quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Recado


(...)
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me...

__ Al Berto, Horto de incêndio - Assírio & Alvim, 1997

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Mortágua

Eles estão por toda a parte. Ocupam tudo. Na televisão, nos jornais, nos debates, nos congressos, nas sessões da assembleia. Nas decisões. De fato e gravata, pavoneiam-se, explicam e refazem o mundo que se obstinam em devastar, em pôr a saque para melhor o explorar. Por vezes, no meio deles, surge uma mulher ali plantada como uma hortênsia e... é isto. Este empenho comum, esta indignação partilhada.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Queres ser alguém nisto dos blogs..?

Aprende a dizer a palavra que enfeitiça, a arte de furtar corações vazios, a fazer olhos doces, a tornear um cumprimento. Aprende a apoderar-te de um aceno, a roubar um beijo antes de fugires encantado. Mostra o cão. Conta histórias. Recita poesia. Convoca o mundo e os seus mistérios, o sol e as estrelas, os deuses do mal e os anjos da guarda, enquanto os joelhos dos teus interlocutores tremem a cada lampejo da tua voz acariciadora. Depois, prossegue os relatos, molda o curso das histórias segundo o fervor que lês nos seus olhares. Vive em paz contigo mesmo. Dá um ar de veracidade às palavras. Apazigua a tua consciência. Deixa-te abraçar porque, além do talento de inventor de histórias, é preciso saber fazer cantar os corpos.

Classe média.

Se a injecção fizer efeito, irás ficar igual aos outros, com demasiado medo de quebrar as regras, contentando-te em desprezar quem for menos importante que tu, obedecendo às ordens de quem estiver acima de ti. E se não fizer efeito continuarás, aos olhos deles, uma aberração.

domingo, 18 de setembro de 2016

Correlações

Num país onde as altas instâncias judiciais dão entrevistas sobre processos mediáticos irresolúveis, num país onde as altas instâncias jornalísticas escrevem livros a revelar histórias pessoais que lhe foram confiadas off the record, porque é que o Big Brother não haveria de ser o programa mais visto da televisão?

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Por outro lado...

Não há nada mais mortífero do que a esperança, esse símbolo inequívoco de que já se perdeu tudo, aquela agonia alargada.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Sabem?

Aquelas pessoas com um repertório de tristezas que não se percebe ao certo de onde vêm, mas que não chegam a atingi-los completamente? Que viveram uma história de fazer chorar as pedras da calçada, mas que se recusam a enterra-la e que em vez de a guardar decentemente para si próprios, a utilizam a vida inteira para se armarem de coitadinhos, para que os tratem de maneira diferente e especial? Sabem? São os sobreviventes. É o que há mais no mundo.

Ou, então, é como diz Nick Cave: “há muito mais paraíso no inferno do que aquilo que nos tinham dito”.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Mental Sience Investigation

O bom disto de sermos ratos de laboratório é que às vezes também descobrimos coisas.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Hoje, depois da chuva.

Parece que me completo em cada escolha, em cada ideia pensada, a cada palavra dita ou escrita. Completo-me, imagine-se, nesse deus-demónio que me habita e murmura a toda a hora directrizes antagónicas. Completo-me no horizonte cinzento. Até me completo no não movimento. Contemplo sem ver. Completo-me caído na profundidade sinuosa de mim mesmo. Belisquem-me.

Tríptico



quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Florinda.

É amiga do espelho de pé alto. A sua vida é um prazer ininterrupto e requintado. Cultiva, com um prodigioso conhecimento técnico, as mudanças, as nuances, as variantes. A sua longa intimidade com as fantasias espontâneas, com os caprichos, com as contradições e os paradoxos, conferiu-lhe uma atraente série de aforismos proveniente do que faz questão de designar de filosofia de volte-face. Não sei como lhe diga que é um erro chamar filosofia à pátina que a idade foi deixando.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Postcrossing

Não é só o seu rosto em desalinho. É também aquele sorriso oblíquo que diz «vem» sem dizer nada. Das suas palavras ressoa um subconsciente ao rubro: poesia e prosa envolvem-se numa toada sem tréguas. Dos céus tomba um cinza copioso, uma bruma densa e escura abate-se sobre a terra num ambiente místico, quase crepuscular. Os gatos, esses, bem vivos, miam para os céus...

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Fantasmagoria.

Quando se fazia amor a dois, na realidade, podíamos muito bem ser três. Nós, o outro e o fantasma. Quatro, na verdade: vendo bem as coisas, porque é que cada um não poderia ter o seu próprio fantasma. Portanto, éramos dois para nos tornarmos em um, eis-nos quatro. Ou dez, ou cem, a porta ficou aberta, entrou quem quis. Não houve limites...


Mas o que eu queria dizer é que Mr. Freddy Mercury completaria hoje setenta anos de vida. Parabéns. Eu estou grato.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Feng shui.

Por estes dias de regresso à velocidade e violência o primeiro estranho aparece-me, logo pela manhã, no espelho da casa de banho.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Dissipação.

Cautelosamente deixei-me abraçar, e senti um certo desvanecimento. Sinto-me sempre algo constrangido com este novo hábito das festas e dos abraços. Até fui criado com eles, mas, por vezes, não consigo deixar de os associar demasiado claramente ao sexo...


depois, alternamos entre a praia e o parque, misturámo-nos com outras gentes, bebemos umas cervejas, vimos Peter Murphy e Peter Hook na mesma noite... enquanto ansiávamos pelos Waterboys, que haveriam de nos transformar numa tranquila multidão de velhos amigos a olhar as coisas por detrás das coisas.

sábado, 27 de agosto de 2016

Room to Roam


O que eu queria dizer era justamente isso: não estou preocupado comigo. Está tudo bem. Tenho tomado banho, escovado os dentes, bebido água. Meu coração continua a bater - insolente - como sempre.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Vilar de Mouros.


E se eu voltasse a fumar um charro?
Nos últimos 20 anos, tal só me aconteceu muito, mas mesmo muito raramente, pois sou demasiado gélido para procurar refúgio noutro lugar que não as minhas convicções. Todavia, se fumasse, é certo que um terrível abalo me percorreria o corpo e nada permaneceria da minha frieza. Ficaria momentaneamente irreconhecível, de olhos parados, esgazeados, os lábios frementes, os gestos e as palavras a denotar uma cínica sensualidade. Tentaria escapar-me, em vão, invocando a razão de sempre. Os outros lançar-se-iam rapidamente na orgia fria, que me repugna, mas que observaria sempre com vivo interesse, mais não fosse para lhes relatar depois entre risadas. Enquanto uns deixariam cair as pálpebras, outros tossiriam às primeiras baforadas. Por vezes fico até assustado ao constatar que, neles, a droga produz efeitos diferentes dos que habitualmente se verificariam em mim. Neles, os sintomas são os de acordar: os gestos da repugnância, convulsivos ou lentos, do combate contra a náusea, enquanto em mim cai a confiança plena, uma semiconsciência encantadora. Um espectáculo assustador: o homem que desperta suavemente e que seduz. 
E se eu voltasse a fumar um charro?