segunda-feira, 29 de março de 2021

Minuete

Os seus passos demorados não têm nada de cansaço ou de confuso, pelo contrário: toda a aparição está desperta, ali, onde desliza pelo passeio. Aquela é a sua forma de se mover e percebe-se claramente que não se envergonha disso. Essa lentidão é mais provocante que um decote ousado ou uma saia justa um palmo acima do joelho. Tudo é tão intimo, como se estivéssemos a vislumbrar a sua alma. A lentidão torna-a mais nua que a própira nudez alguma vez teria conseguido. Por detrás dela pressente-se uma coragem do tipo mais despretencioso e profundo. Inventou uma forma totalmente nova de se mover, um equilibrio nunca antes visto, uma coreografia do principio do mundo. Não caminha sobre o chão, acaricia-o. É como se toda a sua vida fosse um minuete demorado e ela se movesse ao som de uma música que nunca se extingue e que mais ninguém ouve. 

sexta-feira, 26 de março de 2021

Palomar

O Senhor Impontual é um fugitivo. Desde sempre que o é. O Senhor Impontual sabe desenhar casas, sabe toldar-lhe as fachadas e o interior. Sabe desenhar jardins. Mas o que o Senhor Impontual gostava, mesmo, era de saber desenhar rostos. Se um dia, no grande incêndio, os livros fossem queimados, o Senhor Impontual está seguro de que os rostos passariam a ser a biblioteca dos homens, as rugas as suas linhas, o olhar as suas histórias. Mas desenhar rostos é muito dificil. Em cada rosto há algo de inatingivel. O lápis desespera e continua à procura. Por vezes sente-se que se roça nele e ficamos com a mão a escaldar. Outras vezes pressente-se que desde que se espere de um modo suficientemente observante, chegará o momento em que se revelará por um único risco milagroso, como quando se espera na noite pelo alvoroço, pelo momento do nascer do sol, quando as névoas se levantam, as sombras se dispersam e o interior da paisagem se revela. Mas não. Com muita pena do Senhor Impontual.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Rosinha

Rosinha não é má rapariga. No fundo, é avessa à falsa burguesia e ao puritanismo em que vive. Mas é incapaz de entrar em choque com o seu mundo. O seu derivativo é aquele tipo de rebelião mansa: afinal um sintoma das épocas de impotência. Rosinha está, como qualquer um, à espera de um grande acontecimento que a obrigue a modificar a penúria da sua vida, mas não provoca esse acontecimento, porque estaria a agir contra si própria. Também lê, como qualquer um, também é esperta, como qualquer um, mas tem um emprego em home office e não está disposta a perder esse privilégio. Rosa é uma virtuosa, à sua maneira.

terça-feira, 16 de março de 2021

Ao postigo

Às vezes penso que talvez devesse deixar de escrever. Mas as palavras continuam tão intactas. Trato-as com o cuidado ganho pelo tempo, da mesma maneira que trato as pessoas que me são próximas, familiar com os seus caprichos e vicios, os seus sonhos e desilusões. Como quando olhamos um retrato e este ganha vida, levanta o sobrolho e inquire: - Sim?  
E, a medo, respondemos "não", como se as palavras se tornassem um eco das primeiras palavras, as certas. E respondemos "não" como última manifestação de liberdade.
A verdade é que se escrevesse para os outros, deleitar-me-ia a descrever tudo o que não sinto necessidade de descrever para mim. Recorreria a uma enorme paleta de cores cruas e insólitas. Escreveria com uma bonita caligrafia sobre o céu e uma sensação de azul liquido incitaria a minha mão. As palavras alinhar-se-iam, crispadas, incapazes de circunscreverem esta sensação azul que me dilata o coração. E com a mesma caneta, a caneta da ilusão, descreveria as colinas...as montanhas arrasadas e as florestas transformadas em flores, as plataformas de pedra e a brancura das ondas desvastando o areal saibroso.

__ e o sol lá em cima.

sexta-feira, 12 de março de 2021

Chesterfield

Apesar dos dias serem agora mais claros, a rua lá fora mais animada e o chilrear dos pássaros nas árvores ser mais forte, sentava-se no sofá. Aquele sofá que fora a primeira peça de mobilia que compraram juntos. Pensava no amor que costumavam fazer nele. Nesses tempos arrancavam a roupa por desejo. Agora despem-se com movimentos frouxos ao fim do dia, dobrando a roupa cuidadosamente em cima das costas da cadeira do quarto. 

quarta-feira, 3 de março de 2021

Memória háptica

O amor é agora mais intenso e demorado. Porque, antes de a penetrar por várias vezes, tinha-a despido lentamente e tinha-me detido com carícias em cada parte do seu corpo, sorrindo-lhe e dizendo-lhe que era bonita, e quisera ser eu a tirar-lhe os ganchos do cabelo e a enterrar as mão naquela nuvem negra de caracois e desabotoar-lhe o vestido, deixa-lo cair, e ficar a olhar para ela, nua, deitada na cama, admirando-lhe os seios grandes e rijos, a pele branca e macia, as longas pernas, enquanto a acariciava e a beijava em sitios onde nunca tinha sido beijada.  

Isto depois de uma garrafa de Cartuxa, claro.