-me se já escolhi o molho com que quero ser comido na próxima legislatura.

terça-feira, 9 de maio de 2023

sábado, 6 de maio de 2023

Luzia

Lá em baixo, Luzia caminha para junto da água. Sentou-se sobre a areia quente, com os pés em frente ao mar. Sentiu as ondas a bater contra os tornozelos como um amante que lhe tocava nos dedos com beijos gelados.
Não há sol, mas algumas gaivotas esvoaçam no céu, pequenos pontos de esperança. Luzia sente-se como se estivesse a afastar-se do mundo real e a entrar noutro universo. Um lugar povoado de fantasias. Embora estivesse sentada junto ao mar, podia muito bem estar deitada, completamente nua, numa nuvem branca, espessa. Sentia uma pontinha de medo, porém não o suficiente para querer parar o pensamento. Estava a ficar igual aos demais: encontrara o seu outro eu.
Cá em cima, na esplanada, os efeitos do gin-tónico. A mente a dispersar-se em ramificações eufóricas de fim de tarde.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Menandros

Repete-se até à náusea que o mundo de hoje é um teatro. E isto é assim não porque a natureza tenha per si alguma semelhança com os cenários dos teatros, nem com os anfiteatros helénicos, nem com os múltiplos cenários suspensos de pano ou papel dos teatros à italiana, nem com a sala negra do velhíssimo teatro de vanguarda. São os políticos. Políticos como os nossos, que teimam em fazer das suas vidas quotidianas, dos seus perigosos relacionamentos, das suas insanas prestações sociais e politicas, do seu amor próprio e mesmo da sua solidão, embora a sua profissão não seja a de actor, autênticas peças de teatro. Prestando-se a papeis miseráveis e a representações medíocres como se nessa inevitável ficção, na borda do palco, a cortina nunca se levantasse. Mas levanta, e do outro lado está o publico. Um publico numeroso, um publico frágil, incompreensivelmente silencioso. 

sábado, 29 de abril de 2023

Dança

E quando a violência dos nossos corpos atravessar o canal da linguagem, passar para além das palavras, para além de tudo o que possam dizer as palavras, ocupar-me-ei do teu corpo, centímetro a centímetro, explorá-lo-ei, acariciá-lo-ei, farei jorrar prazer de cada poro da tua pele. Será a grande ocupação da minha vida: dar-te prazer... tratar-te como uma pequena rainha. Apenas ouvirás o roçar do meu corpo contra o teu, as gotículas de suor que rolam na tua pele, a minha boca que as vai sorver, que subirá à tua orelha e repetirá incansavelmente: "diz-me o que queres". Depois, enxaguarei o teu corpo dessa água que corre, dessa sede que jorra entre a tua e a minha pele, essa sede nunca saciada que encontra mil fontes novas em mil recantos escondidos no teu corpo espantado. Por fim deixaremos a beira-mar, os rochedos, a espuma suja das vagas, afogar-nos-emos naquela água salgada, lamber-nos-emos, respirar-nos-emos, ergueremos a cabeça para recuperar o folgo e partiremos para mais longe dançando no desconhecido caminho marítimo dos nossos corpos ...

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Beijo

Entrou e sentou-se ao balcão. Encomendou um Bourbon com 15 anos de idade. O que espera naquele bar sem nome? Cheiro, algo de desconhecido, uma vontade infinita de estranho. O seu desejo da manhã não a deixou. Pelo contrário. Todo o dia a lancinante injunção instilou-lhe urros na pele, os lábios corolas do sexo molharam-se repetidas vezes por um clarão, uma imagem rememorada, monstro enroscado no seu corpo que reclama e exige. Cada veia, cada artéria soletra: fruição, prazer, caricia, pele, vai-e-vem...o sexo que hesita, joga, aflora o clitóris antes de penetrar. Ela pensa penetrar e olha em redor: castiçais, garrafas, copos esguios, o que pode brincar à entrada de um corpo? O ideal, um homem invisível que roçasse e se aproximasse sem ela saber e depois arregaçasse os tecidos e as rendas, tomasse, rasgasse, um homem sem rosto, mudo... e que se sumisse. Acto continuo. Incógnito. Uma sombra.

Pagou a conta e foi-se embora. Avançou sóbria de presente, ancas a ondular sobre o único palco onde se joga o bailado de uma vida. Na rua, a ausência da Primavera, o acaso dos transeuntes. Frágil entre frágeis. Também precisava de um beijo.

terça-feira, 11 de abril de 2023

Caxinas

Três dias depois, a mesma luz de ouro. Três dias em que nada aconteceu a não ser o roer incessante da saudade que aumenta com a luz e com a luz diminui. O sol está fixo sobre a marginal. O paredão está vazio, mas iluminado. Luz de ouro fixa, batida pelo vento. Odor mesclado de iodo e sal, odor ácido e desenterrado das águas. O mar bate forte, sobre o céu limpo, as areias agitam-se, correm, gritam, as gaivotas lutam contra o vento, demoradas no voo. Às vezes o vento acalma-se, as areias sossegam, o mar torna-se chão e o aglomerado contínuo de casas estende ao sol vidas paradas. A brisa continua fresca, a cobrir a praia. A luz vai baixando sobre um céu sem nuvens. A saudade rói de novo.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Disrupção

Esta é uma época estranha, essencialmente trágica, que vamos recusando aceitar. O cataclismo deu-se. Estamos entre as ruinas. Temos de construir pequenos habitats. Alimentar novas esperançazinhas. Cuidar que não sejamos roubados no supermercado. É uma tarefa difícil. Já não há nenhuma estrada suave em direcção ao futuro. Só nos resta rodear os obstáculos, ou passar por cima deles. 
Seja qual for o numero de céus que desabem, temos de viver. Disruptivos. Aguentar até ao próximo Inverno. Mas...e se não chove?

quinta-feira, 30 de março de 2023

quarta-feira, 22 de março de 2023

Miradouro

Através das pálpebras semicerradas vejo indefinidamente o mar ao longe. A cidade ao fundo está invisível, atolada nas suas excreções. No fim do horizonte, por cima do mar, surgem zonas de sombra. O céu encobre-se. Depois começa a chover nas zonas negras. Passado um bocado, por sobre o mar, formou-se um grande tetrágono de luz branca. O tetrágono de luz pluvial desaparece. Outras tempestades rebentam. Por toda a parte. Por cima da minha cabeça surge uma pequena cortina de chuva ensoalhada. Rompendo a cortina, umas aves de cauda bifurcada. Pode ter chegado a Primavera. Mas, quando chegar a casa, tenho de ver se as margaridas já furaram o relvado. 

terça-feira, 21 de março de 2023

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!

Tu és melhor -- muito melhor!
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

sábado, 11 de março de 2023

Observatório

Desde os campos de cultivo às prateleiras dos hipermercados, passando pelos carregadores, os camionistas, os descarregadores e os açambarcadores, o preço dos produtos agrícolas aumentaram cerca de sessenta por cento. Depois de pagarem os impostos, a hipoteca, a contribuição agraria, os manda-chuva, os dízimos e primícias, os camponeses que os cultivam, trabalhando de sol a sol, recebem apenas dezasseis por cento do valor total do produto. O suficiente para, juntamente com o usuário particular, morrerem de fome. Mas sob o império da lei e da graça dos Senhores.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Interpretando Courbet

@Jean-Baptiste Mondino

 

Entrar nesse edifício e passear por esse labirinto de corredores infinitos, desde a cave ao piso mais alto, é passear pela tragédia humana. Às vezes pela comédia divina. Gosto de ir aí. De me perder. De te encontrar.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Palomar

Um homem está parado no areal. O Senhor Impontual caminha, lesto, junto à água lado a lado com o sol poente. Uma mulher está ao cimo, de pé, olhando a praia. O mar está baixo, calmo, a estação indefinida, o tempo lento. A mulher está em cima de um estrado de madeira, ao longo da praia. Veste roupas largas e sombrias. Tem um rosto distinto. Os seus olhos são grandes. Não se mexe: olha o mar, a praia, as poças, as superfícies isoladas de água morta. Depois caminha, afasta-se e volta, torna a partir, a voltar, num caminhar longo, monótono. O Senhor Impontual que já estava a perder-se no horizonte dourado, trava, inverte a marcha, e retorna ao local de partida. O triângulo fecha-se com a mulher de olhos cerrados, sentada contra o muro que separa a praia do fim da cidade. O mar e o céu ocupam o espaço. Ao longe o mar está já oxidado pela luz obscura. E o céu também. O homem, que esteve imóvel durante todo este longo hiato de tempo, inicia a marcha de saída do areal. O triangulo oscila. Desfaz-se. São agora duas pessoas sob o intenso crepúsculo. O dia morre. 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

É curioso, mas é um fenómeno do nosso tempo

Apesar de mais educado e de melhor sociedade, o Senhor Impontual é, à sua maneira, mais provinciano e mais tímido do que aquilo que possa parecer. Sente-se à vontade no seu pequeno "grande mundo", isto é, com a aristocracia da terra, mas tímido e nervoso perante esse outro grande mundo que consiste nas hordas das colonizadas classes média e alta. Para dizer a verdade, o Senhor Impontual tem um pouco de receio da insanidade dessas classes que não pertencem à sua classe. O Senhor Impontual está consciente da sua impossibilidade de defesa, embora possua a defesa do privilégio de ser um provinciano. 
É curioso, mas é um fenómeno do nosso tempo.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Entrolhos

Ultrapassada que está a grande marca que Salazar deixou em Portugal - a mordaça - eis que surge a psique colectiva dos entrolhos. A mentalidade de, com os olhos tapados, criar celeuma, dar tiros no escuro, forçar o avanço da solução de reserva mesmo que esta seja inconsistente ou simplesmente não exista. É difícil fazer avançar um país com este intelecto. Com este vinculo K. Com esta estupidificação maligna.