As pessoas adormecem boquiabertas. Gosto de assistir impávido a esse momento de agonia em que toda a gente se retorce e evoca. Evoca o passado, vão-se fechando as janelinhas, umas atrás das outras, a escuridão entra-lhes pela pele, uma tinta espessa sela-lhes a vista, e ali fica a sua vida congelada à espera do dia seguinte. Depois deixo-me ali, silencioso, a mitigar sobre o seu despertar. Certamente uns dias levantam-se do abrigo atormentados por visões e espíritos, outros deslumbrados por uma música interior. A vida parece ser isto. Adormecer, despertar. Despertar, adormecer...
quarta-feira, 12 de outubro de 2016
O Homem que contempla
©Chiahru Shiota
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,
batem nas minhas janelas assustadas
e ouço as distâncias dizerem coisas...
__R.M. Rilke, "O Livro das Imagens"
terça-feira, 11 de outubro de 2016
Resolução 66/170, da Assembleia Geral das Nações Unidas
Reparei que olhava bem de frente, que não abanava as nádegas, que era uma rapariga de poucas curvas, aparentemente pouco sexy, mas com um sorriso, um sorriso que escancarava o mundo, e que a acendia toda e a deixava a transbordar sabe-se lá de quê!
segunda-feira, 10 de outubro de 2016
Isósceles
Estou aqui às voltas, como de resto a maior parte das pessoas, no espaço entre a vida a dois para sempre e a libertinagem, vou passando algum tempo a pesar opções. Por acaso até me apetecia falar em triângulos, mas normalmente as pessoas ficam todas eriçadas quando se lhes fala em triângulos - pensam automaticamente em traição, rivalidade, vencedores com sorrisinhos de satisfação e vencidos amargurados de testa enrugada - mas como não tenho a certeza de dispor de um vocabulário suficientemente rico em nuances para discutir triângulos neste momento, aguardo então por um ambiente mais distendido.
sexta-feira, 7 de outubro de 2016
quinta-feira, 6 de outubro de 2016
Vizinhança(s).
Já o do lado esquerdo, pensa retirar-se do amor como quem se despede do palco. Cansado de representar sempre o mesmo papel. Apenas o cenário muda. Sempre o mesmo papel: terno e inocente no prólogo, mortífero e mortificado quando o pano cai. Uma autêntica tragédia redigida por um autor desconhecido e cujos textos recita como um aluno de conservatório, aplicado e esforçado.
(Agora que o sol baixou, que sensual, que caprichoso, que magnifico é o efeito da sombra da sebe sobre o relvado: abraça, na sua forma sinuosa, os meus melhores sonhos, os meus desejos impossíveis. Só gostava que vissem. Estou tão constipado!)
(Agora que o sol baixou, que sensual, que caprichoso, que magnifico é o efeito da sombra da sebe sobre o relvado: abraça, na sua forma sinuosa, os meus melhores sonhos, os meus desejos impossíveis. Só gostava que vissem. Estou tão constipado!)
Vizinhança.
Ela já não é nova, mas foi-o. Ele, nasceu velho. Nunca está contente. Nunca está aborrecido. É um homem alto, seco, louro. Ela é pálida e sem viço.
(Eu sou o vizinho engripado que, retido em casa, veio ao jardim apanhar um pouco de ar, mas que já volta para dentro.)
(Eu sou o vizinho engripado que, retido em casa, veio ao jardim apanhar um pouco de ar, mas que já volta para dentro.)
terça-feira, 4 de outubro de 2016
Duplo mortal invertido com saída à retaguarda.
Nada em redor, a não ser o ar na plenitude do seu movimento e um reconforto absoluto. Os pensamentos flutuam lentos e retorcem-se grotescamente como uma mosca à procura de uma janela aberta. O mundo apresenta-se repleto de telhados e pontes que oferecem essa garantia. Podia simplesmente inclinar o corpo para a frente, suportar o minuto difícil da queda. Mas, e depois? inquiriu-se.
Um dia vê-se e não se sente, outro sente-se sem se ver, eis a eterna condição. Às vezes continua-se a ser já sem que se exista.
Um dia vê-se e não se sente, outro sente-se sem se ver, eis a eterna condição. Às vezes continua-se a ser já sem que se exista.
sábado, 1 de outubro de 2016
Chacota.
Eu se fosse americano estaria agora numa profunda reflexão do tipo: nós que fomos os primeiros a ir à lua, nós que inventamos a Internet, nós que mostramos ao mundo a bomba atómica, nós que descobrirmos a coca-cola, levamos à mesa os hambúrgueres, nós que preparamos o melhor atleta olímpico de sempre, nós que dominamos e marcamos a cadência do universo, não podemos continuar a ser gozados até Novembro. Mas como sou português, calo-me bem calado.
quinta-feira, 29 de setembro de 2016
Fim de Setembro.
quarta-feira, 28 de setembro de 2016
Oxímetro.
Este mundo está muito previsível. Situações tão repetitivas. As pessoas vão, vêm, entram, saem, as portas batem, os amantes saltam dos armários.
segunda-feira, 26 de setembro de 2016
Bolsa de valores.
Hoje, as pessoas encaixam com extrema facilidade - com um certo ânimo até - que a vida humana é algo sempre sem sentido e que acaba sempre mal, e que por isso temos de estar em paz com ela. Regular o chip para valores de alcance intermédio e prosseguir no melhor índice possível. Se os raios de luz são raros, ou apenas uma miragem, pois que se espere tranquilamente que eles surjam. Se a felicidade durável escapa, pois que nos resignemos e aproveitemos os momentos mais felizes. Se a paixão ardente se muda no caleidoscópio para outra coisa mais lenta, mais madura e menos temperamental, que se aceite de boa mente aquecermo-nos ao calor dessa chama mais suave. Mas se o amor, quando tentam prendê-lo nas suas mãos ou simplesmente nos seus corações, se esquiva ao seu enlace como a água por entre os dedos, porque na realidade não há ali ninguém, já não há viv'alma que consiga reconciliar-se com a ideia de amar o que encontra. O amor nunca basta. Deveria bastar. Afinal é só aquilo. É o que se tem. E cada um tem o que tem. Mas não, não há viv'alma. O amor é um papel fraco.
sábado, 24 de setembro de 2016
quinta-feira, 22 de setembro de 2016
Membrana
E depois a transformação do meu olhar não foi assim tão assustadora. Não creio, aliás, no significado dos olhares. Não creio que uma membrana, por mais fina e transparente que seja, possa reflectir o pensamento. Desagrada-me esta ideia (muito feminina) que cola o pensamento à mascara do rosto. É tão fácil manipular o paradoxo. Só uma mente de mulher pode imaginar que o pensamento influencia a carne. Mas é capaz...
Inconjurável.
Que adianta teres decidido esta noite que era tempo de não mais amar? Eliminar, uma a uma, todas as fotos. Apagar cada uma das conversas compartilhadas, palavra por palavra, letra por letra. Encaixotar, um a um, todos os beijos, todos os abraços, todos os sorrisos, lágrimas, caricias e olhares. Fechar tudo na arca funda da melancolia. Selar todas as palavras que não disseste e que ainda tens atravessadas na garganta e deixares-te adormecer... se não tarda vais acordar?
quarta-feira, 21 de setembro de 2016
Recado
(...)
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me...
__ Al Berto, Horto de incêndio - Assírio & Alvim, 1997
terça-feira, 20 de setembro de 2016
Mortágua
Eles estão por toda a parte. Ocupam tudo. Na televisão, nos jornais, nos debates, nos congressos, nas sessões da assembleia. Nas decisões. De fato e gravata, pavoneiam-se, explicam e refazem o mundo que se obstinam em devastar, em pôr a saque para melhor o explorar. Por vezes, no meio deles, surge uma mulher ali plantada como uma hortênsia e... é isto. Este empenho comum, esta indignação partilhada.
segunda-feira, 19 de setembro de 2016
Queres ser alguém nisto dos blogs..?
Aprende a dizer a palavra que enfeitiça, a arte de furtar corações vazios, a fazer olhos doces, a tornear um cumprimento. Aprende a apoderar-te de um aceno, a roubar um beijo antes de fugires encantado. Mostra o cão. Conta histórias. Recita poesia. Convoca o mundo e os seus mistérios, o sol e as estrelas, os deuses do mal e os anjos da guarda, enquanto os joelhos dos teus interlocutores tremem a cada lampejo da tua voz acariciadora. Depois, prossegue os relatos, molda o curso das histórias segundo o fervor que lês nos seus olhares. Vive em paz contigo mesmo. Dá um ar de veracidade às palavras. Apazigua a tua consciência. Deixa-te abraçar porque, além do talento de inventor de histórias, é preciso saber fazer cantar os corpos.
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