sábado, 30 de março de 2019

Palomar

O Senhor Impontual vive um raro momento de desapego. Ninguém se apaixona pelo Senhor Impontual, o Senhor Impontual não se apaixona por ninguém. Por isso deixa-se na sublime distanciação, estende um braço, pega num livro e foge para dentro da história. Ali e acolá, sem deprecar, desata uns nós, desatravanca os dédalos interiores, toma um gole de limoncello de Amalfi, sorri por tudo e por nada. O Senhor Impontual não consegue definir com rigor o seu estado de espírito, mas não renega uma certa aquiescência. Ou falta de tesão, vá lá.

quinta-feira, 28 de março de 2019

Teresa

Que idade terá? Alguns mais que eu?...Ou talvez... menos? Talvez não. Acariciou-lhe, com o olhar, duas rugas finas que tinha nos cantos dos lábios. Mas é lindíssima, lindíssima! Era-o de facto e de uma forma um pouco andrógina, mas supremamente elegante, do tipo de mulheres bastante raras que têm pouca carne e muita classe e qualquer coisa de esbatido, de velado nos olhos. Apertava-lhe a garganta, agitava-lhe o cérebro. Nunca, nunca uma mulher lhe tinha agradado com uma força tão imediata e tão perturbadora. Um assomo. Uma vertigem. Um abismo. Mas... desconfiava, por instinto.

terça-feira, 26 de março de 2019

Sessão da Meia-Noite


"Damage" -  Louis Malle, 1992 

Com a Olvido

Avença

Às vezes amar uma pessoa não é o mais importante, mas sim o serviço que se presta em prol da serenidade do seu espírito. E a verdade é que se assim não fosse, a sua alma ter-se-ia disperso.

segunda-feira, 25 de março de 2019

Oração pelos choramingas

Hoje em dia pergunto-me, Senhor, se os que choram alguma vez chegam a acreditar verdadeiramente na firmeza dos alicerces da nova vida que estão a tentar construir para si. Parece certo que querem acreditar, pelo menos não querem não acreditar com uma intensidade que os impeça de estabelecer uma ligação entre o desmoronamento do mundo à sua volta e a iminente destruição dos seus próprios sonhos. Olhando para eles, choca-me o poder das vendas que têm nos olhos - tão absolutos são, em retrospectiva, os portentos do desastre que se avizinha.

quinta-feira, 21 de março de 2019

Pintar Março

Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma sexta-feira. Estamos em Março. Desta vez, tal como a Primavera, veio antes do tempo.
De repente dou por mim a observar um ser distante, mas que sorri e me induz pensar que está apenas a entrar noutra onda. Todavia continuo com a certeza de que os seus lapsos não são apenas aqueles lapsos característicos dos distraídos, mas sim uma luta contra uma corrente que a puxa dentro de si, e que o seu sorriso contém o medo de vir a cair nas suas próprias profundezas, nas quais ficaria encurralada e sem poder respirar. Neste momento o meu desejo era servir-lhe de âncora, sem, no entanto, ser vulgar ao ponto de a fazer saber que esse era um papel que sentimos que ela precisava que alguém desempenhasse. Descobri que a melhor forma de o fazer é chegar quase a tocar-lhe - pôr a mão em cima da mesa, digamos que o mais perto possível da sua sem chegar a estabelecer contacto - e depois esperar que ela se aperceba da minha presença física, estremecendo o corpo como se acordasse de um naufrágio, reduzindo assim a distância entre as nossas mãos com uma pequena caricia ocasional. É provável que este sentido de protecção inviabilize a tentativa de um beijo. Que seria, por ventura, outra forma de fundear aquela embarcação. 
Na outra mão tenho a paleta e o pincel. Limpos. De que cor sãos os olhos da Primavera?

terça-feira, 19 de março de 2019

Eles

Eles olharam por eles com tanto cuidado, quando eram pequenos, ansiosos por não perderem o seu primeiro grito, o seu primeiro passo, a sua primeira palavra, nunca tiraram os olhos deles. No entanto, eles não cuidam deles. Eles têm de enfrentar o fim no meio da solidão - mesmo os que vivem com eles morrem em solidão - e raras vezes tomam nota dos seus últimos marcos importantes: o último grito, antes da morfina começar a fazer efeito, os seus últimos passos, antes de deixarem de conseguir andar, a sua última palavra, antes da sua garganta ficar selada.
Como é que eles se perdoam a eles próprios? A ingratidão lê-se na segunda face da medalha.

segunda-feira, 18 de março de 2019

Bashô

O homem pára
para olhar as chorinas ao sol –
e assombra-se

sexta-feira, 15 de março de 2019

Milú

Apesar do vento gelado abriu a janela, subiu ao peitoril e, sem reflectir, sem decidir, sem nenhum drama ou sofrimento, abriu os pedipalpos bem esticados. Então, só com um pequeníssimo "ai", atirou-se no espaço, num voo picado como aquele aracnídeo já não o podia fazer. A sua densa escópula negra ainda se agitou numa lufada de vento, como uma asa frustrada. Depois recolheu-se, e cobriu-lhe inteiramente as quelíceras quando ela chegou ao chão.

quinta-feira, 14 de março de 2019

Elisa

O seu homem dorme a seu lado. Elisa gosta de acordar no meio da noite e sentir o seu calor, escutar a sua respiração, passar os dedos na sua boca entreaberta. Às vezes, a dormir, ele apalpa-a ao de leve como que para ter a certeza que ela está ali. Ou murmura alguma coisa nos entressonhos. O nome de outra mulher.
Elisa sorri no escuro.
Lá fora algo se move no jardim em torno da casa. Talvez uma ave nocturna. Talvez apenas o vento a agitar os ramos dos abetos, ou apenas o silêncio -- que quando é profundo vira lamúria. Elisa aconchega-se mais no corpo do seu homem e fica abrigada. É esse o seu lugar no mundo.

terça-feira, 12 de março de 2019

Perscrutação escopofílica

Uma vez que a tiveram como primeira amante a domina-los, por outras palavras; o aconchego exacerbado das suas mães, bem que podiam no resto das suas vidas sentirem-se atraídos por mulheres igualmente fortes e capazes de forjarem vidas autênticas e que os induzissem a fechar as portas que vão deixando para trás, a saírem daquele pessimismo liberal, a despirem a capa do rapsodo da desgraça e do amor perdido. Mas não. Há sempre um testo para uma panela. É incrível!

sexta-feira, 8 de março de 2019

Não gastaremos o tempo, ele nos gastará

Nos blogs, como na vida, a cada passo um homem pensa que a sua história já está terminada. Tamborila-se os dedos sobre o teclado e deixa-se escapar um suspiro. Fica só a faltar o fecho, uma frase que possa marcar um final adequado. Segundos depois um sorriso cruza-nos o rosto ao mesmo tempo que escrevemos: 

- Continua.



"e espero estar agora mesmo a escrever,
em verbo arcaico indefectível cerrado,
um êrro absoluto,
um êrro escorchado vivo: vós sois o sal da terra,
vós que escreveis e enviais cartas a cada um e a todos
– a mão do mundo, a música, as cartas derradeiras 
e os sobrescritos sem destinatários"

quinta-feira, 7 de março de 2019

Por linhas tortas

Parecia que tudo tinha desabado de repente. Não passara nem sequer um minuto que ele lhe batia e gritava violentamente e agora estava ali, teso e vazio, sobre o chão da sala. De pé, imóvel, encostada ao aro da porta abraçava a almofada e esperava que alguém aparecesse e rompesse aquele silêncio horrível. Quando chegaram todos e tentaram reanima-lo, deu um passo atrás em direcção ao corredor, apertou a velha almofada contra a sua cara, limpou a única lágrima que derramara e disse em voz baixa: "eu nunca te gritei, incompetente".

quarta-feira, 6 de março de 2019

Quarta-Feira de cinzas



Ontem, foliões. Hoje, como que saídos de dentro de um livro. E nesse livro, já se sabe, o mundo é limpo. É um mundo calmo, lento, apesar de sem regras e sem tréguas. Não há noites comparáveis de tão requebradas, mansas e ternas. Todas as noites ali, possuem, no seu bojo, uma languidez latente, que frequentemente explode. É um reino de silêncio, de mornas cumplicidades. Por vezes um reino de algum alarido, contido, um reino de mudas catástrofes. Ali as pessoas não se preparam para a felicidade, e os dias giram sobre si mesmos na mansidão da ternura, na aproximação que conduz à temperança. 
É de crer que ali a beleza tenha o poder de opor resistência à agressão. E não é que me agrade sobremaneira o caminho marcado, áspero, que deixa cicatrizes, lacerações, despojos, restos profundos e fétidos do mundo real. Mas onde está o fio residual dessa beleza, nestas personagens que foram sonegadas à realidade que não dispõem?

sexta-feira, 1 de março de 2019

Cimeira

E quando os ruídos exteriores já haviam sido neutralizados pelo fecho das espessas  janelas da sala, coloquei a voz umas oitavas acima e cortei o silêncio tumular: "Bom dia minhas Senhoras e meus Senhores. Atenção, por favor. Temos de encontrar uma solução alternativa..." 
Quarenta e dois olhos examinaram o ar. Mas por escassos segundos. Voltaram todos ao mesmo: olhos quase divinatórios, reflectindo dúvidas e pensamentos que têm de conduzir a decisões rápidas; olhos com riachos de sangue, fatigados; olhos míopes e astigmáticos, uns bem pintados, outros mal pintados; olhos - quarenta e dois olhos - e mais alguns, subalternos e periféricos que comunicavam entre si através de gestos discretos e de palavras de valor iniciático cujo secreto sentido só eles mesmos entendiam e perfilhavam. Olharam-se muitas vezes, de uma mesa para a outra, mas não se encontraram. O embaraço da escolha, solidarizou estes campeões do silêncio meditado. 

Agora, já noite feita, de regresso a casa, circulo na marginal norte do rio Douro e observo as cicatrizes da urbe em todo o seu esplendor.