sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Deixar as portas escancaradas

Pois nem todos percebem que, quando fechadas, é uma questão de bater mais forte, chamar mais alto.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Pintar Dezembro

Já não vinha posar há mais de um ano. Hoje, de repente, apareceu-me do meio do frio. Tenho as mãos e o pés gelados... e a cabeça fugiu-me para parte incerta. 
Como vou eu pintar em pormenor, e com tão pouca luz, aquele corpo maduro completamente despido? Os seus ombros redondos e tonificados? A sua penugem de pêssego? Embriagar-me no leve odor das suas axilas, captar cada um dos sinais que tem nas costas, registar os seus cabelos de um ruivo muito suave bem como aquelas nádegas que são de um branco leitoso? Tomar nota das marcas ali deixadas pelo aperto das minhas mãos, da vermelhidão e da velocidade com que a mesma desaparece? Sentir o peso e a maleabilidade inesperados do seu peito quando se deita de costas, do tom suavemente corado dos seus mamilos e da forma como reagem ao mais leve dos toques? O umbigo delicado? O glorioso contraste entre o branco de porcelana da sua pele e o negro, como tinta permanente, dos pêlos púbicos que não são nem espessos nem finos? Como hei-de guiar as suas pernas, afastando-as, para lhe explorar o interior? A sua maturidade? A cor? O pulsar? Colocar a cabeça entre as suas coxas para ter a noção da sua perfeição, sentindo o calor que daí emana como se saísse de uma fornalha intrincada? 
Como hei-de eu pinta-la, se estou gelado por dentro e por fora? E a memória me fugiu para parte incerta?

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Pilas moles

Os homens estão a matar as mulheres.
Que estranha forma de impotência! 

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Da noite em que eu dormi com a LK*

Perturbado, incerto, inquiridor não cesso de respirar, de tirar proveito de uma presença fulgurante, de um corpo que se move a meu lado, como se ali estivesse o quotidiano de ambos, caminhar juntos nos bastidores das horas perdidas antes de nos enfiarmos nos de uma cidade, debaixo de uma campânula de vidro... debaixo de uma bátega.

Obrigado*.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Breve apostila ao Novembro chuvoso

Corrupção, tráfico de influência, oferta de vantagem. Indiciação. Nenhum arguido acusado. 
Demitiu-se o Primeiro Ministro, cai um governo maioritário, cresce o populismo de extrema-direita, abana-se os pilares da democracia.

Não há previsão de sol para os próximos dias.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Lítio

Se vamos a venerar a memória do desaparecido, ele encontra-se mais presente e terá mais poder do que o vivo. A atenção deve ir mais para aquele que acorda no meio da noite, convencido que ainda tem por cima todas as estrelas do céu, e de repente se sente em viagem. Não há paragem que mitigue a sede. Aquele que desperta, o que procura em primeiro lugar é o inferno. E o inferno... somos nós.

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Aline

Saiu da cama e abriu as cortinas, entreabrindo a janela da sacada. A tempestade de Outono deixou-a gelada, mas embora a pele estivesse arrepiada de frio, gostava de estar nua. Fechou os olhos e sentiu o vento, como uma mão, acaricia-la com vigor, desde a testa, descendo pelas maçãs do rosto e pelo pescoço até à garganta e ao peito. Sentiu os mamilos endurecerem quando a temperatura caiu dentro do quarto e o vento a lambeu entre as pernas.
Depois, abriu os olhos e sentiu muitas saudades de estar em Fortaleza, ao ar livre no meio da natureza, nua sobre a areia quente, sentindo o cheiro salgado do mar a envolve-la. Enquanto caminhava pelo quarto, imaginou-se a andar pelo mar tranquilo. Sentiu o peso da nudez e, ao passar à frente do espelho, viu de relance o rabo. Tinha um belo rabo. Os homens sempre lhe haviam admirado o rabo e ela, era obrigada a reconhecer, tinha muito orgulho nele.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Breaking News

Se por um lado, por mera cegueira ideológica, dá-se total cobertura à decapitação de bebés(!?), violação de crianças e mulheres, raptos de idosos, queimar famílias vivas. 
Do outro defende-se com unhas e dentes, como retaliação, terraplanar e alcatroar a Faixa de Gaza.
Oh iluminados!! 

Hipócrates

Um senhor, um homem vulgar, mais fraco que superdotado, a caminho da meia-idade, acorda cedo, à sua hora do costume. O ruído do despertador irrita-o, senta-se um instante na borda da cama, adverte que não é ninguém, ou quase ninguém; gostava das imagens do sonho interrompido que velozmente se vão apagando da memoria. Quer voltar para a cama. Mas não deve fazê-lo. Lembra-se do dia da semana, da hora. Não é uma estreia. Está há vários anos a representar a mesma personagem, embora, como nas séries de televisão, as cenas vão sofrendo algumas alterações. 
Hoje tem de discutir o relatório que há dias o director lhe entregou. Tentará seguir a corrente. Beija com amor e rotina a sua mulher. Quase mecanicamente, sem entrar na situação, troca umas palavras com as crianças e começa a colocar a máscara: barbeia-se, toma duche esfrega-se energicamente, não veste o roupão - já velho, que lhe ofereceu a esposa e com o qual se sente tão bem - nem as calças de ganga, mas o seu fato completo de empregado de escritório. Os do departamento de design e publicidade podem ir vestidos como lhes der na gana, mas ele não. Toma o pequeno-almoço que considera adequado. Põe os óculos que, de acordo com a moça da óptica, vincam a sua personalidade.
Hoje tem de estar firme para discutir o relatório e, embora com firmeza, alegre para receber o espirituoso director. Se durante esta temporada agir bem, talvez para o próximo ano lhe dêem um papel de executivo. E se tiver algum cuidado com o vestuário, mostrar-se afável e ao mesmo tempo seguro de si próprio, talvez Alice, a nova recepcionista, lhe deixe representar um papel de amante, que são os mais bonitos.
Já pôs a mascara, a pessoa. O duche, as fricções no corpo, as palavras trocadas com os filhos, o café desembaraçaram-no e estimularam-no. Uma vez convertido num perfeito hipócrita, lança-se à rua, ao palco. E a palavra hipócrita não contém aqui nada de pejorativo, uma vez que hipócritas chamavam os gregos aos actores. 

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Despertador

Podia ter sido do género ópera, cançoneta ou peça de jazz, Händel, Piaf ou Mingus. Mas não foi. Foi Fausto. "Como um sonho acordado".
Foi música que me entrou pela cabeça dentro, igual a uma recordação, como um veneno que se instala até suplantar o desassossego e profanar-me o espírito. 
Abram-se as portas do inferno. 

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Palomar


De todo o movimento do Sol na esfera celeste, há um momento que o Senhor Impontual gosta de apreciar com particular delicadeza - que é aquele momento ínfimo em que o Sol diz para a Lua: vem.
O Senhor Impontual gosta de acreditar que um dia a Terra travará de súbito naquele preciso momento e por ali ficará, estática, durante um instante mais alongado. 
Ainda não foi hoje.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Douro

Na encosta, subindo para nascente, onde as nuvens crescem a cada passo, paro pela segunda vez e pela segunda vez lanço um olhar demorado para o vale que, ao fundo, parece de todo abandonado, tão silencioso e imóvel está.
À minha volta a luz acinzentada parece consumir o próprio ar que se respira. Bastou-me olhar para as vinhas que se estendem pela encosta até à margem do rio para sentir, como se fosse um bicho faminto sob a frescura daquele ar, o cheiro acre, saboroso, das videiras banhando-se primeiro do orvalho e depois do sol manso da manhã. Nesta altura já não se percebe se são arbustos vivos, se empedernidos por décadas e décadas de orvalhos, de chuvas, de geadas e de sol. Plantas imóveis, agarradas à terra, parecem esqueletos calcinados à espera de um vento mais forte que as arranque dali.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Questiúncula

Quão intelectual e emocionalmente transviado é preciso uma pessoa ser para ver na novela Rubiales uma degeneração civilizacional que ameaça o pilar essencial da essência humana - que é ímpeto?

sábado, 16 de setembro de 2023

Palomar

 

Nesta manhã de meio de Setembro com céu incerto, o Senhor Impontual veio até ao observatório.
A apreciação unilateral é sempre ruinosa.
A imperfeição completa e a perfeição integral não coabitam o mesmo ponto de mira.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Aposto

Aposto que também tu és uma teimosa e que gostas de escolher o teu caminho, que preferes falhar sendo tu do que acertar sem que o resultado venha de ti, das tuas premências, dos teus anseios, da tua profunda inquietação, da tua loucura também. Aposto.

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Acontece sempre nos primeiros dias de Setembro

Começa com um fervilhar de rins ao inicio da tarde, uma substância amorfa que se instala nas entranhas como um incómodo parasita, um veneno adocicado que tem a cor opaca do vazio e a espessura remota da névoa, um desejo inconsciente que embriaga a lucidez, uma chama, um acorde indefinido, uma sonolência mais pesada, a repulsa e simultaneamente a fascinação.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Bosquejo da Jornada

Findas as jornadas, um forte viva ao Papa Francisco. 
Eu, ateu, me confesso: gosto da sua atitude agregadora, do seu radicalismo ideológico, da sua posição de ruptura dentro da própria instituição. Todo o estado de graça que se viveu em Portugal nos últimos quatro dias deve-se exclusivamente a Francisco e não à Santa Madre Igreja. 
Por cá, a Sotaina retrograda, abusadora e impune continuará em funções. Deus queira que Deus exista, porque se não existir, não sei o que há-de ser desta juventude afogada no seu catolicismo herdado e meramente cultural.

Mas...ainda assim... "não tenham medo".

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Adosinda

Barcelona. Ramblas. Quarto 600. Sexto piso. Adosinda já entrou. Antigamente devia fazer parte do sótão do prédio. Tem o tecto inclinado. O ambiente é de um luxo acolhedor. As paredes, os cortinados e até o edredão da cama são de um branco muito espesso. Adosinda está numa nuvem.
À direita há um quadro cinzento, uma aguarela do jardim e da fachada do hotel que lhe recorda o efeito do seu primeiro ataque de ansiedade: a tinta diluída. 
Em cima da mesa do pequeno almoço está um livro "Universo Dali". À esquerda há uma escrivaninha com um prospecto " Museu Picasso". E claro, há as janelas. Foi por isso que veio. Duas janelas discretas que dão para uma varanda de balaustrada muito baixa e perigosa. 
Ao fundo está o mar. Manso. Esverdeado. O ar está abafado. A luz, azulada, fraca, deixa antever a chegada da noite. Apagou as luzes do interior, abriu um pouco as cortinas e aproximou um cadeirão da varanda já iluminada por dois apliques na parede com uma luz difusa, morna.
Demorou cerca de vinte minutos a sair. Tem o cabelo molhado, acabou de tomar banho. Tem uma blusa de seda com renda que parece uma camisa de dormir e que lhe dá um ar de repouso sedutor. 
Distendeu-se na poltrona. Numa cadência de movimentos suaves e lentos, afaga o peito, sente a tristeza na sua pele branca, alguma excitação, o seu próprio cheiro, o suor e os sons interiores. A alma a perder as rédeas. O lume dentro de si. Um lume brando, mas em que não se podia tocar.
Adosinda nasceu para  tocar, não para ser tocada. Para observar, não para ser observada. 

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Projecto de Alvenaria

Ó bom-gosto dos homens, quem seria capaz de te fundar sobre o raciocínio? Quem ousaria usar-te somente conforme os princípios da lógica? Tu existes e não existes. Tu és e não és. Partes sempre de matéria díspar.
Não queiras inventar um palácio onde tudo seja perfeito. O bom-gosto é virtude de curador de museu. Se fores a desprezar o mau-gosto, não terás nem pintura, nem dança, nem palácio, nem jardins... nem salário.