terça-feira, 3 de novembro de 2020

Sem foto de pouco vale, mas...

Se eu escrevesse para os outros, deleitar-me-ia a descrever tudo o que não sinto necessidade de descrever para mim. Recorreria a uma enorme paleta de cores cruas e insólitas. Escreveria com uma bonita caligrafia sobre o céu azul desta tarde de Novembro. E uma sensação de azul liquido incitaria a minha mão. As palavras alinhar-se-iam, crispadas, incapazes de circunscreverem esta sensação de azul que me dilata o coração. E com a mesma caneta, a caneta da ilusão, descreveria o vento, o horizonte, as ondas à minha frente, as montanhas arrasadas atrás de mim... e o sol lá em cima.  
Mas como não escrevo para os outros e vim até aqui chamado por mim, não fotografei o azul. Um evadido não olha para as ondas nem para o céu. 

8 comentários:

  1. Para quê fotografia se a intimidade das palavras volitam tamanhas imagens.
    Bom entardecer, Impontual.

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  2. Vou dedicar-te um postal por conta do que escreveste, tão certeiro e ligeiro e mais ou menos honesto :)*

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    1. Obrigado, Querida Alexandra. :)

      Sem honestidade nenhuma, concedo.

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  3. Nunca deixamos de escrever para os outros, um blogue é também isso.
    ~CC~

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    1. Sim CC. É bom termos onde depositar os versículos do quotidiano. :)

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  4. E se alguma vez, faltar o azul, há sempre uma receita para o fazer.

    [Se quiseres fazer azul,
    pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
    que possas levar ao lume do horizonte;
    depois mexe o azul com um resto de vermelho
    da madrugada, até que ele se desfaça;
    despeja tudo num bacio bem limpo,
    para que nada reste das impurezas da tarde.
    Por fim, peneira um resto de ouro da areia
    do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo do metal.
    Se quiseres, para que as cores se não desprendam
    com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
    Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
    ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
    na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
    até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
    Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
    possas distinguir entre uma e outra.
    Assim o fiz – eu, Abraão bem Judá Ibn Haim,
    iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
    algum dia, imitar o céu.

    Nuno Júdice]

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