quinta-feira, 6 de agosto de 2020

GPS (VII)



Os dias rumam, consomem-se, remontam e impõem a força indistinta do que tem de ser. Os dias correm, cobertos de demora, de memória, e a sua aparente harmonia parece nascer de um pudor secretamente doloroso e melancólico. J&B, chamemos-lhe assim, meus ocasionais companheiros de viagem, dissipam suavemente os dias, desperdiçando as horas, o tempo, num árido afastamento um do outro. E nenhum deles faz um mínimo esforço para derrubar essa parede de indiferença. Lêem jornais e livros, trocam frases curtas, quase monossílabos, e essas relações concisas exprimem não só um orgulho acossado mas também um desafio escondido. De certa forma, sabem como utilizar o silêncio ou os frágeis factos de somenos para se irritar surdamente um ao outro. São pessoas que têm a ver com o mundo, com as estradas, com os rios - esses caminhos líquidos. E são igualmente pessoas que têm a ver com uma espécie compacta de solidão, a solidão dos diferentes. Talvez seja isso que os torna indiferentes.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

GPS (VI)



Agradarmo-nos de uma sombria calma, deixarmo-nos envolver pela plácida sucessão dos dias que ninguém atravessa, que não dá qualquer sentido a cada encontro, que nos faz esquecer o gosto das antecipações, que nos liberta de promessas, que nos impele a mansas displicências, que nos envia os sentimentos da indolência e da letargia, deixar de lado os deveres que a consciência - esse território pantanoso - nos recomenda, não é viver na solidão. É gostar dela para fazer algumas coisas. É, por vezes, lutar contra moinhos de vento.

sábado, 1 de agosto de 2020

GPS (V)



O olho é a luz.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

GPS (IV)

        Gorbea Parque Natural

O problema dos homens é que não lhes podemos oferecer sempre a emoção da caça, aquelas cócegas no estômago e a certeza-incerteza de saberem se a presa será ou não sua. Isso só pode acontecer uma vez com cada mulher. E eu, naturalmente, já joguei esse torneio.

Isto assim dito em basco, garanto eu, tem exactamente o mesmo impacto que dito em russo. Talvez soe de outra forma em português. Mas já bebi uma dose generosa de txakoli. Aquilo é fraquinho, mas nunca se sabe...

terça-feira, 28 de julho de 2020

GPS (III)

Voltamos à grande cidade, na tarde. Alex conduziu o automóvel com a desenvoltura de um rapaz. Pelo caminho foi observando o voo baixo das gaivotas novas. O seu belo rosto enrugado reflecte imensa serenidade. Cumprimentou pessoas pelo caminho, na tarde. Agora, já noite cerrada, à mesa da sua sala, perante o meu entusiasmo com a região, conta-me que a beleza tem o poder de opor resistência à agressão - é certo, mas tempos houve em que não havia dias incomparáveis, requebrados, mansos e absolutamente ternos. Diz-me que aqui todos os dias possuíam no seu bojo uma crueldade latente que frequentemente explodia. Era um reino de silêncio, mas de frias cumplicidades. Um reino de alaridos calados e também de mudas catástrofes. Aqui as pessoas não se preparavam para a felicidade. Brindamos, com patxaran, a longos anos de vida. Dos quais, trinta, passados aqui.

GPS (II)


É uma manhã de fim de Julho e todas as gaivotas levantaram voo para deixar a praia limpa como um lençol. Ao fundo, no mar, cresce todo o ruido cinzento do mundo. À medida que o dia vai transcorrendo, diminui a expectativa e cresce o silêncio, até que a expectativa se esgoste na totaliidade.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

GPS

O Senhor Impontual está a fazer uma viagem grande ao volante do seu automóvel. São quilómetros e quilómetros. É incrível como todas as estradas acabam noutras estradas. E essas estradas acabam em aldeias, vilas e cidades. De lá, sai-se para outras estradas, que vão dar a outros países, onde as estradas recomeçam. Em todos os lugares onde o Senhor Impontual tem parado, as pessoas parecem apaziguadas e felizes. Vozes ocultas de comando devem ordenar-lhes que amem em exclusivo, que renunciem ao medo porque o medo torna tudo inseguro. Mas, quando as pessoas se livram de um medo em particular, procuram encontrar a segurança criando outros medos, sem deles darem conta. É assim em todo o lado onde vá dar uma estrada. Os homens nunca sabem muito bem o que querem e muito menos onde vão parar. Os homens* são passageiros de passos perdidos. 
O carro de alta cilindrada do Senhor Impontual tem GPS, mas está desligado.

*(Quem diz os homens diz as mulheres, claro está.)

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Sessão da Meia-Noite


"Laranja Mecânica" -  Stanley Kubrick, 1971

Com Maria (sem rosto) que, por instinto, gosta de olhares fragmentados e consequentes leituras dissonantes.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Memento

Observo o interlocutor e sei que tudo aquilo que diz já ocorreu há muito tempo. Eu, como ele, sempre alimentei uma espantosa faculdade de esquecimento. Ambos tomamos notas avulsas para resguardar o passado e alimentar a memória futura.

sábado, 11 de julho de 2020

Palomar

Calções às riscas, camisa de linho branca totalmente desabotoada, cabelo puxado para trás, óculos aviator encaixados no nariz, o Senhor Impontual desliza pelo areal como uma pena. A água salgada, fria, desfaz-se a seus pés num vai-e-vem que nasce e morre na areia saibrosa. O Senhor Impontual vai andando e vai pensado, como é seu timbre: a maturidade de um homem está directamente ligada à perda da sua inocência; à desilusão, ao desencanto. Muda-se-lhe tudo: a maneira de olhar e de examinar as coisas, que se tornam mais distantes; os movimentos mais pausados e calculados; a própria voz que se torna mais grave, menos cristalina e menos feliz. O Senhor Impontual não sabe o que pensar destes desfiles de jovens, desta violência, deste desvario pela captura do momento perfeito, fugaz e inverosímil. Desta gente que não entende que a felicidade e a liberdade são coisas inseguras e instáveis e por isso mesmo belas. Que têm de ser vividas e não apenas fotografadas e difundidas.
Lançam-se num mundo e num tempo hostis e insociaveis - submetem-se a essa domesticação; ignorantes, afáveis e disciplinados. Longe de imaginar que, logo logo, tudo será nocturno e reiteradamente silencioso. As bandeiras penderão murchas, na noite e no silêncio. Logo logo haverá uma parte deles que anda mais devagar.
Sabem agora um pouco de tudo e muito de nada. Saberão mais à frente, sobretudo, que os homens não suportam muita realidade.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Banda sonora

A noite está tropical. Caminho em passo lento. Da rua oiço a voz de um violino. "Pas de deux", Tchaikovsky. A voz do violino sai de uma janela aberta. A janela aberta pertence a um prédio de estilo colonial. Mãos delicadas removem as cortinas e uns olhos brilhantes de um rosto esbatido de obscuridade sobrepõem-se à escuridão por escassos segundos. A música e o prédio de estilo colonial harmonizam-se como um todo perfeito, apenas interrompido por nova e repentina aparição dos olhos brilhantes - um ser imponderável, uma imagem somente imaginada. 
A fantasia nunca foi ordenada, concisa e exacta, mas tem sempre uma banda sonora. Ou poderá um homem apaixonar-se pela voz de um violino?

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Quarta fase de desconfinamento

Nem sabia muito bem porque aceitara o convite. Na verdade, admitiu, fora para mitigar a intensidade do desejo que sentia por ela. Toda a noite enquanto fazia conversa de circunstância, não parara de pensar em leva-la para a cama e fode-la com força e poucas palavras. O desejo, adormecido até aí, tomara-o de novo de assalto com rudeza. Enquanto ela falava, estivera sentado com um pau inquieto dentro das calças, a imaginar que lho punha na boca, que lhe beliscava os mamilos, que lhe mordia o lóbulo da orelha, que a encostava à parede, que lhe enfiava os dedos, que se servia daquela carne de todas as maneiras e feitios durante toda a noite, até se libertar daquela estranha atracção, e depois refugiar-se-ia novamente no confortável vazio que até então não tivera vontade alguma de quebrar.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Palomar


O Senhor Impontual perscruta o horizonte e pensa: se calhar, outrora, tudo se fazia de acordo com as estações, e as pessoas apresentavam-se duas vezes por dia para verem aparecer e desaparecer o astro-rei. Qualquer homem era todos os homens: uma vontade livre, um dever coordenado pelo seu entendimento do bem e do mal. Hoje, as coisas extinguem-se ou transformam-se rapidamente, apenas persiste a luzinha da lamparina, que derrama um pouco de quê?, um pouco de vida, talvez, ou um sinal oscilante e trémulo. Hoje entre presságios e riscos ouvem-se profetas benévolos, piedosos, demoníacos, coléricos e soberbos que afirmam ter sido o nosso destino selado na terra tal qual a vemos. O homem é o rei de todos os deuses. Os olhos e a voz são a sua força. Às vezes acontece ao Senhor Impontual rir como se estivesse só: um riso retraído.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Fadário

Estou sentado junto ao que resta da igreja matriz, de cujo interior, segundo consta, saíam em tempos cânticos hinários, entoados em idiomas bíblicos. Gaivotas circulam baixo e, por vezes, cautelosamente, poisam, em bandos estridentes. O tempo flui e nascem trevas que logo se dissipam. Ou foram apenas brumas procedentes das marés. Agora a largos intervalos tombam gotas nos telhados de zinco gasto, provocando tristes ressonâncias. Mas não chove. Ou, se chove, de onde cai a chuva? Do céu não é, esse está aberto numa claridade primitiva, os aromas são subtis mas profundos. O marulhar da água é ameno. Os raios de sol são paralelos ao atingirem o mar. Aliás tudo no Universo é paralelo. Contemplo o mar, como se o mar fosse uma estrada ou um ligeiro presságio mordido e rendilhado pelo bater das ondas.
Ocorre-me que é isto que nos impede de morrer: andarmos surpreendidos desde que começou o fadário. Tenho muita sorte com a minha profissão que, entre outras agruras, me permite construir destinos. Ou reconstruir, vá lá.

Mas... e o que é o destino?
 - Talvez seja isto mesmo: construir para permitir a destruição.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Disto de escrever nos blogs - esse instrumento de sopro.

Inspiramo-nos no escuro, de uma maneira ou de outra. E a fraqueza tem vários nomes: igualdade, generosidade, benevolência, justiça. Todavia, é ainda no escuro que determinamos que nas relações com os outros é preciso saber mandar, pelo menos uma vez por outra; saber exercer uma certa violência mansa, um discreto terror enleante na discordância e... alimentar um certo, e por vezes acentuado, poder de exclusão. Claro que para qualquer um de nós viver é: olhar, sentir, cheirar, caminhar de cabeça erguida e regista-lo com palavras rutilantes. Quando só exprimimos os sentimentos mais profundos - assobiando.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Do verbo açaimar

Um dia, e esse dia já esteve mais longe, pacientemente, aprenderemos a viver com o mau-estar, com a medonha presença da outra figura. Para aí chegar, revestiremos tudo de silêncio. Será dispendioso. Não estaremos, sem dúvida, em condições de reencontrar a quietude senão ao preço alto desse mutismo. Ignoraremos por que razão uma tal confiança se forjou e instalou tão rapidamente. Saberemos apenas que isso aconteceu. Insinuou-se e existe agora entre nós. Uma coisa sólida e simples. Com uma certeza porém, indiscutível, que no entanto, sem dúvida alguma, debaixo da máscara cirúrgica, jamais invocaremos: ambos somos estrépitos.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Impontual with an P



Vocês não sei, mas eu de repente estou a sentir-me repleto de possibilidades. 

terça-feira, 9 de junho de 2020

Asdrúbal

Colocou os óculos de parte, depôs as mãos sobre o colo, abandonando aí os braços com suavidade. Coisa alguma o prende àquele lugar, não retém qualquer saudade daqueles sítios que somente conservam o cenário já de si nublado do reencontro com Almerinda.
Não é novo nem é velho: chegou à idade indefinida em que um homem vai ficar até ao fim da vida com a cara que fez por merecer e com as recordações do que recusou e aceitou: espectros cada dia mais vivos e agressões cada vez mais insolentes. Todavia, aprendera há muito tempo que para esquecer é preciso recordar. E se poucas coisas deseja recordar talvez seja porque é um homem dividido nas suas lealdades. O importante, porém, não é esquecer ou recordar, mas deixar que surja, alternadamente, uma coisa e outra. Às vezes fala com os céus. Mas os céus também já não são os mesmos - as estrelas estão separadas por espaços infinitos.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Acervo de letras

De repente, um dia sentirás que a tinta passa por dentro do teu corpo antes de chegar ao papel e, quando tiveres essa sensação, já nada nem ninguém poderá instigar-te ao que quer que seja. Tudo dependerá, não direi da tua inspiração, mas da forma como suspiras. Até lá, deixa o subconsciente gritar. Sem reservas.

 (a partir de uma cisma do  meu Caro, e saudoso, Miguel Bondurant)