terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Vestidos pretos

Nada me desconcerta mais que o rosto em desalinho de uma mulher bonita.
O que quero dizer com isso?



Suponho que queira dizer que gosto de mulheres bonitas quando, mesmo erguendo barreiras de encanto, abrindo leques multicolores que cegam os intrusos: mini-saias, madeixas louras, cintura fina, olhos pintados, rosto estucado, andar bamboleante, elas não são devoradas pela beleza. Deixando à minha imaginação os seus dédalos interiores. 

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Há cidades cor de pérola onde as mulheres...


Mulheres que eu amo com um desespero fulminante, 
a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em que toco levemente
Imente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.

 __Herberto Helder - «Lugar», Poesia Toda

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Monólogos da vagina

A descer a pé em direcção ao metropolitano, Amélia trauteia, apetece-lhe dançar debaixo da chuva miúda, mover o corpo no meio da multidão, e que olhares furtivos a descubram, que homens discretos digam com os seus botões: olha vai ali uma mulher a cortejar o mundo. Sem a luz do sol, Amélia pensa nas estrelas, estou a caminho de uma cidade que amo, diz ela consigo, e nesta cidade há um homem com quem farei amor hoje à noite, que pousará as mãos sobre a minha pele, apartará as minhas pernas, tomará os meus seios como uma oferenda das mulheres aos que as desejam, e o seu sexo erguer-se-à quando souber que sou dele.
Amélia ao pensar nos homens vê o deserto e a sede, sempre que eles não podem esperar mais tempo pela humidade de uma mulher, pela água bem-aventurada que escorre entre as pernas delas quando eles embebem o corpo e a boca na unção extrema, os santos óleos dos vivos. 
O que importa é estar vivo, diz Amélia de baixo para cima.

sábado, 30 de dezembro de 2017

Palomar

O Senhor Impontual está sentado diante do mundo, por vezes sente vergonha. Não há nada brilhante, enfim... Os balanços são patéticos, remorsos é o que não falta, contradições publicas e arrependimentos. Viver deveria significar querer melhor, mais alto, maior e o Senhor Impontual só vê pessoas que não desejam senão um prémio de lotaria, fazerem fila um dia inteiro à porta da Ritinha Nails, aflitos, que ainda tem de ir à Boutique da Amélia levantar o outfit para a grande noite que será devidamente retratada e divulgada ao mundo dos alegres com o seu telefone plus, dourado. Tanto tempo, tanto dinheiro por tão pouca alegria! Annus Mirabilis!

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Hipotipose

O itinerante interrompe momentaneamente o seu périplo por galáxias superiores, a fim de partilhar com os prezados terráqueos dois farrapos da sua viagem de laboração imagética e dedicá-los à blogger que mais amou ao longo do ano que agora finda.





Sim, àquela que atira palavras de dentro para fora e de fora para dentro com uma simplicidade tal que por vezes não se sabe se são sanguíneas, se caíram do azul do céu, se as trouxe o vento norte ou se se desprenderam na junta que une o corpo à alma.

Para o ano logo se há-de ver.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Cú de Judas

Derivado da generosidade do presépio, o vivente embarca agora mesmo numa viagem que se prevê da mais elevada densidade arcaica.



O residente, volta ao contingente logo que a meteorologia assim o permita.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Dois cartões de Natal. Um com dedicatória, outro para quem o quiser apanhar

(para a ANOUK com um abraço)

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Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.

As pessoas imaginam os seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.

(para quem o quiser apanhar)

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Acendalhas

Em dias como o de hoje em que me permito regressar bem mais cedo do que é habitual e ainda debaixo da luz do dia, gosto de encontrar a casa vazia, fria, triste, escura. Acender a lareira lentamente e ficar ali a ouvir os primeiros estalidos da lenha a queimar. Depois, quando o lume pega completamente, os pedaços de lenha começam a brilhar e uma chama tremulante, regular, começa a dançar por toda a sala, fico por ali uns momentos de pé, como que a contemplar as chamas bruxuleando na vulnerabilidade da tarde caída. Até que me sento na poltrona de orelhas, alumiado apenas pela incandescência da lenha, acendo um Arturo Fuentes, dou umas baforadas generosas e deixo-me invadir pelas ondas sonoras do sistema nervoso que tentam impelir-me para tempos idos.
Não me permito olhar para trás. Se bem que as atribulações do mundo nos levem a superarmo-nos em lugares onde a vida podia ter dependido de um mero olhar. Os mundos de ontem, incessantemente revisitados, magnificados, auto-embelezam-se para se converterem em sonhos que nunca existiram. Não revitalizo firmamentos de azul celeste. Não recordo amabilidades, sorrisos de boas-vindas, langores outonais. Não recordo beatitudes, tempos de espírito sereno, de calma e de saciedade. Foi tudo difícil, arrancado a ferros. E saber que, noutras plataformas com vidas em cima, o sofrimento quase sempre leva a melhor sobre a felicidade, como a mágoa, como a incerteza das coisas, dos seres, como a falta de amor, como os telefones mudos, como a chuva, as frieiras, como o medo, as tormentas da ausência, a insónia, os suores nocturnos, despertares ancilosados, a ansiedade de uma partida, a ansiedade de um regresso, projecta-me o olhar num único sentido. Sim foi tudo difícil, o mundo de ontem não suscita arrependimento, nem nostalgia, cada instante foi vivido à saída de um desafio. Apenas ficaram uns abraços por dar.
Tantos abraços para dar. Abraços.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Se houvesse degraus na terra...

Josef Breitenbach

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

__Herberto Helder, "A faca não corta o fogo"

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Presépio

O céu estava intensamente escuro. O espaço repleto de incontáveis estrelas cintilantes. Gabriel pairava à frente dela, transpirado, desejável, atingível. Maria conduziu as mãos e depois a boca de Gabriel no seu corpo, mas já não eram as mãos e a boca de Gabriel, eram as de José, o seu José, o seu verdadeiro amor de sempre. Maria tinha prazer e retribuía, era José que a penetrava, era José que a mordiscava, acariciava, chupava, era José que rebolava na cama e foram José e Maria, Maria e José que caíram adormecidos, o tórax dele contra as costas dela, abraçando-a, as mãos a apertar os seios, as pernas viscosas de sémen e suor, entrelaçadas. Depois foram Jesus, Maria e José.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Apelo ao esforço poético

Minhas Senhoras e meus Senhores, passam os dias, passa o tempo. Sob o firmamento, tudo é mudança. Os nossos dias vão-se, correndo mais depressa que uma torrente. A fugacidade das coisas deste mundo convidam-nos a mais amizade, a mais fraternidade, a mais calor. É nesta ordem de ideias que o itinerante vem aqui ao vosso encontro perguntar-vos o que significa para vossas senhorias o Natal.

Vá, descontraiam-se. Vejo-vos tensos, como o mergulhador que sabe que não pode falhar a entrada na água profunda. Convém ser cortês com o mar, penetrar nele mantendo a cabeça bem direita. Semelhantes aos corpos que mergulham, os homens lançam-se no mundo e aí se abismam. Quereis uma musiquinha? Tomai e bebei deste magnifico hino natalício.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Aritmética Binária

O que é a minha vida? Pensa o itinerante. O que é a minha vida, interroga-se o residente. Ambos se abandonam a uma combinatória do virtual e do reflectido. Que movimento do acaso e das instituições os terá conduzido até ali?

sábado, 9 de dezembro de 2017

Bola d'ouro

Hoje não gosto de mim. E não sei se este momento é daqueles no qual o que não se diz tem tanta importância como o que se possa dizer. Se este silêncio tanto pode significar uma viagem reflexiva em busca da linha de sombra onde as dúvidas habitam, ou se pelas mesmas razões, é um périplo à procura do esquecimento, uma esperança minuciosa de que as certezas vão perdendo paulatinamente a razão de ser e sejam substituídas, como se tratasse de um sonho, pela paragem do tempo. 
Seja como for, não gosto de mim assim. Até lá vou jogar à bola com o cão de pêlo pardo. Bora Fiodor... bora.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Cidade de fora

Estamos em Dezembro, a cidade de dentro enche-se do folgo natalício e sussurra. Do lado de fora, o vento gélido, as árvores nuas, a névoa escura tudo é capaz de me excitar a pele. Deixo-me invadir pela aventura do tempo. O tempo vindouro, aquele que desculpará o tempo passado. O ar recheia-se de partículas imperceptíveis que penetram no corpo, os odores do rio e dos jardins, mini-estruturas orgânicas, a natureza a exportar os seus indícios. Salto fronteiras, encaminho-me para territórios sofredores, voo até à cabeceira das palavras, sem hora fixa, nem lugar privilegiado, onde as bocas falam e desejam revelar-se. Sou uma orelha ambulante, aberta ao rumorejo dos seres, onde os laços rompidos, a solidão e a miséria condenam ao mutismo. Pequenos enclaves onde se desenrolam sonhos e existências falhadas.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Obituário

Em Portugal, quando as pessoas morrem passam a ser uns santos que viveram na terra. 
Deferências!

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Retratista

Estamos no fim de Novembro. Tenho de te pedir que venhas posar para mim. Sinto vontade de fazer novamente o teu retrato. Tens um belo cú, não há dúvida, e não há nada como um belo cú diante dos olhos para nos sairmos bem num rosto. Já te disse? É preciso passar a toda a velocidade pelas curvas do desejo, e somente em seguida consagrar-se àquelas onde recai o imaginário, os rostos. Vem.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Termóstato


Não posso ler ou reler Camilo que não seja com calor.  Além de que a leitura, enquanto veia jugular, é idílio de longo folgo e não é no sentir frio da consciência que ela encerra epopeias infinitas.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

...

Não vou agora contar a noite em que o amor se apresentou involuntariamente, direi apenas que fui seduzido pelas maravilhas existentes naquela sala: um candelabro com uma chama que ardia a óleo de madeira de sândalo e que projectava uma luz trémula e opaca nas paredes, iluminando os três Klimt que pareciam autênticos. De um lado o esquisso de "a masturbação feminina", do outro - lado a lado -  "o beijo" e "o abraço".  E também não vou contar se me terei deixado levar pelo momento em que a massa viva se satisfaz na intimidade ou se pelo momento do anseio arrebatado das permutas, por vezes provenientes de lugares fundos, remotos, inóspitos até. Mas posso contar que não devia tê-lo feito...

Jogas?


Eis as regras deste jogo que estou a inventar à medida que vamos andado. Nada de ter pena. Aliás, nada de comentários. Eu conto uma história e tu tentas contar uma ainda pior e depois eu tento superar a tua e por aí fora. Todas as histórias têm de ser verdadeiras. Tenta não exagerar. Começa.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

A cidade, o mundo e a dor

Corredor de hospital, oitavo andar, secção F, serviço da enfermeira Amélia. Ali, a vida resume-se a duas palavras: sofrimento e desesperança.
Amélia, de bata azul e branca, distribui medicamentos. Olhares expectantes, meios-sorrisos, uma distracção, breve relâmpago do exterior que penetra no interior dos quartos. Amélia sabe-se mensageira, portadora dos rumorejos do mundo, como se a ela se atrelassem, aos seus cabelos ou à pele do rosto, os pequenos odores e partículas da cidade e do mundo, difundindo micro-organismos e miasmas que cada qual açambarca como pode. Por ora, é prenda urbana oferecida por Amélia. Para já não falar nos ansiolíticos, analgésicos e morfinas que lhes injecta nas veias.