quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Dois cartões de Natal. Um com dedicatória, outro para quem o quiser apanhar

(para a ANOUK com um abraço)

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Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.

As pessoas imaginam os seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.

(para quem o quiser apanhar)

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Acendalhas

Em dias como o de hoje em que me permito regressar bem mais cedo do que é habitual e ainda debaixo da luz do dia, gosto de encontrar a casa vazia, fria, triste, escura. Acender a lareira lentamente e ficar ali a ouvir os primeiros estalidos da lenha a queimar. Depois, quando o lume pega completamente, os pedaços de lenha começam a brilhar e uma chama tremulante, regular, começa a dançar por toda a sala, fico por ali uns momentos de pé, como que a contemplar as chamas bruxuleando na vulnerabilidade da tarde caída. Até que me sento na poltrona de orelhas, alumiado apenas pela incandescência da lenha, acendo um Arturo Fuentes, dou umas baforadas generosas e deixo-me invadir pelas ondas sonoras do sistema nervoso que tentam impelir-me para tempos idos.
Não me permito olhar para trás. Se bem que as atribulações do mundo nos levem a superarmo-nos em lugares onde a vida podia ter dependido de um mero olhar. Os mundos de ontem, incessantemente revisitados, magnificados, auto-embelezam-se para se converterem em sonhos que nunca existiram. Não revitalizo firmamentos de azul celeste. Não recordo amabilidades, sorrisos de boas-vindas, langores outonais. Não recordo beatitudes, tempos de espírito sereno, de calma e de saciedade. Foi tudo difícil, arrancado a ferros. E saber que, noutras plataformas com vidas em cima, o sofrimento quase sempre leva a melhor sobre a felicidade, como a mágoa, como a incerteza das coisas, dos seres, como a falta de amor, como os telefones mudos, como a chuva, as frieiras, como o medo, as tormentas da ausência, a insónia, os suores nocturnos, despertares ancilosados, a ansiedade de uma partida, a ansiedade de um regresso, projecta-me o olhar num único sentido. Sim foi tudo difícil, o mundo de ontem não suscita arrependimento, nem nostalgia, cada instante foi vivido à saída de um desafio. Apenas ficaram uns abraços por dar.
Tantos abraços para dar. Abraços.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Se houvesse degraus na terra...

Josef Breitenbach

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

__Herberto Helder, "A faca não corta o fogo"

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Presépio

O céu estava intensamente escuro. O espaço repleto de incontáveis estrelas cintilantes. Gabriel pairava à frente dela, transpirado, desejável, atingível. Maria conduziu as mãos e depois a boca de Gabriel no seu corpo, mas já não eram as mãos e a boca de Gabriel, eram as de José, o seu José, o seu verdadeiro amor de sempre. Maria tinha prazer e retribuía, era José que a penetrava, era José que a mordiscava, acariciava, chupava, era José que rebolava na cama e foram José e Maria, Maria e José que caíram adormecidos, o tórax dele contra as costas dela, abraçando-a, as mãos a apertar os seios, as pernas viscosas de sémen e suor, entrelaçadas. Depois foram Jesus, Maria e José.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Apelo ao esforço poético

Minhas Senhoras e meus Senhores, passam os dias, passa o tempo. Sob o firmamento, tudo é mudança. Os nossos dias vão-se, correndo mais depressa que uma torrente. A fugacidade das coisas deste mundo convidam-nos a mais amizade, a mais fraternidade, a mais calor. É nesta ordem de ideias que o itinerante vem aqui ao vosso encontro perguntar-vos o que significa para vossas senhorias o Natal.

Vá, descontraiam-se. Vejo-vos tensos, como o mergulhador que sabe que não pode falhar a entrada na água profunda. Convém ser cortês com o mar, penetrar nele mantendo a cabeça bem direita. Semelhantes aos corpos que mergulham, os homens lançam-se no mundo e aí se abismam. Quereis uma musiquinha? Tomai e bebei deste magnifico hino natalício.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Aritmética Binária

O que é a minha vida? Pensa o itinerante. O que é a minha vida, interroga-se o residente. Ambos se abandonam a uma combinatória do virtual e do reflectido. Que movimento do acaso e das instituições os terá conduzido até ali?

sábado, 9 de dezembro de 2017

Bola d'ouro

Hoje não gosto de mim. E não sei se este momento é daqueles no qual o que não se diz tem tanta importância como o que se possa dizer. Se este silêncio tanto pode significar uma viagem reflexiva em busca da linha de sombra onde as dúvidas habitam, ou se pelas mesmas razões, é um périplo à procura do esquecimento, uma esperança minuciosa de que as certezas vão perdendo paulatinamente a razão de ser e sejam substituídas, como se tratasse de um sonho, pela paragem do tempo. 
Seja como for, não gosto de mim assim. Até lá vou jogar à bola com o cão de pêlo pardo. Bora Fiodor... bora.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Cidade de fora

Estamos em Dezembro, a cidade de dentro enche-se do folgo natalício e sussurra. Do lado de fora, o vento gélido, as árvores nuas, a névoa escura tudo é capaz de me excitar a pele. Deixo-me invadir pela aventura do tempo. O tempo vindouro, aquele que desculpará o tempo passado. O ar recheia-se de partículas imperceptíveis que penetram no corpo, os odores do rio e dos jardins, mini-estruturas orgânicas, a natureza a exportar os seus indícios. Salto fronteiras, encaminho-me para territórios sofredores, voo até à cabeceira das palavras, sem hora fixa, nem lugar privilegiado, onde as bocas falam e desejam revelar-se. Sou uma orelha ambulante, aberta ao rumorejo dos seres, onde os laços rompidos, a solidão e a miséria condenam ao mutismo. Pequenos enclaves onde se desenrolam sonhos e existências falhadas.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Obituário

Em Portugal, quando as pessoas morrem passam a ser uns santos que viveram na terra. 
Deferências!

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Retratista

Estamos no fim de Novembro. Tenho de te pedir que venhas posar para mim. Sinto vontade de fazer novamente o teu retrato. Tens um belo cú, não há dúvida, e não há nada como um belo cú diante dos olhos para nos sairmos bem num rosto. Já te disse? É preciso passar a toda a velocidade pelas curvas do desejo, e somente em seguida consagrar-se àquelas onde recai o imaginário, os rostos. Vem.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Termóstato


Não posso ler ou reler Camilo que não seja com calor.  Além de que a leitura, enquanto veia jugular, é idílio de longo folgo e não é no sentir frio da consciência que ela encerra epopeias infinitas.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

...

Não vou agora contar a noite em que o amor se apresentou involuntariamente, direi apenas que fui seduzido pelas maravilhas existentes naquela sala: um candelabro com uma chama que ardia a óleo de madeira de sândalo e que projectava uma luz trémula e opaca nas paredes, iluminando os três Klimt que pareciam autênticos. De um lado o esquisso de "a masturbação feminina", do outro - lado a lado -  "o beijo" e "o abraço".  E também não vou contar se me terei deixado levar pelo momento em que a massa viva se satisfaz na intimidade ou se pelo momento do anseio arrebatado das permutas, por vezes provenientes de lugares fundos, remotos, inóspitos até. Mas posso contar que não devia tê-lo feito...

Jogas?


Eis as regras deste jogo que estou a inventar à medida que vamos andado. Nada de ter pena. Aliás, nada de comentários. Eu conto uma história e tu tentas contar uma ainda pior e depois eu tento superar a tua e por aí fora. Todas as histórias têm de ser verdadeiras. Tenta não exagerar. Começa.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

A cidade, o mundo e a dor

Corredor de hospital, oitavo andar, secção F, serviço da enfermeira Amélia. Ali, a vida resume-se a duas palavras: sofrimento e desesperança.
Amélia, de bata azul e branca, distribui medicamentos. Olhares expectantes, meios-sorrisos, uma distracção, breve relâmpago do exterior que penetra no interior dos quartos. Amélia sabe-se mensageira, portadora dos rumorejos do mundo, como se a ela se atrelassem, aos seus cabelos ou à pele do rosto, os pequenos odores e partículas da cidade e do mundo, difundindo micro-organismos e miasmas que cada qual açambarca como pode. Por ora, é prenda urbana oferecida por Amélia. Para já não falar nos ansiolíticos, analgésicos e morfinas que lhes injecta nas veias.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Tríptico




Pode ser do género ópera, cançoneta ou peça de jazz, Händel, Piaf ou Mingus, o importante é a música que entra na cabeça, igual a uma recordação, e que se instala até suplantar o desassossego. Abram-se as portas do labirinto.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

omnia pro patria

Se não é o governo é o desgoverno, se não é a direita é a esquerda, se não é a demissão é a admissão, se não é o Panteão é a Agência Europeia do Medicamento, se não é o Outono soalheiro são os senhores da meteorologia que não fazem chover, se não é a carreira congelada é a carreira de estatuto automático , se não é o assédio é o pénis viral, se não é o Pinto da Costa é o Bruno de Carvalho, se não são as pedras da calçada é a alcatifa do hotel...

Sempre atrás das redes hertzianas, ligados por cabo, satélite e fibra óptica, quais atendedores automáticos de chamadas, mentes miserandas de sinapses de fraca carga, recolhendo os versículos do quotidiano onde o licencioso se mistura com a pequena luxuria e os tráficos de toda a espécie, uma pobreza sem bandeira, um submundo perdido dos lugares de fronteira, a cavalo entre o passado comezinho e o presente mesquinho.

Que puto de país! Que puta de gente!

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Linha editorial


Posso contar aventuras pessoais com um século, com um ano, com uma estação, com um mês, com um dia - o dia em que se viram as coisas estilhaçarem-se. Transformar em lenda o meu bairro, um passado, ou ainda uma vida que não seria vivida. Deixar-me dias a fio a ver, emudecidas, perpetrar-se as exacções nos ecrãs da minha sala ou de outras choças feitas de adobe por esse mundo fora. O corruptor que corrompe, o corrompido que mete ao bolso. Ficar impotente perante o que poderia ser e o que não é, a indigência das respostas, uma civilização que se vai perdendo. Saber isso, repisando-o, litanias lancinantes do quotidiano. Lançar-me no vazio, nomeando-me a mim mesmo o chefe territorial dos degredos do mundo. Sobreviver. Deixar o mundo ditar o seu descontentamento. Ouvi-lo, desgrenhado. 
Ou então inflamar a vida, pedindo ao mundo, com jactância, uma miríade de êxtases: sidera-me exalta-me, deslumbra-me, atordoa-me, e que isso não tenha fim.
Também poderia ser um encantador de serpentes. Em cima da cama uma maçã: "atentamente, a cobra".

Mas, não sei. Tenho de pensar.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Da tristeza que advém da polenta


«Estou triste porque passei o dia todo a contemplar pratos de polenta. Têm um aspecto tão monótono. Em tempos de jejum, não basta que um prato tenha uma aparência tristonha; também o gosto deve provocar tristeza. E que combinação é mais triste à vista e ao gosto do que a polenta de véspera, servida fria, sem adição de quaisquer outros temperos?» 

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Se eu fosse uma mulher?

Evitar-me-ia. Porque eu sou um homem do momento, um homem que procura continuamente persuadir-se daquilo em que pretende crer, um homem cujas palavras há que rasgar ao fim de uns dias, sobretudo se forem grandiosas e definitivas, um homem que sempre quis e sempre quererá todas as mulheres, sim todas, para conhecer por elas a inteira verdade da vida e uma boa parte das figuras do que existe, para não se fechar, não se embalsamar num eu já definitivo. Nunca encontrei uma mulher que fosse todas as mulheres.