terça-feira, 10 de outubro de 2017

Na moleza da tarde: de Picasso a Pina, num ápice.

__O Acrobata - Pablo Picasso, 1930

Perde-se o corpo na inabitada casa das palavras,
nas suas caves, nos seus infindáveis corredores;
pudesse ele, o corpo, o que quer que o corpo seja,
na ausência das palavras calar-se.

__Manuel António Pina, Todas as palavras, Poesia reunida 1974-2011

11 comentários:

  1. Tanto silêncio

    Para cá de mim e para lá de mim, antes e depois.
    E entre mim eu, isto é, palavras,
    formas indecisas
    procurando um eixo que
    lhes dê peso, um sentido capaz de conter
    a sua inocência,
    uma voz (uma palavra) a que se prender
    antes de se despedaçarem
    contra tanto silêncio.
    São elas, as tuas palavras, quem diz "eu";
    se tiveres ouvidos suficientemente privados
    podes escutar o seu coração
    pulsando sob a palavra da tua existência,
    entre o para cá de ti e o para lá de ti.
    Tu és aquilo que as tuas palavras ouvem,
    ouves o teu coração (as tuas palavras "o teu coração")?




    Manuel António Pina | "Todas as Palavras - Poesia Reunida (1974 - 2011)", pág. 316 | Assírio & Alvim, Abril 2012

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  2. Todas as palavras

    As que procurei em vão,
    principalmente as que estiveram muito perto,
    como uma respiração,
    e não reconheci,
    ou desistiram e
    partiram para sempre,
    deixando no poema uma espécie de mágoa
    como uma marca de água impresente;
    as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
    nem foram capazes de dizer-me;
    as que calei por serem muito cedo,
    e as que calei por serem muito tarde,
    e agora, sem tempo, me ardem;
    as que troquei por outras (como poderei
    esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
    as que perdi, verbos e
    substantivos de que
    por um momento foi feito o mundo
    e se foram levando o mundo.
    E também aquelas que ficaram,
    por cansaço, por inércia, por acaso,
    e com quem agora, como velhos amantes sem
    desejo, desfio memórias,
    as minhas últimas palavras.


    Manuel António Pina

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  3. Com que palavras ou que lábios
    é possível estar assim tão perto do fogo
    e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas,
    tão sem peso po cima do pensamento?

    Pode bem acontecer que exista tudo isto e isto também,
    e não só um voz de ninguém.
    Onde, porém? Em que lugares reais,
    tão perto que as palavras são de mais?

    Agora que os deuses partiram,
    e estamos, se possível, ainda mais sós,
    sem forma e vazios, inocentes de nós,
    como diremos ainda margens e como diremos rios?

    Manuel António Pina

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  4. O corpo tem abóbadas onde soam os
    sentidos, se tocados de leve, ecoando longamente
    como memórias de outra vida
    em frios desertos ou praias de lama.
    O passado não está ainda preparado para nós,
    para não falar do futuro; é certo que
    temos um corpo, mas é um corpo inerte,
    feito mais de coisas como esperança e desejo
    do que de carne, sangue, cabelo,
    e desabitado de línguas e de astros
    e de noites escuras, e nenhuma beleza o tortura
    mas a morte, a dor e a certeza de que
    não está aqui nem tem para onde ir.

    Lemos de mais e escrevemos de mais,
    e afastámo-nos de mais – pois o preço era
    muito alto para o que podíamos pagar –
    da alegria das línguas. Ficaram estreitas
    passagens entre frio e calor
    e entre certo e errado
    por onde entramos como num quarto de pensão
    com um nome suposto; e quanto a
    tragédia, e mesmo quanto a drama moral,
    foi o melhor que conseguimos.

    A beleza do corpo amado é
    (agora sabemo-lo) lixo orgânico.
    O mármore que pudemos foi o das casas de banho
    e o dos balcões dos bancos,
    e grandes gestos nem nos romances,
    quanto mais nos versos! E do amor
    melhor é nem falar porque as línguas
    tornaram-se objecto de estudo médico
    e nenhuma palavra é já suficientemente secreta.

    Corpo, corpo, porque me abandonaste?
    “Tomai, comei”, pois sim, mas quando
    a química não chega para adormecermos,
    a que divindades havemos de nos acolher
    senão àquelas últimas do passado soterradas
    sob tanta chuva ácida e tanta investigação histórica,
    tanta psicologia e tanta antropologia?
    A memória, sem o corpo, não é ascensão nem recomeço,
    e, sem ela, o corpo é incapaz de nudez
    e de amor. Agora podemos calar-nos
    sem temer o silêncio nem a culpa
    porque já não há tais palavras.

    Manuel António Pina

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  5. Que bonita caixa de comentários. Vou ficar por cá esta noite.

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  6. ...até os casamentos improváveis, podem resultar felizes.

    Abraço Impontual! :)

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  7. Que publicação e caixa de comentários tão maravilhosa.
    Beijo*

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  8. "...
    Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
    Anoitece em todas as cidades do mundo,
    acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
    onde o meu coração, falando, vagueia."

    (obrigado)

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  9. Respostas
    1. Bem-vinda ao universo dos que apenas querem um lugar onde pousar a cabeça. :=)

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