segunda-feira, 27 de novembro de 2017

A cidade, o mundo e a dor

Corredor de hospital, oitavo andar, secção F, serviço da enfermeira Amélia. Ali, a vida resume-se a duas palavras: sofrimento e desesperança.
Amélia, de bata azul e branca, distribui medicamentos. Olhares expectantes, meios-sorrisos, uma distracção, breve relâmpago do exterior que penetra no interior dos quartos. Amélia sabe-se mensageira, portadora dos rumorejos do mundo, como se a ela se atrelassem, aos seus cabelos ou à pele do rosto, os pequenos odores e partículas da cidade e do mundo, difundindo micro-organismos e miasmas que cada qual açambarca como pode. Por ora, é prenda urbana oferecida por Amélia. Para já não falar nos ansiolíticos, analgésicos e morfinas que lhes injecta nas veias.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Tríptico




Pode ser do género ópera, cançoneta ou peça de jazz, Händel, Piaf ou Mingus, o importante é a música que entra na cabeça, igual a uma recordação, e que se instala até suplantar o desassossego. Abram-se as portas do labirinto.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

omnia pro patria

Se não é o governo é o desgoverno, se não é a direita é a esquerda, se não é a demissão é a admissão, se não é o Panteão é a Agência Europeia do Medicamento, se não é o Outono soalheiro são os senhores da meteorologia que não fazem chover, se não é a carreira congelada é a carreira de estatuto automático , se não é o assédio é o pénis viral, se não é o Pinto da Costa é o Bruno de Carvalho, se não são as pedras da calçada é a alcatifa do hotel...

Sempre atrás das redes hertzianas, ligados por cabo, satélite e fibra óptica, quais atendedores automáticos de chamadas, mentes miserandas de sinapses de fraca carga, recolhendo os versículos do quotidiano onde o licencioso se mistura com a pequena luxuria e os tráficos de toda a espécie, uma pobreza sem bandeira, um submundo perdido dos lugares de fronteira, a cavalo entre o passado comezinho e o presente mesquinho.

Que puto de país! Que puta de gente!

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Linha editorial


Posso contar aventuras pessoais com um século, com um ano, com uma estação, com um mês, com um dia - o dia em que se viram as coisas estilhaçarem-se. Transformar em lenda o meu bairro, um passado, ou ainda uma vida que não seria vivida. Deixar-me dias a fio a ver, emudecidas, perpetrar-se as exacções nos ecrãs da minha sala ou de outras choças feitas de adobe por esse mundo fora. O corruptor que corrompe, o corrompido que mete ao bolso. Ficar impotente perante o que poderia ser e o que não é, a indigência das respostas, uma civilização que se vai perdendo. Saber isso, repisando-o, litanias lancinantes do quotidiano. Lançar-me no vazio, nomeando-me a mim mesmo o chefe territorial dos degredos do mundo. Sobreviver. Deixar o mundo ditar o seu descontentamento. Ouvi-lo, desgrenhado. 
Ou então inflamar a vida, pedindo ao mundo, com jactância, uma miríade de êxtases: sidera-me exalta-me, deslumbra-me, atordoa-me, e que isso não tenha fim.
Também poderia ser um encantador de serpentes. Em cima da cama uma maçã: "atentamente, a cobra".

Mas, não sei. Tenho de pensar.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Da tristeza que advém da polenta


«Estou triste porque passei o dia todo a contemplar pratos de polenta. Têm um aspecto tão monótono. Em tempos de jejum, não basta que um prato tenha uma aparência tristonha; também o gosto deve provocar tristeza. E que combinação é mais triste à vista e ao gosto do que a polenta de véspera, servida fria, sem adição de quaisquer outros temperos?» 

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Se eu fosse uma mulher?

Evitar-me-ia. Porque eu sou um homem do momento, um homem que procura continuamente persuadir-se daquilo em que pretende crer, um homem cujas palavras há que rasgar ao fim de uns dias, sobretudo se forem grandiosas e definitivas, um homem que sempre quis e sempre quererá todas as mulheres, sim todas, para conhecer por elas a inteira verdade da vida e uma boa parte das figuras do que existe, para não se fechar, não se embalsamar num eu já definitivo. Nunca encontrei uma mulher que fosse todas as mulheres. 

terça-feira, 14 de novembro de 2017

1951

 

O ano em que, muito possivelmente, Marlon Brando apalpou o rabo a Vivien Leigh nos bastidores de "Uma rua chamada pecado".

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Necromancia

Lá fora o ruído da urbe, cá dentro a presença atabalhoada das opiniões desordenadas. Tudo me impele para o interior dessas palavras, onde sinto que estão alapadas maneiras de viver e de pensar. Como desencantar a resposta, indago a mim mesmo, aquilo que calaria o bico a estes pequenos pretensiosos que se julgam bem-sucedidos. Bem-sucedidos em quê? É caso para perguntar.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

# Inteligência artificial

Ir ao encontro do mundo sem se ferir. Avançar nu, com uma pequena carapaça de ingenuidade moldada pela bruma, as palavras de uma língua que irão esburacar os ouvidos de uma outra língua. É disto que importa falar - não da ânsia de sucesso -, do tempo que passa, das erecções falhadas, voltar ao principio, ao agenciamento das coisas quando houve que erradicar as primeiras baforadas de infelicidade. O confronto com o outro, com a sua história, eis onde se aprende em situações extremas o nosso próprio valor e aquilo que, através dele, pode dar sentido à existência. O ser humano não se encontra a si mesmo senão com um outro ser, e jamais pelo simples saber estar lig@do ao mundo.
Nascemos engelhados, morreremos engelhados. Passar a vida armado em esperto e a tentar esquecer o axioma de base é uma burrice. Mas os tempos estão para @ssim.

sábado, 4 de novembro de 2017

Palomar


O Senhor Impontual tem sorte numa coisa: passa a maioria dos fins de semana num sítio onde pode plantar árvores. O Senhor Impontual gostaria de ficar a vida toda a ver as árvores medrar, e as árvores ali imóveis, caladas, mudas, surdas, cálidas e enchendo-se das cores da tarde uma e outra vez, até à brancura de um novo amanhecer, mas ainda não pode. O Senhor Impontual tem sorte ainda numa outra coisa: tem um pacto com o S. Pedro - portanto, tem quem lhe regue as árvores na sua ausência.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Pina


Como quem, caído de outras galáxias fora de si, tomba aonde sempre esteve, encontrando tudo nos mesmos lugares: o passado dentro do passado, o presente no presente e o futuro sem futuro.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Ainda sobre a desertificação do interior

Momentos antes de transpor a circular, enxergo pelo retrovisor uma fila de automóveis como que varridos pelo vento de altitude. Seguem lentamente para as pequenas localidades ao encontro dos cicios nos cemitérios, das genuflexões nas igrejas, dos odores e dos silêncios suspensos nas piras. Olho de novo o retrovisor e tenho à minha esquerda a via central livre. Desmarco-me. Não acuso o mundo desta espécie de cortejo da morte, deste culto aberrante da saudade e da tristeza a indiciar que os seus mortos possam gostar de exibições, ressequidas, de luto e dor. Os meus não gostam de certeza.

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Desertificação do interior

É quando não fica ninguém capaz de escutar as palavras que exprimem os nossos desejos, as nossas esperanças, as nossas paixões? É isso?

Alerta amarelo

Cuidado. Podemos não estar preparados para as inundações. Oremos uns de cada vez.

domingo, 29 de outubro de 2017

Rückert

Acabo de despertar para este Domingo de cores douradas que me oferece mais uma hora... mas só me quero morto para os tumultos do mundo, repousar no silêncio e na música, abeirar-me do amor, perpetuar-me nesse paraíso que é a paragem espontânea do tempo.  

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Quitéria

Possuída pelos rancores intactos que acabaram por lhe roubar o sorriso, ostenta agora um olhar fugidio, um rosto fechado. À noite, muito ausente nos seus braços, ainda lhe vai fazendo a esmola do seu corpo, mas sem nada entregar de si própria. No leito, cheia de negligências apressadas, já não o arrasta para aquelas sessões que outrora os faziam arquear de volúpia. O amor físico atamancado, praticado com desdém, é a última ferida que lhe pode infligir, a sua maneira de o censurar por não ser mais homem. Sempre que ele se aplica a interromper aquele lento naufrágio, através de iniciativas funambulescas que satisfazem mais as suas prioridades que as dela, responde com dietas de silêncio, olhares ociosos que formam uma cortina. Patinha na proximidade longínqua, na recusa da lentidão, num atoleiro de egoísmos. Já não acredita nos seus beijos; murcha de decepção. Adúltera.

Sem legendas

sábado, 21 de outubro de 2017

Palomar

O Senhor Impontual marcou presença esta tarde na praça do município e, de pé, misturado na concentração humana que se foi formando lentamente, observou a superfície. O Senhor Impontual tinha conhecimento do objecto do ajuntamento. No entanto, a fim de evitar sensações vagas, procedeu à busca daquilo que se encontrava por baixo da sua superfície, levando em linha de conta os aspectos que estiveram na sua génese assim como os aspectos mais complexos a que daria consequentemente ensejo. O Senhor Impontual já sabia que prestar atenção aos aspectos faz com que estes saltem para o primeiro plano, invadindo o quadro, como em certos cenários diante dos quais basta que se fechem os olhos e ao reabri-los a perspectiva já mudou. As coisas nem sempre são como são, mas a sua superfície é inexaurível.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Doctiloquia

Era uma vez um país onde o povo estava perturbado pela tragédia, pela morte, pelo terror e os políticos perturbados pelo desejo por coisas, lugares e estatutos que não conseguiam alcançar e o resultado era o medo, a insegurança e a frustração. Não é assim?
Até que um dia o grande líder desenvolveu um medicamento que curava as pessoas do desapontamento e permitia que os homens, as mulheres e os políticos fossem felizes com o mundo que tinham.